19.04.2013 Views

Book in PDF - SciELO Livros

Book in PDF - SciELO Livros

Book in PDF - SciELO Livros

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

O percurso da <strong>in</strong>dianidade na literatura brasileira<br />

matizes da figuração<br />

<strong>SciELO</strong> <strong>Book</strong>s / <strong>SciELO</strong> <strong>Livros</strong> / <strong>SciELO</strong> Libros<br />

Luzia Aparecida Oliva dos Santos<br />

SANTOS, LAO. O percurso da <strong>in</strong>dianidade na literatura brasileira: matizes da figuração [onl<strong>in</strong>e].<br />

São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009. 447 p. ISBN 978-85-7983-020-4.<br />

Available from <strong>SciELO</strong> <strong>Book</strong>s .<br />

All the contents of this work, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution-Non<br />

Commercial-ShareAlike 3.0 Unported.<br />

Todo o conteúdo deste trabalho, exceto quando houver ressalva, é publicado sob a licença Creative Commons Atribuição -<br />

Uso Não Comercial - Partilha nos Mesmos Termos 3.0 Não adaptada.<br />

Todo el contenido de esta obra, excepto donde se <strong>in</strong>dique lo contrario, está bajo licencia de la licencia Creative Commons<br />

Reconocimento-NoComercial-CompartirIgual 3.0 Unported.


O PERCURSO DA<br />

INDIANIDADE<br />

NA LITERATURA<br />

BRASILEIRA<br />

MATIZES DA FIGURAÇÃO<br />

LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS


O PERCURSO<br />

DA INDIANIDADE<br />

NA LITERATURA<br />

BRASILEIRA


LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

O PERCURSO<br />

DA INDIANIDADE<br />

NA LITERATURA<br />

BRASILEIRA<br />

MATIZES DA FIGURAÇÃO


© 2009 Editora UNESP<br />

Cultura Acadêmica<br />

Praça da Sé, 108<br />

01001-900 – São Paulo – SP<br />

Tel.: (0xx11) 3242-7171<br />

Fax: (0xx11) 3242-7172<br />

www.editoraunesp.com.br<br />

feu@editora.unesp.br<br />

CIP – Brasil. Catalogação na fonte<br />

S<strong>in</strong>dicato Nacional dos Editores de <strong>Livros</strong>, RJ<br />

S235p<br />

Santos, Luzia Aparecida Oliva dos<br />

O percurso da <strong>in</strong>dianidade na literatura brasileira : matizes da fi guração / Luzia<br />

Aparecida Oliva dos Santos. – São Paulo : Cultura Acadêmica, 2009.<br />

Inclui bibliografi a<br />

ISBN 978-85-7983-020-4<br />

1. Literatura brasileira. 2. Índios na literatura. I. Título.<br />

09-6215. CDD: 869.93<br />

CDU: 821.134.3(81)-3<br />

Editora afi liada:


GUARANI amniapê araw<strong>in</strong>e aré ariken aruá asur<strong>in</strong>i<br />

aweti boca negra canoeiro avá ARAGUAIA ipotewát<br />

itogapuk jabutiféd kabixiana kamayurá karitiana<br />

kayabi kepkiriwat KAMAIURÁ makurap manitsawá<br />

mialat mondé mudjetire parakanã par<strong>in</strong>t<strong>in</strong>t<strong>in</strong> puruborá<br />

NAMBIKUARA sanamaika takuatép tapirapé urubukaapor<br />

wiraféd CREN-ACÁRORE agavotokueng<br />

barawana ipur<strong>in</strong>ã kul<strong>in</strong>ao SUIÁ kustenau mandawaka<br />

maopityã meh<strong>in</strong>ako waurá TXUCARRAMÃE xirianá<br />

yabaana urumi tupari hohodene kanamri karutana kaxarirí<br />

CUICURO koripako iranxe kujijenerí paumari tariana<br />

warekena yamamadi yuberi UAURÁ manitenéri marawá<br />

palikur pareci wapixana kayuixana UILAPITI k<strong>in</strong>ik<strong>in</strong>au<br />

terena wa<strong>in</strong>umá karib aipatsê arara MEINACO atruahí<br />

kalapalo kuikuru matipuhy mayongong AUETI nahukuá<br />

naravute parikotó pianokotó saluma CALAPALO tiryió<br />

tsuva tupi waimiri waiwai apalai bakairi JURUNA<br />

<strong>in</strong>garikó katawiã kaxuiána purukoto sikiana taulipang<br />

SARIRUÁ wayana galibi makuxi palmela jê suyá xavante<br />

akuén xikr<strong>in</strong> xokleng MAIRUM apaniekra ap<strong>in</strong>ayê<br />

kenkateye krikati timbira txakamekra xerente kayapó do<br />

sul PANAM aiwateri arikapu baeña botocudo EPEXÃS<br />

kubenkranken mentuktire krenaque guaharibo XITÃS<br />

javaé jabuti kabixi kreen-akarôre TAULIPANGUE<br />

makunabodo nambiakwara ofaié oti pakaa novas amahuac<br />

bororo desana POROMINARE iawano kanamai<br />

kapanawa karajá katuk<strong>in</strong>a kax<strong>in</strong>awá kobéwa kur<strong>in</strong>a<br />

mar<strong>in</strong>awa BACURIQUIREPA nuku<strong>in</strong>i esp<strong>in</strong>ho guató


kadiwéu karipuna kuyanawa pokanga marakaná marubo<br />

BAÍRA matanawí maxakali mayoruna poyanawa sakuya<br />

tora yuma fulniô kamakã mirânia TAPANHUMAS<br />

natú pakarará pankararu potiguara tuxá uamué xokó<br />

xukuru guajá pakidai waiká AIMORÉS wayoró xirianá<br />

tukuna tux<strong>in</strong>awa tuyuca waik<strong>in</strong>o wanano witoto xip<strong>in</strong>awa<br />

yam<strong>in</strong>awa yawalapiti GOITACÁ oti ofaié palikur<br />

karipuna emerillon galibi wayoró baenã rama-rama aruak<br />

kuniba TUPI katiana pasé layana bakairi parawa mura<br />

paranawat tapuia guarani maku TABAJARA pano pataxó<br />

parime tapayuna trumai txikão umut<strong>in</strong>a guarategaja<br />

PITIGUARAS urupá huari tapirapé takumanféd<br />

tupari urubu-kaapor urumi wiraféd parikotó ka<strong>in</strong>gáng<br />

kubenkrañotire TUPINIQUIM dióre gavião gorotire<br />

pakanawat tukána pauxi pauxiana maxakali xokó oti avá


AGRADECIMENTOS<br />

À manifestação div<strong>in</strong>a por meio da palavra, pelo sopro de lucidez na escritura<br />

deste trabalho.<br />

Ao professor Sérgio Vicente Motta, orientador, pela seriedade com que<br />

acompanhou o desenvolvimento da pesquisa e pela confi ança depositada.<br />

À professora Sônia Piteri, coorientadora, pela disponibilidade e atenção.<br />

Ao professor Antonio Manoel dos Santos Silva, pelos valiosos apontamentos<br />

durante a discipl<strong>in</strong>a de Prosa Brasileira e pela acuidade na avaliação<br />

do texto no exame de qualifi cação e na defesa.<br />

À professora Walnice A. de Matos Vilalva, pelas <strong>in</strong>dicações embrionárias<br />

deste projeto e pela avaliação do texto no exame de qualifi cação.<br />

À professora Susanna Busato, pela contribuição importante durante a<br />

discipl<strong>in</strong>a de Poesia Brasileira e pela leitura do texto nesta fase de avaliação.<br />

À professora Haydée Ribeiro Coelho, pelas contribuições valiosas na<br />

avaliação do texto.<br />

Ao professor Valentim Facioli, pelas contribuições valiosas na avaliação<br />

do texto.<br />

Aos professores do Ibilce, pela formação exemplar e pela companhia<br />

neste tempo de formação.


À seção de Pós-Graduação, pela atenção constante no atendimento e<br />

pelo car<strong>in</strong>ho.<br />

Aos funcionários do Ibilce, pela disposição em fazer sempre o melhor.<br />

Aos meus fi lhos Tarcis, Talita e Ta<strong>in</strong>á, companheiros sempre, e ao Antonio,<br />

pela presença em meio à adversidade.<br />

Aos meus pais Luiz (<strong>in</strong> memoriam) e Otília, regentes de m<strong>in</strong>ha história.<br />

A todos os meus amigos, por não se cansarem de dizer palavras de <strong>in</strong>centivo,<br />

por acreditarem no meu projeto.<br />

À Juliana L<strong>in</strong>s Precioso, pela moradia cedida em São José do Rio Preto<br />

e pela amizade.<br />

Aos familiares, pelo apoio durante o afastamento.<br />

À Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), pela licença concedida<br />

à qualifi cação.<br />

Ao professor Lauro José da Cunha (<strong>in</strong> memoriam), pela presença constante<br />

na m<strong>in</strong>ha formação.<br />

À Capes, pela disponibilidade de bolsa.


Índios botocudos. Acervo particular Felipe Luiz Oliva – Iretama (PR).<br />

A meu avô Felipe Luiz Oliva, <strong>in</strong><br />

memoriam, pelas histórias contadas,<br />

desde criança, diante das fotos emolduradas<br />

na parede de seu escritório. Ele é<br />

o responsável pelo embrião do trabalho<br />

que ora se faz corpo.<br />

A meu irmão, Felipe Oliva Neto,<br />

<strong>in</strong> memoriam, pelo <strong>in</strong>centivo constante<br />

desde a m<strong>in</strong>ha <strong>in</strong>fância, na certeza de que<br />

eu cumpriria seu desejo de me qualifi car.<br />

Sua obst<strong>in</strong>ada ousadia levou-o à morte;<br />

seus ideais alimentaram-me.


Os que andastes pelo mundo, e entrastes em casas de prazer de príncipes,<br />

veríeis naqueles quadros e naquelas ruas dos jard<strong>in</strong>s dois gêneros de estátuas<br />

muito diferentes, umas de mármore, outras de murta. A estátua de mármore<br />

custa muito a fazer, pela dureza e resistência da matéria; mas, depois de feita<br />

uma vez, não é necessário que lhe ponham mais a mão: sempre conserva e sustenta<br />

a mesma fi gura; a estátua de murta é mais fácil de formar, pela facilidade<br />

com que se dobram os ramos, mas é necessário andar sempre reformando e trabalhando<br />

nela, para que se conserve. Se deixa o jard<strong>in</strong>eiro de assistir, em quatro<br />

dias sai um ramo que lhe atravessa os olhos, sai outro que lhe descompõe as<br />

orelhas, saem dois que de c<strong>in</strong>co dedos lhe fazem sete, e o que pouco antes era<br />

homem, já é uma confusão verde de murtas. Eis aqui a diferença que há entre<br />

umas nações e outras na doutr<strong>in</strong>a da fé. Há umas nações naturalmente duras,<br />

tenazes e constantes, as quais difi cultosamente recebem a fé e deixam os erros<br />

de seus antepassados; resistem com as armas, duvidam com o entendimento,<br />

repugnam com a vontade, cerram-se, teimam, argumentam, replicam, dão<br />

grande trabalho até se renderem; mas, uma vez rendidos, uma vez que receberam<br />

a fé, fi cam nela fi rmes e constantes, como estátuas de mármore: não é<br />

necessário trabalhar mais com elas. Há outras nações, pelo contrário – e estas são<br />

as do Brasil –, que recebem tudo o que lhes ens<strong>in</strong>am, com grande docilidade e facilidade,<br />

sem argumentar, sem replicar, sem duvidar, sem resistir; mas são estátuas<br />

de murta que, em levantando a mão e a tesoura o jard<strong>in</strong>eiro, logo perdem a nova<br />

fi gura, e tornam à bruteza antiga e natural, e a ser mato como dantes eram. É<br />

necessário que assista sempre a estas estátuas o mestre delas: uma vez, que lhes<br />

corte o que vicejam os olhos, para que creiam o que não vêem; outra vez, que


lhes cerceie o que vicejam as orelhas, para que não dêem ouvidos às fábulas de<br />

seus antepassados; outra vez, que lhes decepe o que vicejam as mãos e os pés,<br />

para que se abstenham das ações e costumes bárbaros da gentilidade. E só desta<br />

maneira, trabalhando sempre contra a natureza do tronco e humor das raízes,<br />

se pode conservar nestas plantas rudes a forma não natural, e compostura dos<br />

ramos.<br />

Antonio Vieira, Sermão do Espírito Santo, 1657


SUMÁRIO<br />

Introdução – Colonização e relato: síntese e dimensão<br />

do estereótipo <strong>in</strong>dígena 15<br />

PARTE I – Vozes afl uentes do colonizador: o verbo<br />

<strong>in</strong>augural do mito americano 39<br />

1 Versões do olhar: o roteiro entre o poder<br />

e a substância da brasilidade 49<br />

(Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha)<br />

2 Os Brasis serão Brasil: da antropofagia ao rosário 63<br />

(José de Anchieta)<br />

3 Realidade e aparência em Vieira: o <strong>in</strong>dígena sob<br />

o signo do paradoxo 91<br />

(Antonio Vieira)<br />

4 O universo híbrido de O Uraguai: ruptura e fundação 111<br />

(Basílio da Gama)<br />

PARTE II – Pigmentos da nacionalidade: vias de acesso<br />

ao índio transfi gurado 147<br />

1 A estatura do índio como herói humano 155<br />

(Gonçalves Dias)<br />

2 A tríade alencariana: história, lenda e mito no desaguadouro<br />

romântico dos ares nacionais 175<br />

(José de Alencar)


3 Jupira: idealismo e transição no vértice da cultura <strong>in</strong>dígena 207<br />

(Bernardo Guimarães)<br />

PARTE III – Rio acima, rio abaixo: a arqueologia<br />

da l<strong>in</strong>guagem mitopoética 225<br />

1 A banzar com Macunaíma 231<br />

(Mário de Andrade)<br />

2 O mistério ameríndio plasmado na <strong>in</strong>timidade<br />

das águas poéticas de Cobra Norato 253<br />

(Raul Bopp)<br />

3 Mitavaí Arandu: às voltas com Macunaíma 273<br />

(Manuel Cavalcanti Proença)<br />

PARTE IV – Raízes dispersas, ramos <strong>in</strong>dissociáveis:<br />

síntese e jogo 297<br />

1 O descompasso do barroco na poesia brasileira:<br />

mobilidade e <strong>in</strong>conformismo 303<br />

(Gregório de Matos Guerra)<br />

2 O engenho verbal da poesia Pau-brasil: oposição e emblemas 319<br />

(Oswald de Andrade)<br />

PARTE V – Transfi guração e experiência estética: a narrativa<br />

pluridiscursiva do <strong>in</strong>digenismo literário 341<br />

1 Quarup: o Brasil-centro pelas veredas do jogo e máscaras 347<br />

(Antonio Callado)<br />

2 Maíra: os afl uentes representativos no encontro<br />

do <strong>in</strong>dígena com a experiência da civilização 381<br />

(Darcy Ribeiro)<br />

3 Meu tio o Iauaretê: fronteiras da l<strong>in</strong>guagem e da fi guração 413<br />

(João Guimarães Rosa)<br />

Considerações fi nais 429<br />

Referências bibliográfi cas 437


INTRODUÇÃO<br />

COLONIZAÇÃO E RELATO:<br />

SÍNTESE E DIMENSÃO DO ESTEREÓTIPO INDÍGENA<br />

A pergunta <strong>in</strong>icial feita no embrião deste trabalho parte da segu<strong>in</strong>te<br />

perspectiva: como entender a representação do <strong>in</strong>dígena na formação do<br />

sistema literário brasileiro? Quais são os matizes que a difere ou a aproxima<br />

dentre os conceitos impressos pelo <strong>in</strong>dianismo e pelo <strong>in</strong>digenismo literários?<br />

Que estratégias são articuladas para representar o homem nativo ante<br />

seu alterno? Diante de tais <strong>in</strong>quietações, propõe-se, aqui, uma leitura possível,<br />

por meio dos textos escolhidos, e que não se quer defi nitiva em razão da<br />

multiplicidade de temas que os tangenciam. A<strong>in</strong>da que recortado o aspecto<br />

temático dos textos, em razão do objetivo, são exemplares no que concerne<br />

à <strong>in</strong>terrogação da <strong>in</strong>dianidade e dos confl itos que envolvem a presença do<br />

<strong>in</strong>vasor ao longo do contato permanente com a cultura ameríndia.<br />

Para percorrer a literatura brasileira ao encontro dessa representação,<br />

faz-se necessário o retorno aos textos produzidos pelos cronistas, na literatura<br />

de viagem, ou de <strong>in</strong>formação, em que o objetivo fundamental era<br />

descrever a visão edênica do novo mundo, impressa no olhar surpreso dos<br />

homens guiados pela tradição, que a <strong>in</strong>terpretaram de acordo com suas experiências,<br />

somadas à fantasia meticulosa das observações do real. O registro<br />

do país, por diversos ângulos, legou às gerações sucedâneas imagens<br />

que se espalharam pelos textos fi ccionais e ocuparam o corpus da literatura<br />

nacional. Isso não se deu apenas pelo valor histórico, mas pelo cont<strong>in</strong>gente<br />

simbólico a respeito do homem natural e da terra americanos.<br />

É a partir do “descobrimento” da América e, posteriormente, do Brasil<br />

que se formou um compósito de histórias, reun<strong>in</strong>do mitos e visões contraditórias<br />

em torno do habitante nativo das terras americanas. O emaranhado


16 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

de dizeres tornou-se fundamental para a construção da imagem da nação<br />

que se desnudava: o território foi olhado, descrito e cobiçado pela <strong>in</strong>contestável<br />

colonização. Um processo que se moveria em diferentes espaços, em<br />

tempos marcados pela presença ou pela ausência de riquezas a serem extraídas<br />

das raízes da terra redescoberta, dentre elas a mão de obra do <strong>in</strong>dígena.<br />

Relatos surgiram e o Brasil, impenetrável em sua extensão geográfi ca,<br />

em pr<strong>in</strong>cípio, foi alvo de <strong>in</strong>tensas disputas pela apropriação das riquezas,<br />

fruto da <strong>in</strong>contida necessidade de apresentá-lo ao cont<strong>in</strong>ente europeu como<br />

o éden perdido das Américas. Fez-se uma história e, junto a ela, uma rede de<br />

<strong>in</strong>formações descritivas foi espalhada ao longo das narrativas que enalteceram<br />

a fl ora e a fauna. A riqueza majestosa, que encantou os cronistas, fez que<br />

os olhos da cobiça subjugassem o nativo, ignorando sua presença e dizimando-o<br />

em nome do alargamento das fronteiras do território a ser ocupado.<br />

Diante do quadro multiforme, produziu-se um material farto, oriundo<br />

dos viajantes e cronistas, que descreveram uma realidade vista pelo ângulo<br />

de quem aqui aportou com o <strong>in</strong>tuito de explorar, tal como a Carta de Achamento,<br />

de Pero Vaz De Cam<strong>in</strong>ha; o Diário denavegação, de Pero Lopes e<br />

Sousa, escrivão de Martim Afonso de Sousa; o Tratado da Terra do Brasil e<br />

a História da Província de Santa Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil,<br />

de Pero Magalhães Gândavo; o Tratado descritivo do Brasil, de Gabriel Soares<br />

de Sousa; os Diálogos das grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes<br />

Brandão; as Cartas dos missionários jesuítas escritas nos dois primeiros séculos<br />

de catequese; o Diálogo sobre a Conversão dos gentios, do Pe. Manuel<br />

da Nóbrega; a História do Brasil, de Frei Vicente do Salvador, dentre outros.<br />

Tais documentos tiveram em comum o registro dos bens econômicos<br />

não explorados, as feitorias, o quadro autárquico que se esboçava com a<br />

economia canavieira, a falta de <strong>in</strong>stituições públicas e a nobreza rural. Não<br />

se constituíram como textos literários, em razão das condições em que foram<br />

produzidos; o que legaram, a<strong>in</strong>da que contestável, é o valor histórico<br />

como primeira produção escrita no Brasil, em primeira <strong>in</strong>stância, para, posteriormente,<br />

serem objeto de estudos no campo da literatura.<br />

A história da colonização abriu, assim, os canais para as narrativas em<br />

direção à cultura primitiva existente no território e seu habitante natural.<br />

Aos olhos do <strong>in</strong>vasor, o índio, como um ser bárbaro, deveria ser domesticado;<br />

por não ter a fé do colonizador, deveria ser catequizado; dado o número<br />

<strong>in</strong>contável deles, seria mão-de-obra abundante. Além disso, seria o escravo


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 17<br />

de que necessitavam para responder aos anseios mercantilistas da metrópole.<br />

Diante da imposição cultural europeia, que não conhecia seus hábitos<br />

e crenças, horrores foram impressos com pele e sangue nas pág<strong>in</strong>as dos<br />

cronistas que se dedicaram a sistematizar a ação do colonizador. Olhando<br />

para o passado, daqui do século XXI, não é necessário muito esforço para<br />

entender o motivo de tantas lutas em favor da ocupação. Inúmeras batalhas<br />

calcadas sobre as vidas de milhares de índios dizimados sem o menor<br />

respeito pela sua cultura. O extermínio tanto ocorreu no aspecto físico,<br />

frente à quantidade de mortes em razão de não aceitarem o cativeiro, como<br />

também, no aspecto cultural, com a imposição da religião e da <strong>in</strong>serção de<br />

costumes eurocêntricos. O cenário de degradação deu um cunho epopeico<br />

ao colonizador, que, do seu ponto de vista, se considerava um valente herói<br />

ante a nação bárbara.<br />

A transposição dos quadros <strong>in</strong>iciais da colonização para a escrita emoldurou<br />

o habitante sob perspectivas variadas, dentre elas as de resistência<br />

e bravura e as de comportamento e de l<strong>in</strong>guagem avessos ao modelo europeu,<br />

o que o vitimou pelo preconceito e pela exploração. Dentre os textos<br />

<strong>in</strong>augurais dessa vertente, destaca-se a Carta de Achamento, de Pero Vaz de<br />

Cam<strong>in</strong>ha, presente no primeiro capítulo, em que o homem natural é apresentado<br />

como extensão da fl ora e da fauna ou como adorno encontrado em<br />

largas contas nas praias. É desse ângulo que o escrivão lançará seu olhar<br />

sobre o americano, com cuja língua sequer manteve contato. Além disso, ao<br />

captar os gestos e falares, pela óptica do <strong>in</strong>vasor, concedeu-lhes matizes de<br />

acordo com a ideologia predom<strong>in</strong>ante na Europa em que fi gurava o conceito<br />

de bárbaro a ser domesticado, tal qual a uma fera selvagem.<br />

Paralelo ao aspecto descritivo do maravilhoso achado foi cimentado,<br />

também, um discurso de temor ante os rituais praticados pelos índios, de<br />

modo especial, os dedicados aos mortos, vistos “como s<strong>in</strong>tomas de barbárie”<br />

diante dos quais os <strong>in</strong>dígenas brasileiros “caíram sob a suspeita de<br />

demonização”, conforme <strong>in</strong>terpreta Bosi (1992, p.73). Produzidos a partir<br />

das vertentes nuançadas dos olhares, os discursos dos textos de <strong>in</strong>formação<br />

serviriam à corte como <strong>in</strong>strumento documental da terra da conquista, um<br />

motivo de glória que t<strong>in</strong>ha, na obra da colonização, a resposta às necessidades<br />

do desenvolvimento mercantil.<br />

Da Literatura de Informação aos textos produzidos posteriormente, o<br />

<strong>in</strong>dígena foi tecido em diversas estampas. Os jesuítas, Anchieta e Vieira,


18 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

produziram em seus textos as marcas mais profundas de aculturação, tecidas<br />

pelos fi os político e missionário, nos quais se prendem, concomitantemente,<br />

a luta entre o poder religioso e os proprietários de terras, como<br />

também a urgência de transfi guração do homem natural, supostamente<br />

sem religião, em cristão converso.<br />

Anchieta, por exemplo, apropriando-se de palavras e da s<strong>in</strong>taxe tupis,<br />

acrescidas de ritmo português, transpôs para os nativos uma “mitologia<br />

paralela”, conforme aponta Bosi (1992), constitu<strong>in</strong>do deuses a partir do<br />

conceito cristão. Um universo de orações e autos em língua nativa fez que<br />

os b<strong>in</strong>ários bem/mal (Deus/Tupã – Demônio/Anhangá) se <strong>in</strong>screvessem<br />

no imag<strong>in</strong>ário <strong>in</strong>dígena. Com a estratégia da aproximação do nativo por<br />

meio de sua língua, abriu uma porta para a destruição das suas dimensões<br />

cosmogônicas, uma atitude que <strong>in</strong>teressava ao propósito da conversão e ao<br />

<strong>in</strong>teresse econômico. Os objetivos da catequese, que visavam tornar o índio<br />

cristão e obter dele a força de trabalho, fi zeram que o nativo merecesse um<br />

lugar de destaque nos textos, enquanto o negro foi reduzido a um pequeno<br />

espaço, por ser considerado submisso, não obtendo atenção signifi cativa<br />

nos projetos jesuíticos, a não ser em alguns Sermões.<br />

Visualizam-se em Anchieta duas esferas que s<strong>in</strong>gularizam o nativo: uma<br />

impressa nos poemas escolhidos de sua lírica tupi, na qual estampa o nativo<br />

dócil, adaptado às crenças católicas de adoração à Virgem Maria; outra, desvestida<br />

do caráter poético, faz emergir a fi gura do bárbaro, temeroso pelas<br />

ações antropofágicas, desprovido de dotes positivos que pudessem associálo<br />

a algum pormenor da cultura <strong>in</strong>vasora, como se encontra nas Cartas e<br />

descrições da terra enviadas à Corte. A presença do texto de Anchieta, em<br />

que a voz é a do homem fi liado ao governo português, torna-se necessária<br />

para se perceber o contorno que o homem das letras direciona ao nativo em<br />

sua obra poética. Assim, pôde-se notar o cam<strong>in</strong>ho fi gurativo entre o espaço<br />

da antropofagia e a devoção ao rosário nos poemas à Virgem.<br />

Para Veríssimo (1998, p.74), “nenhum dos sermonistas brasileiros coloniais<br />

exerceu no seu meio e tempo ação ou <strong>in</strong>fl uência que se lhes refl etisse<br />

nos sermões, dando-lhes a vida e emoção que a<strong>in</strong>da descobrimos nos de<br />

Vieira”. Defensor <strong>in</strong>cansável dos índios, resguardadas as devidas <strong>in</strong>tenções,<br />

seus textos são mais políticos, vistas as condições de produção e a ideologia<br />

que determ<strong>in</strong>aram os rumos do discurso veiculado pela propaganda da fé.<br />

Esmerado nos argumentos, concebe o negro como propenso à escravidão e


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 19<br />

põe em relevo a questão <strong>in</strong>dígena, com o <strong>in</strong>tuito de justifi car a catequese e o<br />

trabalho dos <strong>in</strong>dígenas nos aldeamentos.<br />

Dentre a produção de Vieira, o Sermão da Primeira Dom<strong>in</strong>ga da Quaresma<br />

representa o universo do nativo por voltar-se ao quadro social português,<br />

ilum<strong>in</strong>ado pelas alegorias polares do luxo e dos explorados no Maranhão,<br />

onde foi pregado. No Sermão da Epifania revela-se a face do <strong>in</strong>dígena sob a<br />

alegação das “razões da natureza” e das “razões das Escrituras”. A primeira<br />

diz respeito ao erro em determ<strong>in</strong>ar as nações de acordo com a cor da pele;<br />

e a segunda prega a igualdade entre os cristãos <strong>in</strong>dependente da cor ou da<br />

nobreza. Não se pode, no entanto, ler seus sermões <strong>in</strong>genuamente, supondo<br />

que a defesa dos <strong>in</strong>dígenas partisse, antes, de sua benevolência, que da subord<strong>in</strong>ação<br />

ao poder econômico e religioso europeus. O que os envolve, sob<br />

o verniz da oratória, é a justifi cativa do trabalho escravo, tanto o considerado<br />

ilícito, como o aprisionamento feito pelos colonos, quanto o lícito, organizado<br />

nos aldeamentos para servir à Companhia, sob a proteção da Coroa.<br />

Basílio da Gama fi gura em O Uraguai, um século após os Sermões de<br />

Vieira, a altivez do <strong>in</strong>dígena, seus dotes guerreiros, dest<strong>in</strong>ando o papel de<br />

<strong>in</strong>imigo aos jesuítas. De cunho epopeico, salvo as rupturas feitas com o gênero,<br />

a obra <strong>in</strong>sere a cor local e a terra americana como elementos fundadores<br />

do ideal de nação. Ao conjugar terra e homem, para desestabilizar o projeto<br />

missionário, põe as duas culturas em choque, em que a superioridade<br />

bélica do <strong>in</strong>vasor dizima os aldeados na batalha dos Sete Povos das Missões,<br />

enquanto a resistência do nativo sobreleva a defesa pela permanência na<br />

terra e pelo direito sobre ela.<br />

Mesmo com características diversas, que obedeciam aos padrões históricos<br />

e ideológicos estabelecidos, o <strong>in</strong>dígena foi arquitetado, nos textos<br />

reunidos na Parte I deste trabalho, de acordo com o olhar do <strong>in</strong>vasor. A<strong>in</strong>da<br />

que O Uraguai estabeleça o embrião do herói nacional, dissem<strong>in</strong>ado posteriormente<br />

no romantismo, permanece em sua arquitetura o traço imanente<br />

do colonizador que rechaça a fi gura do nativo como homem da terra e dotado<br />

de direitos.<br />

Pontuados os autores mais relevantes nesse ínterim, dentre a variedade<br />

existente no tocante à temática <strong>in</strong>dígena, retoma-se, também, pelo mesmo<br />

objetivo, o momento s<strong>in</strong>gular da literatura brasileira em que o índio foi um<br />

motivo de destaque dessa produção. Trata-se do <strong>in</strong>dianismo, formulado nos<br />

ideais românticos, em que a personagem <strong>in</strong>dígena estrutura-se sob as con-


20 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

dições de herói, multifacetada em virtude do estilo e da ideologia da época.<br />

O termo <strong>in</strong>dianismo alcançou seu apogeu num complexo movimento que<br />

reuniu, ao mesmo tempo, os aspectos históricos e culturais à tentativa de<br />

libertação das formas cristalizadas nos movimentos literários anteriores,<br />

em especial, as do racionalismo clássico. Historicamente, o Ocidente viu<br />

despertar a evolução da ciência e da fi losofi a, o que suscitou mudança no<br />

pensamento a partir de então. O refl exo das transformações de pensamento<br />

e de conceitos levou às manifestações que afi rmaram a liberdade do <strong>in</strong>divíduo<br />

e a supremacia da natureza, fatores fulcrais para o desenvolvimento<br />

estético e ideológico do romantismo.<br />

Enquanto o movimento se consolidava nos países europeus, a América<br />

não havia entrado em s<strong>in</strong>tonia com as mudanças, de modo especial, as colônias,<br />

que a<strong>in</strong>da estavam encarceradas pela dom<strong>in</strong>ação da Igreja e da nobreza.<br />

Somente com a difusão do romantismo em Portugal, sob <strong>in</strong>fl uência<br />

da França, e tardiamente na Espanha, é que a América <strong>in</strong>icia o processo de<br />

alargamento dos ideais históricos e literários correspondentes a tais confi<br />

gurações. As transformações marcantes no cenário lat<strong>in</strong>o-americano deram-se<br />

no momento em que as nações se constituíam como <strong>in</strong>dependentes.<br />

A <strong>in</strong>dependência conquistada fez vigorar o sentimento de nacionalidade,<br />

dada a necessidade de se estabelecer uma face ao povo marcado pelas<br />

duas pertenças: “não éramos e já não queríamos ser ‘re<strong>in</strong>óis’ ou ‘fi lhos de<br />

Portugal’, mas também não nos podíamos considerar <strong>in</strong>dígenas” (Roncari,<br />

2002, p.288). Diante dessa bipartição identitária, o Brasil teve de se pensar<br />

como nação após 1822, marco de sua <strong>in</strong>dependência política, e se fi rmar<br />

socioculturalmente, mesmo com os traços europeus a<strong>in</strong>da presos pelos al<strong>in</strong>havos<br />

da colonização. Aliado ao fator histórico encontra-se o ideal literário<br />

romântico, impregnado de valores s<strong>in</strong>gulares e direcionado à afi rmação da<br />

origem do “ser brasileiro”. Tal aspecto encontrou ressonância na existência<br />

do elemento <strong>in</strong>dígena, visto como a possibilidade ímpar de ser um dos<br />

componentes constitu<strong>in</strong>tes da cultura e da nação enquanto genu<strong>in</strong>amente<br />

brasileiro. Assim, do passado não poderiam emergir cavaleiros medievais,<br />

tal como na Europa; nem poderiam ser resgatados os colonizadores, em<br />

consequência do não preenchimento das condições impresc<strong>in</strong>díveis para<br />

o lugar que ocupariam. Restava, então, “ver no índio o homem bom por<br />

natureza, bom por origem, dotado da bondade natural”, conforme aponta<br />

Sodré (1969, p.257), para <strong>in</strong>stitucionalizar o elemento local.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 21<br />

A tentativa de se construir uma literatura essencialmente brasileira, alicerçada<br />

no <strong>in</strong>dígena como herói e na natureza exuberante, produziu uma<br />

realidade artifi ciosa, ao “traduzir para termos nacionais a temática da Idade<br />

Média”, permit<strong>in</strong>do a escritores como Gonçalves Dias e Alencar reservarem<br />

“ao índio virtudes convencionais de antigos fi dalgos e cavaleiros”, segundo<br />

Holanda (1995, p.56). Vestido na pele romântica, o índio deixaria<br />

a condição de antropófago e bárbaro para se constituir como fundador da<br />

nação brasileira a partir da confraternização com o não índio. Mesmo heroicizado<br />

romanticamente, com a marca impressa da valentia, estava sempre<br />

sob a mira do olhar determ<strong>in</strong>ante do colonizador. Não possuía a validade da<br />

natureza pura, pois sua valentia fora herdada da <strong>in</strong>fl uência medieval, que<br />

o colonizador <strong>in</strong>seriu no contexto e o escritor tomou para si como baliza.<br />

Diante disso, a literatura, formulada a partir desse postulado, reafi rma o estereótipo<br />

do valente guerreiro: “o homem natural, puro, a<strong>in</strong>da não corrompido<br />

pelos maus costumes da civilização”, como <strong>in</strong>terpreta Roncari (2002,<br />

p.290).<br />

Não foi impresso, no entanto, como fi gura humanizada, a exemplo das<br />

demais com as quais dividiu o enredo. Foi, antes de tudo, um emblema,<br />

cerzido com as cores locais e que escondia, sob seus pontos em relevo, o<br />

constante matiz de nativo selvagem a quem o não índio deveria civilizar,<br />

impondo sua cultura. Essa “transplantação” impressa na fi gura do índio,<br />

como afi rma Veríssimo (1998), deu uma atmosfera de “falsidade”, gerando<br />

um empecilho para construir um elemento orig<strong>in</strong>al frente à tendência de<br />

imitação do passado.<br />

A temática, que emergiu muito mais do ensaio de Magalhães acerca da<br />

História da Literatura do Brasil que de sua poesia, Suspiros poéticos e saudades,<br />

acentuou-se com o lançamento de A Confederação dos Tamoios, no<br />

qual os s<strong>in</strong>ais de valorização do índio já se faziam transparentes. A<strong>in</strong>da que<br />

merecedor de críticas veementes de José de Alencar, que lhe atribuiu valor<br />

menor, é motivo de destaque por “fazer do índio um elemento demasiado<br />

<strong>in</strong>teressante da nossa nacionalidade”, segundo Veríssimo (1998, p.208). Tal<br />

aspecto proporia Gonçalves Dias, posteriormente, ao reconstituí-lo na poesia<br />

brasileira, dando-lhe novas feições.<br />

É na poesia de Gonçalves Dias que o <strong>in</strong>dianismo se reveste de expressão,<br />

valorizando o índio paralelamente à tradução da realidade do país.<br />

Coube à poesia do autor maranhense a grandeza de transfi gurar os moti-


22 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

vos pré-anunciados por outros defensores da causa nacionalista, e criar em<br />

sua poesia a autenticidade de que a primeira geração romântica carecia. O<br />

índio gonçalv<strong>in</strong>o estampa-se, antes de tudo, como um guerreiro dos ideais<br />

passadistas, ao evocar o estereótipo nacional. Assim, o dest<strong>in</strong>o das tribos e<br />

o confl ito que as cercava são esboçados no tom épico de alguns poemas dos<br />

Primeiros cantos, como que antecipando a tragédia que sobreviria ao povo<br />

tupi. Sua poesia foi reconhecida como acontecimento decisivo no momento<br />

romântico-<strong>in</strong>dianista, pois, segundo Candido (1997, p.72), “a partir dos<br />

Primeiros cantos, o que antes era tema – saudade, melancolia, natureza, índio<br />

– se tornou algo novo e fasc<strong>in</strong>ante, graças à superioridade da <strong>in</strong>spiração<br />

e dos recursos formais”.<br />

Além da profundidade com que registrou as mudanças formais no trato<br />

com o poema, foi quem soube promover com mais brilho o que se denom<strong>in</strong>ou<br />

de “poesia americana”. Consta, nessa l<strong>in</strong>ha, o índio tal qual o poeta<br />

idealizou, junto à tribo, próximo ao ideal de unir natureza e honra, valentia<br />

e tradição, a exemplo da confi guração dada ao expoente de sua obra, no<br />

qual <strong>in</strong>sere o ritual antropofágico: I-Juca Pirama. Esse universo foi reiterado,<br />

também, dentre outros poemas, em Os Timbiras, no qual fecundou sua<br />

apreensão sensível ao gosto pelo nacional.<br />

Não só o movimento, a cor local e a convenção heroica se fi zeram marcar<br />

na representação do índio em Gonçalves Dias. Tornou possível a presença<br />

lírica no espaço dest<strong>in</strong>ado à mulher <strong>in</strong>dígena impressa em Leito de folhas<br />

verdes, em que a espera pelo amado é fusionada à natureza como que em<br />

cumplicidade ao ato. Um notável momento de lirismo sem perder o caráter<br />

natural das imagens tecidas em torno da angústia da espera amorosa, algo<br />

que remonta à antiga tradição do amor impossível, dado o afastamento do<br />

herói para a guerra.<br />

Nos meandros percorridos em favor de uma visão mais abrangente da<br />

sociedade brasileira, Gonçalves Dias desponta como um dos visionários<br />

em relação à temática <strong>in</strong>dígena. E não poderia ser diferente, uma vez que,<br />

refl et<strong>in</strong>do o resultado da ação do colonizador sobre o nativo, abriria cam<strong>in</strong>hos<br />

para novas <strong>in</strong>terpretações acerca de sua escravidão. Como estudioso<br />

da cultura ameríndia, não apenas se preocupou em retratá-la dentro dos<br />

limites formais e estéticos, mas permitiu que toda uma geração de escritores<br />

posteriores pudesse rever a natureza conceitual de seu esboço e o seu valor<br />

na constituição de um povo.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 23<br />

Na prosa romântica, destaca-se a trilogia alencariana que possibilita<br />

o encontro do leitor com um <strong>in</strong>dianismo mais acentuado do que fora em<br />

Gonçalves Dias. O Guarani, Iracema e Ubirajara são a manifestação de<br />

uma experiência estético-temática a<strong>in</strong>da não fecunda nos autores que edifi<br />

caram o índio anteriormente. Somente com a atuação de José de Alencar,<br />

como romancista, após o estágio de folhet<strong>in</strong>ista que exerceu, é que o tema<br />

desperta a devida atenção. Isso se deve, em parte, porque o romance alencariano<br />

atendeu aos anseios exigidos pela sociedade da época, tornando-se um<br />

<strong>in</strong>strumento de consolidação do <strong>in</strong>dianismo. Nesse aspecto, Meyer (1996,<br />

p.311) aponta que, em O Guarani, Alencar soube “manter acesa a atenção<br />

diária do público”, como se nota na elaboração da personagem de Loredano,<br />

que “é tão folhet<strong>in</strong>esca quanto são folhet<strong>in</strong>escas as relações de lealdade<br />

e traição, estas não muito diferentes daquelas relações patriarcais que regem<br />

o mundo de D. Antonio de Mariz”.<br />

As obras do autor, recortadas aqui, devem ser tomadas, junto aos demais<br />

textos apontados anteriormente, como as que defi niram “a oposição entre<br />

uma cultura europeia, <strong>in</strong>vasora e colonizadora, e uma cultura autóctone,<br />

<strong>in</strong>vadida e colonizada”, segundo Santiago (2003, p.3), ao apontar que existe<br />

um escalonamento cronológico dentro da produção de Alencar. O Guarani<br />

revela a esfera feudal que abraçava os senhores da terra e mescla o elemento<br />

português e o <strong>in</strong>dígena na busca de uma civilização a se formar; Iracema,<br />

com sua l<strong>in</strong>guagem simbólica, representa a gênese da nação brasileira, fruto<br />

do encontro do civilizador e do não civilizado; em Ubirajara, Alencar faz<br />

o retorno às fontes em busca das “ideias dos cronistas e missionários” para<br />

“desrecalcar os valores culturais <strong>in</strong>dígenas que se encontravam camufl ados,<br />

escondidos, nos textos escritos por estrangeiros” (ibidem, p.4). Este último<br />

é um olhar ao nativo pré-cabral<strong>in</strong>o, na tentativa de representá-lo em seu<br />

estado natural, sem as deturpações do europeu que o hostilizou.<br />

Mesmo respondendo às expectativas da sociedade escravocrata, que exigia<br />

o elemento nativista como representante de sua formação, Alencar obteve<br />

o desafeto de alguns críticos que apontavam para a transparente “falsidade”<br />

da construção das personagens, não traduz<strong>in</strong>do, assim, “a realidade<br />

do índio”, como afi rma Sodré (1969, p.281). Segundo o crítico, Joaquim<br />

Nabuco (1875, O Globo) apontou como “falsos” e “<strong>in</strong>verossímeis” os aspectos<br />

<strong>in</strong>erentes ao <strong>in</strong>dígena, e Alencar rebateu dizendo que “o selvagem é<br />

um ideal, que o escritor <strong>in</strong>tenta poetizar, desp<strong>in</strong>do-o da crosta grosseira de<br />

que o envolveram os cronistas”, refer<strong>in</strong>do-se à obra O Guarani.


24 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Frankl<strong>in</strong> Távora também exerceu seu papel de crítico diante da produção<br />

<strong>in</strong>dianista de Alencar, atacando-o, primeiramente, em relação à obra<br />

O Gaúcho e, em seguida, Iracema. Sob o pseudônimo de Semprônio, deu o<br />

tom da <strong>in</strong>vestida contra o maior representante do gênero fi ccional a mando<br />

de D. Pedro II, que se viu às voltas com as denúncias de abuso de poder<br />

feitas por Alencar. Tais ataques, segundo Candido (1997, p.325), fi zeram<br />

Alencar “refl etir sobre o sentido da própria obra e tentar uma espécie de<br />

teoria justifi cativa, que não restr<strong>in</strong>gisse o seu valor nacional aos livros <strong>in</strong>dianistas”.<br />

A manifestação dessas ideias teria orig<strong>in</strong>ado o prefácio de Sonhos<br />

d’Ouro, no qual classifi ca “uma obra já em grande parte realizada”<br />

em três momentos: “a vida do primitivo; a formação histórica da Colônia,<br />

marcada pelo contato entre português e índio; a sociedade contemporânea”<br />

(idem, p.326).<br />

Duas frentes chocaram-se: de um lado, os <strong>in</strong>conformados com a ousadia<br />

de Alencar na proposta de atualização, ou mesmo de descoberta dos mitos<br />

<strong>in</strong>dígenas; de outro, os defensores de sua causa. O autor já antecipara<br />

à crítica que seus índios causariam estranheza aos que não tivessem “estudado<br />

com alma brasileira o berço de nossa nacionalidade”. Nessa vazante<br />

de op<strong>in</strong>iões, há um fator evidente que não se pode negar. A estranheza provocada<br />

pela formatação do índio de Alencar parte de conceitos europeus,<br />

com signifi cados afl uentes, que consideravam bárbaro “tudo o que se afasta<br />

de seus costumes” como apontou Proença (1959, p.48). Assim, os heróis,<br />

construídos a partir não só das concepções fi losófi cas, mas de um ambiente<br />

político que fazia livre curso em direção ao nativo, foram tomados como<br />

“contrafeitos”.<br />

Ao se aproximar das concepções produzidas por Alencar, observa-se<br />

que lhe foi ancorada a <strong>in</strong>fl uência de Chateaubriand e Cooper, nos quais<br />

teria modelado o estereótipo brasileiro. Cout<strong>in</strong>ho (1986, p.74-5) aponta<br />

como um caso “paradoxal” tal polêmica: “o <strong>in</strong>dianismo francês, nascido<br />

do índio brasileiro, é importado pelos nossos escritores como uma planta<br />

exótica. Imitávamos, por meio do francês, o que já era nosso; o que já estava<br />

na origem da nossa história literária”. Importada a ideia ou não, Alencar<br />

contrapõe a crítica afi rmando que “se assim fosse, haveria co<strong>in</strong>cidência, e<br />

nunca imitação; mas não é” (ibidem, p.148), e explica: “Cooper considera o<br />

<strong>in</strong>dígena sob ponto de vista social, e na descrição dos seus costumes foi realista;<br />

apresentou-o sob o aspecto vulgar” (ibidem, p.149). A<strong>in</strong>da a respeito


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 25<br />

de autor de Atala, afi rma: “quanto à poesia americana, o modelo para mim<br />

a<strong>in</strong>da hoje é Chateaubriand; mas o mestre que eu tive, foi esta esplêndida<br />

natureza que me envolve, e particularmente a magnifi cência dos desertos<br />

que eu perlustrei ao entrar na adolescência” (idem, ibidem, p.149).<br />

Embora se tenha uma fortuna crítica extensa em torno da temática nacionalista,<br />

dentro dos limites do romantismo, cabe, aqui, destacar apenas<br />

os tópicos relevantes às <strong>in</strong>dagações propostas para esse fi m. No conjunto<br />

dos critérios proem<strong>in</strong>entes, coube ao índio o papel de homem bom, natural,<br />

conforme a teoria de Rousseau, a quem se dest<strong>in</strong>ou a própria feição do povo<br />

que se constituía. Na ânsia por convertê-lo em símbolo nacional, Alencar<br />

confi gurou-o como “herói de nossa raça”, diferente do que Mário de Andrade<br />

faria com Macunaíma, herói de “nossa gente”. O que se traduziu em<br />

identidade de tema foi marcado pela diversidade de ângulo no modernismo,<br />

ressaltando a gênese do brasileiro em meio à diversidade de culturas<br />

que traçaram seu perfi l.<br />

Afi rmadas as características do <strong>in</strong>dianismo, ocorreu, quase concomitantemente,<br />

uma expansão no olhar direcionado à cultura brasileira. De<br />

Norte a Sul, Alencar transpôs a realidade regional para a literatura, o que<br />

fez emergir um número signifi cativo de escritores que lhe foram contemporâneos,<br />

ou sucessores, na defesa do sertanismo. Herdado dos ideais românticos,<br />

o índio passa a fi gurar nas pág<strong>in</strong>as dos romances como s<strong>in</strong>ônimo<br />

de orig<strong>in</strong>alidade brasileira que se opunha ao litoral já “contam<strong>in</strong>ado” pela<br />

onda externa.<br />

A transposição da temática, que almejava exprimir o país por meio da<br />

constituição das raças, alcança o sertanejo como justifi cativa para a supremacia<br />

natural, somando a condição de representante da brasilidade com o<br />

cenário exótico da natureza exuberante que o cercava. Segundo Candido<br />

(1997, p. 192), os três maiores representantes, Bernardo, Alencar e Taunay,<br />

“tomaram a região como quadro natural e social em que se passavam atos e<br />

sentimentos sobre os quais <strong>in</strong>cidia a atenção do fi ccionista”. O que marcou<br />

a produção desses escritores foi a humanidade da narrativa, dando ênfase<br />

aos aspectos “humano, <strong>in</strong>dividual ou social”, <strong>in</strong>dependentemente dos fatores<br />

regionais a que pertenciam. Essa postura diferenciou-os de autores<br />

pós-românticos que fi zeram sobressair o aspecto pitoresco ao humano. A<br />

paisagem e seu exotismo assumiram um posto de equivalência ao homem,<br />

revelando sua “verdadeira alienação” ante o meio.


26 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Na l<strong>in</strong>ha de afi rmação do aspecto nacional-regionalista encontra-se Bernardo<br />

Guimarães, considerado pela crítica como “um contador de histórias”,<br />

dada a <strong>in</strong>fl uência marcante da narrativa oral que nele se expressou.<br />

Suas obras, produzidas paralelamente às de Alencar, evocaram o índio em<br />

meio ao sertão, conforme se constata em O ermitão de Muquém, o conto Jupira,<br />

publicado na História e tradições da província de M<strong>in</strong>as-Geraes e O índio<br />

Afonso. A feição <strong>in</strong>dianista de Alencar “exaltou o passado <strong>in</strong>dígena com<br />

o <strong>in</strong>tuito de afi rmar a nossa nacionalidade em face do europeu”, enquanto<br />

Guimarães “procurou fi xar a realidade do mestiço na comunidade rural”,<br />

conforme apontamentos de Cout<strong>in</strong>ho (1986, p. 274).<br />

No conto Jupira encontram-se os traços românticos na composição da<br />

personagem, mas é visível, também, um grau de deslocamento do eixo fi -<br />

gurativo, em que se elevam marcas da <strong>in</strong>tervenção do não índio. Essa característica<br />

faz deslizar o universo exótico do primitivo e a natureza, em<br />

sua essência pitoresca, para uma vertente transitória em que o índio já não<br />

se <strong>in</strong>sere no contexto de habitante natural, idealizado em sua totalidade,<br />

pois foi modifi cado pelo <strong>in</strong>vasor. Diante disso, a sociedade <strong>in</strong>stituída não o<br />

reconhece como civilizado, permanecendo no hiato cultural em que o idealismo<br />

tangencia o realismo, mas não se defi nem isoladamente. O conto de<br />

Guimarães contribui, signifi cativamente, para estabelecer o limite em que<br />

se encontra a fi gura do herói <strong>in</strong>dígena nacional, apontando para as consequências<br />

da colonização e para a urgência de re<strong>in</strong>terpretação da cosmogonia<br />

nativa.<br />

Com o declínio do romantismo, ante as mudanças ocorridas nos diversos<br />

setores sociais, o índio deixou de ocupar o espaço prioritário na literatura.<br />

Assim, aliados à quebra do ritmo nacional de desenvolvimento, os núcleos<br />

temáticos emergiram dos confl itos históricos e a produção voltou-se ao elemento<br />

negro, como em Castro Alves, ou evadiu-se em diferentes pontos,<br />

tal como o aspecto egótico presente em Casimiro de Abreu e Álvares de<br />

Azevedo.<br />

A temática <strong>in</strong>dígena não se apagou totalmente diante das novas <strong>in</strong>cursões<br />

literárias, mas o liame estabelecido entre o autor romântico e a natureza,<br />

em suas diversas manifestações, cedeu espaço para a objetividade que<br />

iria captar a existência tal como se apresentava aos sentidos. Autores como<br />

Machado de Assis, em Americanas; Inglês de Sousa, em Contos amazônicos;<br />

Rodolfo Teófi lo, em O Paroara; Xavier Marques, em P<strong>in</strong>dorama, tradu-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 27<br />

ziram o amálgama de uma geração enredada nos dons da observação e da<br />

análise que, aos poucos, reagem e vão afastando o véu da idealização contundente<br />

do nativo. Cada um, à sua maneira e em seu tempo, guiados pelos<br />

resquícios românticos ou voltados às tendências científi cas, pontuaram a<br />

feição <strong>in</strong>dígena de acordo com as impressões recolhidas.<br />

É no projeto modernista, no entanto, que a presença do <strong>in</strong>dígena ressoa<br />

com maior timbre, após o romantismo. Em razão da complexidade ideológica<br />

e estilística <strong>in</strong>stalada no modernismo brasileiro, pontuam-se algumas<br />

das vertentes que fomentaram a criação das obras portadoras de matizes<br />

que compõem o quadro em que sobressaem os aspectos relacionados ao conhecimento<br />

do povo brasileiro, responsáveis pela releitura da nação como<br />

realidade essencialmente local. Em l<strong>in</strong>has gerais, o modernismo <strong>in</strong>stigou a<br />

pesquisa nacional, pela qual relevou a criação e a temática popular, visando<br />

à universalidade da literatura brasileira, em que os pigmentos locais se<br />

<strong>in</strong>corporassem ao ideário culto. Dentro dessas premissas, a fi gura do índio<br />

desponta não mais como herói idealizado, conforme o molde do romantismo,<br />

mas pela l<strong>in</strong>guagem articulada, que abriga o complexo cultural da <strong>in</strong>fância<br />

brasileira, no movimento passado, presente e futuro. Do conjunto de<br />

obras relevantes nesse aspecto, destaca-se, primeiramente, Macunaíma, de<br />

Mário de Andrade, na qual se <strong>in</strong>screve o testemunho do caráter brasileiro<br />

pelas peripécias de um índio nascido na tribo Tapanhumas, às margens do<br />

rio Uraricoera.<br />

Na rapsódia de Mário visualizam-se os valores musicais, os bailados, a<br />

pesquisa etnográfi ca, como também, o aproveitamento de elementos literários,<br />

colhidos no campo folclórico que conheceu e estudou a partir de suas<br />

viagens pelo país. Resulta desse encontro com as raízes da gênese brasileira,<br />

um homem sensível, que não se prende aos valores do progresso alienador<br />

que se espraiava sobre os pr<strong>in</strong>cipais centros. Del<strong>in</strong>eado pela presença marcante<br />

da preguiça, Macunaíma sai de sua terra em busca de aventuras, o que<br />

o faz mostrar, pausadamente, as cenas de profundidade mítica da essência<br />

do povo brasileiro. Não se trata de uma preguiça no sentido depreciativo<br />

do termo, e sim, uma preguiça de causalidade, composta pelas ações que<br />

recriam o universo primitivo. No índio “da mata virgem” é impresso tanto<br />

o aspecto natural, específi co das etnias <strong>in</strong>tocadas pelas mãos do <strong>in</strong>vasor,<br />

quanto o poder destrutivo imposto pela máqu<strong>in</strong>a, que usurpa a sensibilidade<br />

do homem americano, tornando-o genérico em sua constituição, ou seja,


28 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

destituído de seus autênticos valores. Segundo Lopez (1972, p.171), Mário<br />

“chegava à síntese nacional como postulado estético criando um herói que<br />

simboliza o brasileiro <strong>in</strong>temporal, fi rmado nas tradições móveis”, o que o<br />

torna d<strong>in</strong>âmico tal qual a rapsódia, que não se prende a um espaço defi nido,<br />

pluralizando as ações de um homem <strong>in</strong>característico.<br />

Segu<strong>in</strong>do os pressupostos do modernismo, Cobra Norato, de Raul<br />

Bopp, atualiza, a exemplo de Macunaíma, o cabedal mítico amazônico. O<br />

cam<strong>in</strong>ho que percorre é o de reler a história para redescobrir o manancial<br />

mítico soterrado nas raízes da oralidade amazônica, que ora se lança como<br />

imagem para conjugar a feição de sua autenticidade. Da civilização <strong>in</strong>dígena<br />

são extraídos os modelos que solidifi cam o programa de reconstrução da<br />

consciência nacional pelo <strong>in</strong>ventário de sua origem, na qual estão <strong>in</strong>stalados<br />

os mitos, as lendas, o folclore, dentre outros elementos que coabitam a fi -<br />

sionomia do povo. Dentre o complexo mítico amazônico, a matriz de Cobra<br />

Grande <strong>in</strong>staura a busca pelo ideal nos passos de seu herói à procura “da<br />

fi lha da Ra<strong>in</strong>ha Luzia”.<br />

A trajetória do herói, por si só, contribuiria para dar ao poema o caráter<br />

épico. No entanto, o aspecto simbólico, colhido dos mitos, dá-lhe uma coloração<br />

lírica. Dessa forma, fusionam-se o épico e o lírico na composição hibrida<br />

que sustenta a metáfora do homem chegando ao mundo mágico e <strong>in</strong>determ<strong>in</strong>ado,<br />

povoado de imagens que acolhem o universo aquático e mole<br />

dos charcos amazônicos pela visão, dando-lhe d<strong>in</strong>amismo e dramaticidade.<br />

Dadas as características do poema, não se visualiza uma personagem <strong>in</strong>dígena<br />

como agente da ação, tal como em Macunaíma. A presença coletiva<br />

manifesta-se pelo mito, do qual se absorve a essência do homem primitivo<br />

em unidade com a natureza. Por ele, são entrelaçados os elementos do fabulário<br />

amazônico para revelar o traço particular da nacionalidade.<br />

Ao lado de Macunaíma e Cobra Norato, lista-se Manuscrito holandês ou<br />

A peleja do caboclo Mitavaí com o Monstro Macobeba, de Manuel Cavalcanti<br />

Proença. Mesmo publicada em tempo posterior às demais, a obra de<br />

Cavalcanti é signifi cativa no contexto de releitura do passado mítico, fundador<br />

das imagens do homem primitivo, e alonga a perspectiva do índio<br />

em deslocamento, como se encontra em Macunaíma. A narrativa em torno<br />

da fi gura de Mitavaí Arandu, personagem central e herdeiro da etnia a que<br />

pertenceu o “herói sem nenhum caráter”, compõe um quadro multifacetado<br />

de recortes folclóricos, no qual se estampa o jogo entre o histórico, refe-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 29<br />

rido na primeira parte do título, e o lendário, impresso na fi gura do monstro<br />

Macobeba, na segunda parte que dá nome à obra.<br />

Sua l<strong>in</strong>ha constitutiva aproxima-se, em parte, da obra de Mario de<br />

Andrade, no que tange ao compêndio de saberes oriundos da oralidade,<br />

componentes essenciais na fi guração do nativo enredado pelo bem e mal,<br />

pelo poder e submissão ao progresso. Como prolongamento de Macunaíma,<br />

a narrativa de Cavalcanti resgata, também, as canções de cordel, os<br />

temas lendários, o folclore regional e o conhecimento da medic<strong>in</strong>a alternativa,<br />

como estratégia de sustentação metafórica da peleja entre Mitavaí e o<br />

monstro Macobeba. Além da confi guração lendária que abriga, o monstro<br />

alarga o signifi cado de sua presença, ao imprimir a feição crítica que suscita<br />

em relação ao aspecto socioeconômico de regiões em que o <strong>in</strong>dígena é destituído<br />

de seu ethos para dar lugar à apropriação das terras pelas empresas<br />

estrangeiras que se <strong>in</strong>stalam em busca de exploração das riquezas naturais.<br />

Em meio ao complexo mítico-folclórico enlaçado na narrativa, Mitavaí<br />

ocupa o posto de catalisador, pois as ações decorrem do encontro desse pequeno<br />

índio, sem nome em pr<strong>in</strong>cípio, às margens do rio Irovi. Ao mesmo<br />

tempo que se fi lia à descendência de Macunaíma, sua biografi a tende a ser<br />

mais acidentada, pela <strong>in</strong>serção do aspecto negativo da aculturação a que o<br />

nativo foi exposto ao longo da colonização. A circularidade da biografi a do<br />

“Imperador da mata virgem” demarca a saída de sua condição tribal, em<br />

meio aos costumes locais, e o retorno, no qual se consolida a ausência da<br />

manifestação coletiva, tornando-se uma estrela <strong>in</strong>útil a banzar no céu. Na<br />

l<strong>in</strong>ha biográfi ca de Mitavaí, o índio é posto em condição aguda de <strong>in</strong>terferência<br />

cultural do não índio, o que explica não conter retorno ao seu hábitat,<br />

uma vez que a narrativa se abre para o litoral, e o herói desce o outro lado do<br />

morro e desaparece. O que há em comum é a geografi a do “sem fi m”, permit<strong>in</strong>do<br />

a sobrevivência no mito, atualizado cada vez que for solicitada sua estrutura<br />

arquetípica, pelas escavações subterrâneas da l<strong>in</strong>guagem primitiva.<br />

A<strong>in</strong>da percorrendo os túneis que levam à l<strong>in</strong>guagem primitiva, impressa<br />

na <strong>in</strong>fância do país, esse percurso destaca poemas de dois autores de movimentos<br />

estéticos diferentes, mas que conjugam particularidades na representação<br />

do nativo. Os poemas escolhidos dentre a obra de Gregório de<br />

Matos e de Oswald de Andrade possuem um ponto em comum, no qual o<br />

homem natural e a relação com a cultura <strong>in</strong>vasora são fi gurados a partir do<br />

jogo estabelecido pela l<strong>in</strong>guagem.


30 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Os poemas de Gregório de Matos manifestam, semanticamente, um dos<br />

traços da formação histórica, evocado pela mestiçagem, <strong>in</strong>corporando a língua<br />

corrente nas ruas e os mestiços ascendentes ao poder, abrigados sob o<br />

jugo do riso e do escárnio. A construção, em que o nativo é <strong>in</strong>serido como<br />

ruptura do cânone temático, é feita em via dupla: critica os caramurus, pela<br />

posição ocupada no poder, e <strong>in</strong>sere um código novo, ao misturar o léxico<br />

<strong>in</strong>dígena na composição das imagens na textura poética, desviando o curso<br />

do paradigma ibérico para o americano. Dessa maneira, desestabiliza a forma<br />

clássica predom<strong>in</strong>ante, imprim<strong>in</strong>do-lhe cor local, ao mesmo tempo que<br />

satiriza o poder, ao qual nutria aversão, dadas as mazelas ideológicas das<br />

quais foi partidário. A <strong>in</strong>serção do índio na poesia por meio da língua local<br />

digere, antropofagicamente, a língua-mãe, enquanto manifestação específi<br />

ca da devoração pela palavra, que não mais s<strong>in</strong>gulariza o poder <strong>in</strong>vasor.<br />

Na poesia Pau-brasil, a manifestação antropofágica passa a ser um projeto<br />

programático mais abrangente, no qual, além de se solidifi carem os ideais<br />

propostos pelo movimento de 22, a matéria-prima é escavada entre os<br />

textos dos cronistas do século XVI, como oposição ao saber protocolar da<br />

expressão culta e gramaticalizada, em favor da <strong>in</strong>culta e primitiva. As estratégias<br />

para alcançar a essência da l<strong>in</strong>guagem local levam a Poesia Pau-brasil<br />

a desentranhar do texto da Carta de Achamento, de Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha,<br />

os resíduos considerados material básico da constituição do povo brasileiro<br />

pelos caracteres do nativo. Os artifícios utilizados desnudam o discurso do<br />

<strong>in</strong>vasor, como deglutição da presença estrangeira, para imprimir a face do<br />

homem natural. Para Perrone-Moisés (2007, p.24), a proposta da receptividade<br />

crítica <strong>in</strong>cide em “devorar (metaforicamente) os aportes estrangeiros<br />

para nos fortalecermos, como faziam (literalmente) os índios tup<strong>in</strong>ambás<br />

com os primeiros colonizadores do Brasil”.<br />

O retorno às fontes primárias, onde se <strong>in</strong>stalam as matrizes arcaicas,<br />

promove um duplo embate: o de revisitar a gênese brasileira pelo <strong>in</strong>strumento<br />

da releitura dos cronistas, nos quais as imagens impressas receberam<br />

o verniz da colonização; e o de re<strong>in</strong>tegrar a posse do elemento orig<strong>in</strong>ário no<br />

mundo moderno, opondo-se à verdade histórica construída pela tradição.<br />

Dessa forma, além da desconstrução de emblemas arquitetados, a poesia<br />

Pau-brasil renova a expressão poética, pela qual se vislumbra a feição brasileira<br />

que viria a ser lida posteriormente. Os primeiros passos em direção<br />

ao arcabouço mítico, lendário e folclórico do embrião nacional, vistos em


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 31<br />

outros autores do movimento modernista, alicerçaram a poesia Pau-brasil,<br />

que imprimiu na l<strong>in</strong>guagem desentranhada das crônicas a forma irônica e<br />

antropofágica da desarticulação das imagens estrangeiras. Sua função catalisadora<br />

é a de não apenas deglutir o estrangeiro, ou ir às fontes em busca de<br />

reconhecimento local, mas de impulsionar, a partir desses elementos, uma<br />

nova concepção de Brasil e de literatura nacional.<br />

Na trajetória feita pelo texto, o índio é resgatado como a fi gura que Pero<br />

Vaz de Cam<strong>in</strong>ha parodiou durante o pouco tempo em que o observou e<br />

lhe imprimiu feição. O recurso de escavação propõe-se, antes de tudo, a<br />

compor, pela paródia da Carta, um poema em que se estampe a verdadeira<br />

face, distorcida pelo discurso protocolar. Do conjunto de imagens que marcam<br />

a ausência de razão e malícia por parte dos nativos, subl<strong>in</strong>ham-se os<br />

atributos da <strong>in</strong>ocência, bondade e alegria, pelos quais Cam<strong>in</strong>ha visualiza a<br />

contraposição entre selva e civilização. Na recriação poética, esses atributos<br />

são reconstruídos e passam a fi gurar nas relações entre colonizador e colonizado<br />

como “a prova dos nove”, em razão de estarem encobertos na prosa<br />

de Cam<strong>in</strong>ha.<br />

A<strong>in</strong>da que distanciados no tempo e marcados por manifestações estéticas<br />

s<strong>in</strong>gulares, os poemas de Gregório de Matos e de Oswald de Andrade<br />

aproximam-se pelo ângulo antropofágico, por fazerem emergir o confronto<br />

de códigos com signifi cações que vão além do plausível captado pelas lentes<br />

do <strong>in</strong>vasor, e dão conta de outra realidade, impressa no cenário do “ver com<br />

olhos livres”. O movimento pendular que os toca ultrapassa a margem da<br />

fi gura do autor simpatizante com a causa <strong>in</strong>dígena, uma vez que Gregório<br />

contém a substância <strong>in</strong>delével do colonizador e Oswald a substância do<br />

burguês metropolitano. O índio, em Gregório, não foi representado apenas<br />

por <strong>in</strong>serir o homem da terra, mas porque se impunha como necessário<br />

frente às mudanças por que passavam as etnias presentes no momento<br />

histórico. Independente das escolhas ideológicas e de comportamento, os<br />

poemas recortados aqui trazem as nuanças da temática <strong>in</strong>dígena num movimento<br />

em que a produção literária brasileira a<strong>in</strong>da carecia de legitimidade,<br />

de referenciais que a tornassem nacional por essência.<br />

Os últimos textos, apresentados neste roteiro movente, traduzem três<br />

possibilidades de <strong>in</strong>terpretação por meio do “<strong>in</strong>digenismo literário”, por<br />

sobrelevarem a fi gura do índio em sua condição mais crítica, ante os demais<br />

textos estudados. Em Quarup, de Antonio Callado, recria-se o ritual dos


32 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

povos do X<strong>in</strong>gu, enquanto manifestação ritualística de reverência à memória<br />

de uma fi gura célebre, ao mesmo tempo em que questiona, pelas l<strong>in</strong>has<br />

biográfi cas das personagens, o contexto histórico da era Vargas. No entrelaçamento<br />

dos fi os histórico, político e fi ccional dá-se a vertente crítica do<br />

desnudamento das circunstâncias de aculturação a que foram submetidos<br />

os povos x<strong>in</strong>guanos, bem como o projeto de reconstrução do país pelo centro,<br />

no qual seriam postos os fundamentos para torná-lo justo e igualitário.<br />

Considerado um romance de “aprendizagem”, Quarup tece aspectos<br />

voltados para a ideologia da Igreja acerca das questões sociais, suscitados<br />

nos confl itos da Liga dos Camponeses do Nordeste, em que a política da<br />

ditadura, impressa nas prisões de estudantes e guerrilheiros, é al<strong>in</strong>havada<br />

ao projeto de reconstrução do país. Ao lado desses fatores, as drogas e o<br />

fem<strong>in</strong>ismo, presentes nos centros, aliam-se à perspectiva dos habitantes<br />

naturais e da guerrilha. Dessa maneira, a narrativa compõe um mosaico geográfi<br />

co, no qual os temas universais e locais sustentam a temática híbrida<br />

da obra. Permeando esses canais, a personagem pr<strong>in</strong>cipal, padre Nando,<br />

constitui-se duplamente ao voltar-se para o <strong>in</strong>terior do país, como possibilidade<br />

de redescobrir-se e identifi car-se com a nação, e para dentro dos<br />

aspectos existenciais, na autorredescoberta do homem antes do padre revestido<br />

dos ideais cristãos.<br />

Pela travessia do padre idealista, pautado nos conceitos das missões do<br />

Rio Grande do Sul, chega-se ao complexo ritual x<strong>in</strong>guano do quarup, no qual<br />

desembocam as l<strong>in</strong>has divergentes acerca da presença do não índio em meio<br />

à cultura nativa. As perspectivas do olhar de cada personagem e do ângulo<br />

do narrador possibilitam discutir as consequências do progresso estimulado<br />

por Vargas no avanço das fronteiras sobre as terras <strong>in</strong>dígenas. Ao emoldurar<br />

o ritual dos mortos, <strong>in</strong>clui em seu signifi cado a visão do país em relação às<br />

terras e à cultura, que se vai degradando à medida que o homem capitaliza<br />

as riquezas naturais em benefício do governo ou dos grandes latifúndios.<br />

Essa vertente, em que o poder capitalista esmaga a vida natural do homem<br />

da terra, é percebida com mais <strong>in</strong>tensidade na obra de Darcy Ribeiro,<br />

Maíra, em que as l<strong>in</strong>has biográfi cas de suas personagens têm um ponto de<br />

partida, mas permanecem em aberto, sem um fi m determ<strong>in</strong>ado, em razão<br />

da complexidade das relações estabelecidas entre o capital e o homem.<br />

Maíra resulta da manipulação dos dados que Darcy Ribeiro coletou durante<br />

a experiência de dez anos de vivência entre os <strong>in</strong>dígenas. No entanto,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 33<br />

o que o torna signifi cativo no corpus da literatura brasileira, e fundamental<br />

neste trabalho, é sua constituição artística, pela qual teceu as l<strong>in</strong>has frágeis<br />

da aculturação, resultantes da tragicidade do encontro do nativo com a civilização.<br />

Seu valor vai além, se consideradas as múltiplas possibilidades de<br />

leitura que se podem extrair do universo narrativo, em que as l<strong>in</strong>has biográfi<br />

cas das culturas envolvidas entrelaçam-se pelos hábitos e pelas tensões<br />

íntimas dos seres que lhes dão autonomia estética.<br />

Nesse traçado atento do olhar do romancista, concomitante ao do antropólogo,<br />

mergulha-se no mundo mítico mairum, em que são atualizadas as<br />

narrativas ancestrais, como a origem do mundo e do nascimento de Maíra e<br />

Micura, heróis representantes do bem e do mal. Somado ao aspecto mítico,<br />

em que se estabelecem os heróis coletivos, encontra-se outra vertente, em<br />

que o não índio se <strong>in</strong>sere pulverizado entre as ações da Igreja, tanto católica<br />

quanto protestante, ligado ao poder de apossamento das terras, e responsável<br />

pela submissão do nativo ao trabalho servil. O não índio é coletivo em sua<br />

fi guração, representado pelas personagens que abrigam sob seu papel uma<br />

rede de <strong>in</strong>fl uências múltiplas, enquanto o herói Isaías, descendente mairum,<br />

é o “herói problemático”, constituído a partir de seu <strong>in</strong>terior em confl ito<br />

com o mundo externo, de forma especial com os conceitos que lhe são impostos<br />

pelos padres católicos em Roma, na tentativa de torná-lo sacerdote.<br />

O movimento estabelecido pelas biografi as, que vão do <strong>in</strong>terior da cultura<br />

<strong>in</strong>dígena à civilização <strong>in</strong>vasora e vice-versa, traduz o cenário de degradação<br />

do mundo organizado dos mairuns, e simbolicamente, dos <strong>in</strong>dígenas<br />

brasileiros, no qual a organização social e a religiosidade fundem-se para<br />

sustentar o humano. Por meio da realidade narrativa, a devoração, antropofagicamente<br />

entendida, dá-se pela reconstituição das partes do ritual católico<br />

da Eucaristia, que cede o signifi cado da transubstanciação para a analogia<br />

com o mundo <strong>in</strong>dígena em permanente mudança. Assim, Maíra põe em<br />

relevo o trânsito entre a condição identitária do nativo e as consequências<br />

do seu envolvimento com a cultura <strong>in</strong>vasora. O caráter pluridiscursivo do<br />

mosaico desenhado pelas biografi as reúne-se no Índez, último capítulo, em<br />

que a polifonia se v<strong>in</strong>cula ao sentido da obra, permit<strong>in</strong>do que as vozes acentuem,<br />

nos seus hiatos, a constante da des<strong>in</strong>dianização, na qual se põe a lume<br />

à marg<strong>in</strong>alidade a que o índio foi submetido.<br />

Como se percebeu no decorrer dos textos apontados, a descaracterização<br />

da fi gura do <strong>in</strong>dígena tende, gradativamente, a alcançar o limite, como


34 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

se verá no conto Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, em que o nativo,<br />

representado no sangue mestiço, chega ao ápice de sua des<strong>in</strong>tegração tribal,<br />

impelido a regressar à fl oresta como matador de onças, dada a <strong>in</strong>compatibilidade<br />

com o trabalho servil ao não índio. O sentido de regresso ao universo<br />

totêmico, uma vez que o jaguar assume o posto de ancestral, está ligado,<br />

concomitantemente, ao retorno à identidade, burlada pelos hábitos e ações<br />

do não índio, com os quais o mestiço não se adapta, diante da tradição herdada<br />

da mãe índia.<br />

O retorno forçado imprime o teor mais relevante na leitura dos textos<br />

apresentados aqui, enquanto aproximação do índio à sua naturalidade. Ao<br />

deparar com a última fronteira de degradação, o cam<strong>in</strong>ho se traça pela l<strong>in</strong>guagem,<br />

constituída a partir da <strong>in</strong>versão de atividade a que foi dest<strong>in</strong>ado: de<br />

“desonçar” a “desgentar” o sertão. Por esse artifício, a narrativa concede ao<br />

mestiço o poder de comunicar-se com seu ancestral, de reencontrar-se com<br />

seus hábitos, o que o reaproxima de sua condição tribal. Comparar-se às<br />

onças e agir de acordo com suas características signifi ca reaver sua identidade<br />

enquanto descendente do clã fel<strong>in</strong>o. O movimento em direção ao aspecto<br />

primitivo re<strong>in</strong>tegra-o, antes de tudo, à essência, corrompida pela <strong>in</strong>serção<br />

ao universo cozido no qual fora rejeitado, para retornar ao cru, conforme o<br />

arquétipo do mito do fogo a que está <strong>in</strong>tr<strong>in</strong>secamente ligado.<br />

Meu tio o Iauaretê polariza a <strong>in</strong>stância-limite da degradação ao representar<br />

o mestiço em meio à rejeição do não índio, ao mesmo tempo em que<br />

realiza, com maior força imagética, a via de retorno à condição <strong>in</strong>icial, se<br />

considerado o trabalho arquitetado pela l<strong>in</strong>guagem, manifestada na reconstituição<br />

do mito e na fala próxima ao código das onças. Como nos demais<br />

textos, a presença imanente do outro <strong>in</strong>terfere no curso natural da transubstanciação,<br />

imped<strong>in</strong>do-a de se consolidar, seja pela morte física ou pela cultural.<br />

Ante essas características comuns dos textos dispostos no último bloco<br />

de análise, é possível visualizar em seus traços estruturais e semânticos<br />

a proximidade da fi guração do <strong>in</strong>dígena pelo mito, regulados por um grau<br />

maior ou menor de atualização, mas que deságuam no mesmo fl uxo em que<br />

se dá a morte agônica da cultura ameríndia.<br />

Elencadas as características s<strong>in</strong>gulares das obras escolhidas para este<br />

percurso de leitura, é necessário ressaltar que o <strong>in</strong>dígena ocupou um espaço<br />

signifi cativo na literatura brasileira, em que sua presença dividiu as<br />

cenas com as demais personagens, representantes do universo não índio. O


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 35<br />

corpus literário em questão faz compreender que a cultura brasileira se tece<br />

justamente na capacidade de absorver a contribuição das culturas aportadas<br />

sem se perder. Segundo Perrone-Moisés (2007, p.24), “querer reduzir<br />

nossa identidade ao que nos restou dos índios ou ao que nos trouxeram os<br />

africanos é uma regressão”, pois o elemento europeu é parte constitutiva do<br />

americanismo. Pode-se apreender, então, que os matizes da fi guração respondem<br />

a momentos históricos e a uma série de convenções ideológicas e literárias,<br />

pelos quais o homem natural foi desenhado a partir de um ângulo.<br />

Nesse sentido, a fi guração é tomada no sentido de imagem, como propôs,<br />

dentre outros teóricos, Auerbach (1997, p.42 ), ao traçar o signifi cado<br />

que a palavra “fi gura” alcançou a partir da antiguidade pagã, articulada,<br />

posteriormente, pelos padres da igreja no mundo cristão e defi nida, de maneira<br />

mais completa, na Idade Média, estendendo-se para além desse período.<br />

Para o autor, “fi gura” é a palavra que comb<strong>in</strong>a, de modo <strong>in</strong>tegral,<br />

os elementos referentes ao “pr<strong>in</strong>cípio formativo, criativo”, que representa<br />

em imagens o signifi cado do acontecimento ou da história. Entre a história<br />

(littera) e a verdade (veritas), a fi gura é o termo empregado não para anular<br />

a história, mas preencher seu signifi cado mais profundo.<br />

No <strong>in</strong>dianismo romântico, a tendência fi gurativa acentua o matiz por<br />

meio da idealização, aproximando o índio a um herói situado numa esfera<br />

em que as raízes a<strong>in</strong>da possuíam o frescor da terra primitiva, como notado<br />

em Alencar e Gonçalves Dias, com maior acento, e em Bernardo Guimarães,<br />

com menor evidência, dada a característica de transição. Paralelamente<br />

ao idealizado, pode-se notar no presente roteiro, que há, também, o <strong>in</strong>dígena<br />

des<strong>in</strong>dianizado, ou seja, construído pela vertente não-idealizada, na<br />

qual emergem as marcas da “transfi guração étnica”, conforme concepção<br />

de Darcy Ribeiro (1996, p.12), ao concebê-lo como “<strong>in</strong>dist<strong>in</strong>guível do caboclo”.<br />

Dentro dos limites da concepção de Ribeiro (1996), visualizam-se as<br />

obras Quarup, Maíra e Meu tio o Iauaretê, nas quais o trânsito da condição<br />

de índio específi co sofre as “pressões de ordem biótica, ecológica, cultural,<br />

socioeconômica e psicológica” (ibidem, p.12-3). A transformação do modo<br />

de viver para resistir às pressões desencadeia a desarticulação das células<br />

culturais e o esvaziamento de suas crenças, a<strong>in</strong>da que conservem sua identifi<br />

cação étnica. A contribuição de Ribeiro na leitura das obras que estão fora<br />

do idealismo romântico leva ao conceito de <strong>in</strong>digenismo literário, como via


36 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

de confi guração dos elementos culturais ligados, de forma geral, às imagens<br />

impressas pela visão crítica da natureza autóctone.<br />

Nessa l<strong>in</strong>ha de pensamento, poder-se-ia considerar o conto Jupira, de<br />

Bernardo Guimarães, se lhe fosse apenas creditada a vertente transitória<br />

da cultura. Como foi dito em sua apresentação, o autor localiza-se numa<br />

esfera transitória, também, de estratégias de fi guração, nas quais é visível o<br />

ideário romântico em algumas nuanças, além do caráter “decultural” que as<br />

permeia. Considerando que os recursos de estilo não sobrevivem separadamente,<br />

dest<strong>in</strong>a-se ao conto o posto de <strong>in</strong>terventor de um novo olhar acerca<br />

do homem americano, posicionado entre o aspecto ideal e o crítico.<br />

Os textos <strong>in</strong>tegrados no primeiro capítulo poderiam ser portadores da<br />

visão mais próxima do que seria o índio em seu estado natural. Compreende-se<br />

que possuem os recursos que os <strong>in</strong>screvem no âmbito do <strong>in</strong>digenismo<br />

literário, pelos artifícios criados em torno da realidade a<strong>in</strong>da primitiva a que<br />

se referem. A Carta de Achamento, de Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha e os textos de<br />

Anchieta, segundo Angulo (1988, p.11), são os “fornecedores dos temas e<br />

imagens de que se valeram tanto os <strong>in</strong>dianistas como <strong>in</strong>digenistas da literatura<br />

brasileira”. O Uraguai, de Basílio da Gama, a<strong>in</strong>da que ligado ao regime<br />

da metrópole, tem a função transitória no período, em que a manifestação<br />

da vertente idealizada começa a despontar. Mesmo assim, a<strong>in</strong>da são mais<br />

fortes os <strong>in</strong>dícios que apontam para a dizimação dos <strong>in</strong>dígenas, fi xando-o<br />

no universo das imagens deslizantes do estado natural para o manipulado<br />

pelos jesuítas.<br />

Vieira, em seus Sermões, articula o embrião de textos posteriores, nos<br />

quais se lerão os índios pela visão crítica, na tentativa de lhe assegurar o<br />

aspecto humano, suprimido em muitos autores, de modo especial nos cronistas.<br />

Há uma encruzilhada nos textos do sermonista, uma vez que a defesa<br />

aos direitos humanos do nativo impõe-se como estratégia a serviço do<br />

mercantilismo. Considerado o aspecto fi gurativo presente na narrativa, é<br />

possível conceder aos sermões escolhidos neste trabalho o vínculo com o<br />

<strong>in</strong>digenismo, assim como o fez Gregório de Matos, ao posicionar-se contra a<br />

escravidão do homem brasileiro, suscitando a imagem negativa dos “caramurus”,<br />

anti-idealizante, mas crítica em relação ao <strong>in</strong>vasor.<br />

Os autores modernistas, acompanhados de Cavalcanti Proença, postulam<br />

o mesmo conceito pelas vias de acesso ao mito, pelas quais retomam<br />

o cam<strong>in</strong>ho das imagens arcaicas, responsáveis pelo resgate da identidade,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 37<br />

mutilada pela presença do capital, dos saberes sistematizados e da máqu<strong>in</strong>a.<br />

Ao evocarem a des<strong>in</strong>tegração do homem, veiculam a necessidade premente<br />

de reconstituí-lo pelas origens.<br />

Valendo-se do conjunto de <strong>in</strong>formações até aqui apontadas, este trabalho<br />

atende a duas lealdades: ao aspecto científi co, determ<strong>in</strong>ado pela <strong>in</strong>stituição<br />

formadora, e ao cunho didático, que lhe é <strong>in</strong>erente. Ao eleger a fi gura<br />

do <strong>in</strong>dígena para o propósito deste percurso, foram selecionadas as obras<br />

que respondem satisfatoriamente aos requisitos básicos da análise pretendida.<br />

Vista a extensão encontrada na literatura brasileira, seria <strong>in</strong>exequível<br />

para o trabalho um número maior, em razão dos limites de tempo e de espaço<br />

a que são submetidos os textos científi cos dessa natureza. Assim, a<br />

escolha deu-se de forma prioritária e não-aleatória, visando à focalização<br />

do elemento <strong>in</strong>dígena em <strong>in</strong>teração com um alterno fi ccional, seja ele o<br />

não-índio, em oposição à etnia; o cristão, marcando a ambiguidade de um<br />

ser não-converso ou o civilizado, que contrasta o rústico ao saber letrado.<br />

Ante essas relações ambíguas, as análises abrangem o universo representativo<br />

que determ<strong>in</strong>a uma realidade efetiva: a do <strong>in</strong>dígena em oposição<br />

ao brasileiro, excluído como “ser nacional”, ou em posição de matriz racial,<br />

assum<strong>in</strong>do natureza dist<strong>in</strong>ta. No trânsito entre os argumentos, objetiva-se<br />

pontuar como o índio foi del<strong>in</strong>eado pela literatura, que o compôs a partir de<br />

um conjunto de estratégias retóricas alicerçadas em diferentes movimentos<br />

culturais. O perfi l deste estudo prioriza, assim, os fatores pert<strong>in</strong>entes ao objetivo<br />

pr<strong>in</strong>cipal e não se atém ao aprofundamento dos aspectos estruturais,<br />

estilísticos e semânticos em sua totalidade. Ao se elencar as obras, foram<br />

trazidos para a discussão os textos da crítica, com o <strong>in</strong>tuito de d<strong>in</strong>amizar<br />

a análise e ampliar o círculo de compreensão. Algumas obras selecionadas<br />

possuem uma vasta produção, <strong>in</strong>viabilizando o acesso a todos os críticos<br />

por demandar um tempo signifi cativo de leitura, o que <strong>in</strong>terferiria na execução<br />

deste trabalho. Diante da relevância da crítica, fez-se a seleção de autores<br />

que comungam dos objetivos propostos neste trabalho, sem deixar de<br />

considerar a contribuição dos demais não-citados.<br />

A<strong>in</strong>da na composição da estrutura desse percurso, elegeu-se um episódio-referência<br />

nos textos narrativos ou poemas/cantos em caso de textos<br />

poéticos, com a <strong>in</strong>tenção de ilustrar a análise e promover o encontro do<br />

leitor com o texto literário propriamente, para que não se limitasse apenas<br />

aos excertos citados durante a leitura. Assim determ<strong>in</strong>ado, as Partes serão


38 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

compostas por uma breve <strong>in</strong>trodução, entrelaçando os pr<strong>in</strong>cipais pontos<br />

suscitados no corpo do texto, seguida da análise e do excerto-referência de<br />

cada obra. A composição geral organiza-se em forma de um roteiro provisório,<br />

uma vez que possibilita a <strong>in</strong>serção de outras obras com a mesma<br />

temática, e desenvolve as análises de forma s<strong>in</strong>crônica, sem desconsiderar o<br />

teor diacrônico. Dessa maneira, a validade do teor diacrônico <strong>in</strong>staura-se no<br />

“levantamento e demarcação do terreno” dentro dos limites da temática escolhida<br />

para o percurso, e a do teor s<strong>in</strong>crônico pauta-se pela “diversifi cação<br />

de nosso repertório de <strong>in</strong>formação estética”, sem o julgamento de “maiores”<br />

ou “menores” autores, conforme sugere Campos (1977, p.207-9) em<br />

sua Poética s<strong>in</strong>crônica.


PARTE I<br />

VOZES AFLUENTES DO COLONIZADOR:<br />

O VERBO INAUGURAL DO MITO AMERICANO


Os textos escolhidos para este capítulo <strong>in</strong>augural traduzem os olhares<br />

que captaram a atmosfera <strong>in</strong>tocada de uma nação lida, primeiramente, pelo<br />

ponto de vista histórico de sua experiência e, posteriormente, <strong>in</strong>terpretada<br />

pelo ângulo dilatado do espírito literário que os envolve. O aspecto em<br />

comum tende à contemplação da fl ora exuberante, diversa da que o colonizador<br />

teve contato com sua realidade primitiva, e da fauna, mais rica do<br />

que a conhecida europeia, além de lhe ser resguardado o status de primeiras<br />

manifestações <strong>in</strong>telectuais, em que o Brasil se oferecia como matéria-prima.<br />

Ao lado desses fatores decisivos para o deslumbramento do <strong>in</strong>vasor, a terra<br />

americana apresenta-lhe um elemento <strong>in</strong>sólito, até então, ante a longa<br />

atividade mercantil que o levou a descobertas de novas gentes, como as da<br />

África, sob o domínio de Portugal. Diante do número de nações <strong>in</strong>dígenas<br />

existentes na terra recém-descoberta, desconhecidas em seus costumes,<br />

crenças, tradições e ideias, os primeiros observadores lançaram mão de um<br />

universo de imagens que, vistas daqui do século XXI, causam impacto, a<strong>in</strong>da,<br />

pela grandiosidade de suas descrições, quando compreendida a moldura<br />

em que foram guarnecidas e os mecanismos disponíveis para a realização<br />

de sua captura.<br />

As impressões do <strong>in</strong>vasor português, em relação ao Brasil, diferem, em<br />

muitos casos, das que foram sistematizadas pelos colonizadores da América<br />

espanhola, pois a praticidade que desenvolveu em sua atividade de expansão<br />

levou-o a não se ater sutilmente à natureza e ao nativo encontrado, pelo<br />

contrário, contribuiu para um dos maiores processos de aversão aos povos.<br />

Os três primeiros textos, dos autores Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha, Padre José de


42 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Anchieta e Padre Antonio Vieira, são os que reverberam, com mais <strong>in</strong>tensidade,<br />

a perspicácia do olhar e da voz constituída a partir das primeiras imagens<br />

impressas nas letras acerca do Brasil, sob o traço da dom<strong>in</strong>ação. Em O<br />

Uraguai, de Basílio da Gama, manifesta-se certa sutileza, com maior vazão,<br />

em virtude de o autor apoiar a decisão do Marquês de Pombal na expulsão<br />

dos jesuítas de Portugal e suas colônias. Mesmo que a simpatia pelo nativo<br />

seja mais acentuada no poema, esse preserva, a<strong>in</strong>da, o status da negligência,<br />

ao submeter a imagem à <strong>in</strong>spiração europeia. De certa maneira, como se<br />

verá em sua análise, o homem americano passa a ter um espaço demarcado<br />

pelas suas características, a<strong>in</strong>da que as nuanças sejam idealizadas, e o nativo<br />

seja <strong>in</strong>serido como necessidade de assunto.<br />

Consideradas as diferenças no modo de olhar encerradas em cada obra,<br />

importa destacar sua imanência temática voltada à colonização, como um<br />

projeto, segundo Bosi (1992, p.15), que busca “ocupar um novo chão, explorar<br />

seus bens, submeter os seus naturais” em nome da religião ou da expansão<br />

econômica, capazes de subjugar índios e negros sob a mesma unção.<br />

Todos os olhares e discursos arquitetados em torno desse processo desembocam<br />

na fi gura do índio, posto como obstáculo à expansão, em razão das<br />

características naturais que o compõem, imped<strong>in</strong>do o <strong>in</strong>vasor de compreender<br />

a complexidade de seus rituais e de suas crenças.<br />

A Carta de Achamento, do escrivão Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha, localizada<br />

historicamente como texto fundante, reserva a<strong>in</strong>da certo grau de leveza na<br />

construção das imagens do primeiro contato, se comparada aos dois textos<br />

posteriores, escritos pelos jesuítas. O aparente aspecto “realista” impresso<br />

pelo escrivão é fruto, antes de tudo, da apropriação de gestos e falares do<br />

nativo, vistos e <strong>in</strong>terpretados a partir dos conceitos formulados e correntes<br />

na Europa, que traduziam o selvagem pelas histórias relatadas por terceiros<br />

ou pelas telas que os representavam.<br />

Em virtude das condições históricas e de <strong>in</strong>strumentos em que a Carta<br />

foi produzida, visualiza-se nela o teor idílico do índio, sobrepondo-se ao<br />

demoníaco, uma vez que a experiência do contato, no ínterim de uma semana,<br />

não garantiria ao cronista subsídios sufi cientes para uma <strong>in</strong>terpretação<br />

mais coerente da cultura com a qual deparou. Mesmo que pareça amenizada<br />

a imagem cruenta, em decorrência da falta de conhecimento do observador,<br />

não se eximem recortes agudos na narrativa, como por exemplo, a<br />

<strong>in</strong>ferioridade, que leva o índio ao extremo da bestialidade.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 43<br />

O discurso protocolar de Cam<strong>in</strong>ha responde ao objetivo <strong>in</strong>icial de dar<br />

notícias acerca da terra, mas põe em plano superior as descrições do selvagem,<br />

de acordo com o alargamento do olhar em direção à cultura que se<br />

lhe apresenta. Dentro desse espaço de encantamento, os rituais, costumes<br />

e dotes físicos recebem especial atenção, deslocando o foco da terra e suas<br />

riquezas. A bondade, a <strong>in</strong>ocência e a alegria, presentes no cotidiano dos povos<br />

americanos, constituem-se fator decisivo para a arquitetura do aspecto<br />

idílico preponderante, que descolore o outro lado do polo, no qual o nativo é<br />

revelado como ser <strong>in</strong>ferior. Uma das questões fulcrais para o entendimento<br />

das imagens impressas por Cam<strong>in</strong>ha diz respeito à limitação do olhar, pela<br />

qual capturou apenas o que a sensibilidade de um <strong>in</strong>vasor deslumbrado poderia<br />

alcançar. A<strong>in</strong>da que restrito o ângulo, e sob a <strong>in</strong>fl uência do poder da<br />

coroa, Cam<strong>in</strong>ha lega ao corpus da literatura brasileira um documento essencial<br />

à produção literária posterior que, carente de um passado histórico<br />

relevante, se apoia no conjunto de dizeres do cronista, para autenticá-los ou<br />

para negá-los.<br />

Em Anchieta, duas vertentes <strong>in</strong>stalam-se, quando se pretende observar<br />

a visão que constrói do nativo. Como o jesuíta teve uma vasta produção de<br />

cartas e <strong>in</strong>formações acerca do Brasil, além de sua produção poética, fez-se<br />

o recorte de dois poemas e de algumas considerações importantes da escrita<br />

protocolar, em que se pudessem fazer visíveis as diferentes faces que<br />

imprimiu. Como jesuíta, patroc<strong>in</strong>ado pelo poder, produz um corolário de<br />

imagens aliadas à condição demoníaca do índio, alicerçado nas observações<br />

dos rituais de antropofagia e de comunicação com os mortos. Nessa vertente,<br />

co<strong>in</strong>cide, em parte, com o que Cam<strong>in</strong>ha pontuou em sua carta, no que<br />

diz respeito à <strong>in</strong>ferioridade do natural, comparado às feras, um ser vazio em<br />

cultura, à mercê da catequese, aberto, portanto, à <strong>in</strong>serção dos valores considerados<br />

adequados à educação religiosa, moral e de costumes. A<strong>in</strong>da que<br />

se lhe respeitem os dotes de homem religioso de seu tempo, ao <strong>in</strong>terpretar o<br />

<strong>in</strong>dígena a partir desse contexto, é notável o acentuado preconceito e a falta<br />

de conhecimento da cultura nativa, com a qual entra em confl ito, dados os<br />

<strong>in</strong>teresses impressos nos ditames da catequese católica que o nativo se recusa<br />

a aceitar.<br />

As imagens impressas nos textos de <strong>in</strong>formação diferem das do <strong>in</strong>dígena<br />

fi gurado nos poemas, em que Anchieta, homem das letras, o compõe. O<br />

índio de Anchieta, arquitetado em verso, é obediente, convertido a e devoto


44 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

de Nossa Senhora. Na Lírica tupi são <strong>in</strong>stituídos claramente os polos bem/<br />

mal, em que a fi gura de Maria, mãe de Cristo, é assentada como redentora<br />

dos que são dom<strong>in</strong>ados pelo demônio, presente nos rituais de celebração<br />

aos mortos. Por esse viés, o nativo é fi gura prostrada diante da supremacia<br />

do símbolo cristão, ao qual leva oferendas do universo natural, em troca da<br />

libertação de suas antigas crenças, a fi m de ser merecedor da <strong>in</strong>tervenção<br />

mariana.<br />

Posto no embate das forças ocultas do poder demoníaco a ser banido, o<br />

índio é subserviente e deixa-se aterrorizar pelo medo do pecado, capaz de<br />

tirar-lhe a salvação eterna. Com a <strong>in</strong>serção desses valores, tão distantes das<br />

concepções dos <strong>in</strong>dígenas, os poemas os desenham seres dóceis, adaptados<br />

à tradição cristã difundida pela Companhia. As estratégias que arquitetam<br />

essa outra vertente passam pela substituição de símbolos locais, da adequação<br />

de nomes de entidades ameríndias à manifestação do culto católico. Da<br />

fi gura obediente e pura, impressa nos poemas, decorre a atualização feita<br />

pelo romantismo brasileiro, em que foi consagrado como modelo de representação<br />

de um povo, construído sob o arquétipo do nativo bom, sem os<br />

vícios da cultura não-índia.<br />

Além dos pontos suscitados nos dois textos anteriores, os aspectos paradoxais<br />

da fi guração marcam o estilo de Padre Antonio Vieira, o responsável<br />

pela articulação do confronto entre o desejável e o combatível. O que muda<br />

no discurso dos Sermões, em relação íntima com o nativo, são os propósitos<br />

de convencimento, direcionados a um público não somente composto pela<br />

Coroa, como se apresenta em Anchieta e Cam<strong>in</strong>ha. A consequência desse<br />

alargamento de público impõe-se a partir do momento histórico em que a<br />

Companhia se <strong>in</strong>stala nas terras do Maranhão e do Pará, com a fi nalidade<br />

de amenizar os confl itos entre colonos e trafi cantes, que viam a região como<br />

espaço livre para captura e escravização do nativo.<br />

Esse seria um dos cam<strong>in</strong>hos de leitura dos sermões escolhidos para este<br />

trabalho: Sermão da Primeira Dom<strong>in</strong>ga da Quaresma e Sermão da Epifania,<br />

não fossem as <strong>in</strong>cursões ideológicas tecidas em meio à trama de argumentos<br />

elaborados sob a égide da defesa dos <strong>in</strong>dígenas. As <strong>in</strong>cursões fazem perceber<br />

que o estatuto de Vieira, posto como paradoxal, <strong>in</strong>stitui-se no fato de<br />

eleger o nativo como tema de sua defesa perante os colonos no Maranhão,<br />

assunto do primeiro sermão, e da ra<strong>in</strong>ha Luísa de Gusmão e seu fi lho, no<br />

segundo, mas deixa transparecer outra face <strong>in</strong>tencional, camufl ada sob a


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 45<br />

aparente contrariedade. Emerge, então, do discurso entrelaçado dos dois<br />

sermões, a visão de que o cativeiro é tema para atacar os que aprisionavam<br />

os <strong>in</strong>dígenas com fi ns lucrativos, enquanto os aldeamentos, promovidos pelos<br />

jesuítas, são considerados espaço de liberdade, uma vez que os aldeados<br />

são postos sob a proteção missionária e o poder constituído.<br />

O sermão pregado aos colonos, no Maranhão, usa a metáfora das tentações<br />

de Cristo para mostrar as atitudes dos que vendem os nativos como<br />

exemplos dos que venderam as almas ao demônio, sob o jugo de se condenarem<br />

por isso. Diante da ameaça de perder a salvação eterna, os colonos<br />

foram orientados a seguir a proposta que visava à manutenção dos aldeados<br />

como livres, suspendendo os demais cativeiros. Os que se encontravam em<br />

serviço escravo nas cidades teriam o direito de escolher entre a liberdade ou<br />

a permanência na condição. Assim posto, os <strong>in</strong>teresses dos colonos foram<br />

feridos pela defesa constante dos aldeados como livres, desencadeando a<br />

expulsão dos missionários do Maranhão. Os argumentos tecidos ao longo<br />

do discurso levam ao exagero antitético de Vieira, que põe em relevo a escravidão<br />

para assegurar o direito de posse dos nativos em seu domínio, dandolhes,<br />

assim, como os dois autores anteriores, o cunho de seres desprovidos<br />

de razão e carentes, portanto, de identidade a ser impressa pela educação<br />

jesuíta.<br />

O Sermão da Epifania resgata a temática da escravidão <strong>in</strong>dígena; no entanto,<br />

a circularidade do discurso toma por base o texto bíblico da visitação<br />

dos reis magos a Jesus. Após a expulsão dos jesuítas, o percurso de convencimento<br />

de Vieira diante da Coroa é apontar a necessidade da permanência<br />

em terras americanas. Assim, as vias de acesso percorrem a imagem da<br />

América, como uma das terras que demorou a ser descoberta, mas que se<br />

converteu com maior rapidez em relação aos demais cont<strong>in</strong>entes. A alusão<br />

feita aos reis magos desliza em direção à disponibilidade de aceitação do<br />

catolicismo, uma vez que v<strong>in</strong>do adorar o Men<strong>in</strong>o, estariam representando<br />

as nações, assim como os nativos adotariam o catolicismo, por meio das<br />

missões.<br />

Concomitante ao aspecto religioso imanente, Vieira faz visível a dimensão<br />

mítico-histórica, atualizando o messianismo sebastianista, na fundação<br />

do Qu<strong>in</strong>to Império. O ideal da fundação desse Império pauta-se pela<br />

existência de uma unidade em que Portugal teria o domínio de governo, da<br />

língua e da religião, o que justifi caria a presença dos missionários em terras


46 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

brasileiras para conquistar as almas na concretização desse projeto, pois,<br />

descoberto o Novo Mundo, estaria assegurada a criação de uma nova Igreja<br />

dest<strong>in</strong>ada aos povos nativos. Diante do quadro histórico a que Vieira se refere<br />

nos dois sermões, o índio é liame aos argumentos que se espraiam pelo<br />

discurso paradoxal, construído pela vertente humanitária da defesa dos naturais<br />

e revestido de um verniz capcioso, engendrado nos fi os do poder que<br />

defende obst<strong>in</strong>adamente. De um polo a outro, o sermonista articula as imagens<br />

que oscilam entre a necessidade de converter e a propriedade, como o<br />

fez em Lisboa, perante a Coroa, ao demonstrar sua complacência para com<br />

os nativos, matizados pelo estereótipo de “fera” humanizada, produto do<br />

artifício da catequese.<br />

A disposição dos textos, nesta parte, assemelha-se à ordem canônica da<br />

literatura brasileira, em que é posto O Uraguai em meio aos poetas árcades,<br />

após o período denom<strong>in</strong>ado Literatura de Informação. O objetivo de colocá-lo<br />

em última análise nesta parte, no entanto, não é o de perpetuar o que<br />

a crítica já sistematizou, e sim, considerar que o lugar que ocupa se deve às<br />

características transitórias de estilo e de fundação que o permeiam. A transição<br />

de estilo se faz presente no viés da epopeia, gênero que se destacou,<br />

desde a antiguidade, pelo distanciamento no tempo da ação heróica, para<br />

dar vazão às imagens. Basílio não concretiza essa particularidade justamente<br />

por transformar em arte um evento histórico próximo à sua escritura,<br />

o que marca seu estilo não apenas pela ruptura de alguns elementos, mas<br />

pela ousadia de fazer em seu tempo as alterações numa forma clássica. A<br />

fundação concentra-se no ângulo em que enriquece a veia nativista, representando-a<br />

na atualidade da defesa ao índio. Dessa característica, é lançado<br />

o afl uente que desemboca na leitura dos românticos Gonçalves Dias e José<br />

de Alencar, por exemplo, e do <strong>in</strong>signe modernista Oswald de Andrade. A<br />

atualização da temática no romantismo e no modernismo deve-se ao fato<br />

de que, em Basílio da Gama, “o cenário <strong>in</strong>dígena se propõe como objeto<br />

de uma possível transfi guração lírica”, de acordo com Sérgio Buarque de<br />

Holanda (1991, p.117), no qual paira “o sentimento brasileiro”.<br />

Unida ao aspecto histórico do evento acerca dos Sete Povos das Missões<br />

está a vertente em que o <strong>in</strong>dígena é fi gurado à altura do português, não portador<br />

de selvageria e barbárie, como foi estampado em Anchieta e Vieira.<br />

Trata-se, agora, de uma imagem dotada de bondade e pureza, à qual Basílio<br />

devota simpatia. No entanto, mesmo que lhe seja atribuída uma nova rou-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 47<br />

pagem, o nativo não fi ca isento da conspurcação civilizatória, impressa no<br />

choque cultural entre <strong>in</strong>vasor e <strong>in</strong>vadido, como se nota no Canto II, em que<br />

os caciques Sepé e Cacambo se encontram com os europeus na condição de<br />

embaixadores.<br />

Feita a suc<strong>in</strong>ta apresentação das obras estudadas nesta parte, é notável<br />

sua s<strong>in</strong>gular contribuição, ao traçar os primeiros contornos da imagem<br />

brasileira, por meio de sua fl ora, fauna e, de modo mais contundente, de<br />

seu habitante natural. Sobre esses elementos foi depositado um olhar <strong>in</strong>ciso<br />

para recortar o melhor ângulo da experiência de uma terra até então<br />

representada pelo imag<strong>in</strong>ário, povoada de monstros e de seres demoníacos.<br />

Assim, cada autor, v<strong>in</strong>culado a<strong>in</strong>da aos laços ultramar<strong>in</strong>os, com maior ou<br />

menor <strong>in</strong>tensidade, tece os primeiros pontos de um quadro multicolorido<br />

que revelará uma espécie de mitologia nacional, aos poucos <strong>in</strong>dexada ao<br />

corpus literário como porta-voz das cores locais.


1<br />

VERSÕES DO OLHAR: O ROTEIRO ENTRE O PODER<br />

E A SUBSTÂNCIA DA BRASILIDADE<br />

(PERO VAZ DE CAMINHA)<br />

A alegria é a prova dos nove.<br />

Oswald de Andrade<br />

A presença da Carta do “achamento” do Brasil neste percurso de leitura<br />

justifi ca-se pelo caráter aparentemente “realista” que o escrivão da esquadra<br />

de Cabral lhe dedicou. Escrita tal qual uma “carta-diário” durante a<br />

expedição de descobrimento de novas terras por Portugal, visava, além de<br />

<strong>in</strong>formar o rei acerca do novo mundo, a um <strong>in</strong>tento particular: o perdão do<br />

genro de Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha, Jorge de Osório, degredado em São Tomé,<br />

pela acusação de envolvimento “em furtos e extorsão a mão armada”, conforme<br />

afi rma Cortesão (2003, p.13).<br />

O <strong>in</strong>teresse em reexam<strong>in</strong>ar um texto da literatura considerada <strong>in</strong>formativa<br />

ou de viagem é reconhecer em seu conteúdo uma parcela da história<br />

nascente do Brasil, vista pelo olhar do <strong>in</strong>vasor. Além disso, revisitar a Carta<br />

abre vertentes pelas quais é possível se repensar os cam<strong>in</strong>hos que levaram<br />

à constituição étnica brasileira, a partir do posto de mitologia fundante que<br />

ocupa no exercício de imprimir as letras que nomearam a terra e seus homens,<br />

legando à literatura nacional um conjunto de imagens abertas à <strong>in</strong>vestigação<br />

constante.<br />

É preciso atentar, primeiramente, ao fato de a Carta não ter sido considerada<br />

um texto literário até o século XIX, ante os objetivos a que atendia<br />

quando redigida. Mesmo portadora de uma sanção mais histórica que literária,<br />

não se pode negar-lhe a primeira tentativa de representação da terra e<br />

dos <strong>in</strong>dígenas brasileiros, encontrados ao longo do litoral, o que faz jus à sua


50 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

presença em meio ao conjunto de obras escolhidas para este trabalho. De<br />

posse do arsenal descritivo imanente, entende-se que os estudos apontados<br />

autenticam o teor literário subscrito no discurso de um observador atento<br />

à realidade primitiva e desconhecida com a qual teve o primeiro contato.<br />

No discurso protocolar, o escrivão <strong>in</strong>veste-se do papel de escritor para<br />

vazar em imagens o que era até então imag<strong>in</strong>ário na Europa, no tocante<br />

à terra e aos habitantes. Somente com o advento das navegações é que os<br />

europeus se libertaram do seu estreito círculo e se aventuraram por rotas<br />

desconhecidas. Dos it<strong>in</strong>erários emergiram histórias fantásticas que t<strong>in</strong>ham<br />

o objetivo de enaltecer os feitos das descobertas e povoar a imag<strong>in</strong>ação da<br />

Europa, alicerçadas nos moldes medievais, habitados por demônios e superstições.<br />

Esse complexo cultural, sedimentado na cultura europeia, foi transplantado<br />

para as pág<strong>in</strong>as dos cronistas e viajantes que ouviram falar da América,<br />

ou tiveram a oportunidade de colocar sobre ela seu olhar. Duas fortes<br />

vertentes se <strong>in</strong>stalaram nas narrativas, segundo Ribeiro (1991-1992): uma<br />

consolidou o aspecto demoníaco, ao revelar a monstruosidade dos habitantes,<br />

e outra, de visão idílica, revelou, por meio da “vida livre e despreocupada<br />

do índio”, a imagem do paraíso terrestre. As metáforas construídas<br />

deram a imagem que opôs a <strong>in</strong>fância da América à velhice da Europa, por<br />

meio dos qualifi cativos “novo” e “velho” mundo. A oposição impressa nos<br />

qualifi cativos, no entender de Perrone-Moisés (2007, p.33), “já <strong>in</strong>dicava a<br />

<strong>in</strong>tenção de reduzir-lhes a alteridade, de impor a essas terras novas uma história<br />

que seria a repetição da sua, ou uma história recomeçada”, sem deixar<br />

de ass<strong>in</strong>alar, em seu sentido, o aspecto da <strong>in</strong>ferioridade e da dependência<br />

que caracterizou, mais uma vez, a “barbárie” ante a “civilização”.<br />

Sob esse lastro ideológico, a Carta de Cam<strong>in</strong>ha estampa, no ínterim de<br />

uma semana, a matéria que dá o contorno da gente e da terra, pois os aspectos<br />

técnico-marítimos não são detalhados, conforme o cronista adverte<br />

o dest<strong>in</strong>atário: “da mar<strong>in</strong>hagem e s<strong>in</strong>graduras do cam<strong>in</strong>ho não darei aqui<br />

conta a Vossa Alteza, porque o não saberei fazer, e os pilotos devem ter esse<br />

cuidado” (Cortesão, 2003, p.91). Diante do propósito, o texto é datado em<br />

primeiro de maio de 1500, em Porto Seguro, e encam<strong>in</strong>hado a Lisboa por<br />

meio de Gaspar de Lemos, um dos <strong>in</strong>tegrantes da esquadra de Cabral. Sua<br />

publicação ocorreu apenas em 1817, em razão do sigilo português, ante<br />

<strong>in</strong>úmeras versões de cartas que circulavam, alargando o universo de <strong>in</strong>for-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 51<br />

mações acerca da nova terra. Para essa leitura, toma-se a versão de Jaime<br />

Cortesão (2003), que fez uma atualização cuidadosa para facilitar o entendimento<br />

do texto.<br />

Vista pela fresta literária, a narrativa de Cam<strong>in</strong>ha ultrapassa os limites<br />

do aspecto íntimo com o rei, para alcançar dimensão histórica, dada a relevância<br />

das observações da viagem e dos <strong>in</strong>dígenas encontrados na costa brasileira.<br />

Diferente de outros cronistas, que escreveram a partir do relato de<br />

terceiros, o escrivão “mostra as coisas mais de perto e mais detidamente”,<br />

segundo Perrone-Moisés (1991-1992, p.118). Por isso, segundo a mesma<br />

crítica, “Cam<strong>in</strong>ha tem sido muito louvado por seu ‘realismo’”, pela <strong>in</strong>serção<br />

das imagens que visualizou.<br />

Mesmo com as restrições que o cronista encontrou na expansão de seu<br />

olhar sobre a terra, a Carta engendra, segundo Belluzzo (1996, p.10), “uma<br />

história de pontos de vista, de distância entre modos de observação, de triangulações<br />

do olhar”, permit<strong>in</strong>do “a condição de nos vermos pelos olhos deles”.<br />

A visibilidade do Brasil, feita pelos olhos do escrivão-escritor, é declarada<br />

objetivamente: “tome Vossa Alteza, porém, m<strong>in</strong>ha ignorância por boa vontade,<br />

e creia bem por certo que, para al<strong>in</strong>dar nem afear, não porei aqui mais<br />

do que aquilo que vi e me pareceu” (ibidem, p.91). Nota-se, no fragmento,<br />

um cuidado extremo em narrar somente o que lhe permite o alcance do<br />

olhar. Tal afi rmação o faz diferir dos demais viajantes, que tornaram a nova<br />

terra visível por um conjunto de imagens muito mais supostas que vistas.<br />

Isso torna seu texto portador de certo grau de veracidade, frente à posição<br />

de “boa vontade” contraposta à ignorância. A preocupação em se fazer<br />

verossímil aos olhos do rei, demanda dizer claramente quando o fato é relatado<br />

por outro, ou seja, quando esse se encontra fora de seu campo de visão,<br />

como se pode notar nos dois excertos: “segundo disseram os navios pequenos,<br />

por chegarem primeiro” (ibidem, p.93); “e segundo diziam esses que<br />

lá foram, folgavam com eles” (ibidem, p.108). A voz do narrador aproxima<br />

o relato do caráter verossímil, quando é afi rmado a partir da comprovação<br />

do fato, a<strong>in</strong>da que seja visto por olhos alheios ao do cronista. Além disso, a<br />

acuidade da narrativa é fortalecida com a precisão dos números, medidas e<br />

proporções, “uma característica do homem da época dos Descobrimentos”,<br />

aponta Perrone-Moisés (1991-1992, p.120), que, em Cam<strong>in</strong>ha, se eleva<br />

como expoente por referir-se a uma das mais importantes descobertas dos<br />

portugueses.


52 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Diante do exposto, percebe-se, então, que não há <strong>in</strong>cl<strong>in</strong>ação para a narrativa<br />

sobrenatural, na qual predom<strong>in</strong>a a vertente demoníaca, apontada por<br />

Ribeiro (1991-1992), a não ser a que se volta ao âmbito da fé cristã. O que<br />

prevalece é o saber adv<strong>in</strong>do da experiência, resultado de observações de um<br />

referente palpável, mesmo que sua estrutura possa parecer estranha. Embora<br />

<strong>in</strong>contestes as asserções da crítica, dois aspectos são relevantes para se<br />

compreender a extensão do olhar do colonizador sobre a terra e o índio: o<br />

primeiro diz respeito à suposição; o segundo, à falta de comunicação entre<br />

as partes.<br />

A<strong>in</strong>da que considerada a veracidade com que pretende narrar, há momentos<br />

em que a suposição <strong>in</strong>icia um processo de reconhecimento de espaço<br />

e de hábitos, até que seja desvendada pela experiência sensorial do ver<br />

para crer, opondo às expressões “me pareceu” (ibidem, p.91) e “isto tomávamos<br />

nós assim por assim o desejarmos” (ibidem, p.97). A impressão <strong>in</strong>icial<br />

revela um quadro, como no exemplo da moradia dos habitantes, que a<br />

pr<strong>in</strong>cípio “faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham”<br />

(ibidem, p.107), para passar, posteriormente, a outra suposição, baseada no<br />

relato do degredado Afonso Ribeiro: “disse que não vira lá entre eles senão<br />

umas choupan<strong>in</strong>has de rama verde e de fetos muito grandes, como de Entre<br />

Douro e M<strong>in</strong>ho” (ibidem, p.108). Assim, conforme a ordem gradativa da<br />

experiência, o narrador relata o testemunho de um grupo: “e, segundo eles<br />

diziam, foram bem uma légua e meia a uma povoação, em que haveria nove<br />

ou dez casas, as quais eram compridas, cada uma, como esta nau capita<strong>in</strong>a.<br />

[...]” (ibidem, p.109). Nota-se, então, que parte da suposição, uma vez que<br />

as casas não são visíveis, para o relato <strong>in</strong>dividual, reportado tal como fora<br />

enunciado, e desemboca na crença da observação de um grupo, que desestabiliza<br />

a impressão <strong>in</strong>icial.<br />

Quanto ao segundo aspecto apontado anteriormente, a comunicação, ou<br />

a ausência dela, é possível apreender um quadro de embate, no mínimo,<br />

uma vez que os dois campos de l<strong>in</strong>guagens, o verbal do colonizador e o gestual<br />

da cultura ágrafa, constituem um canal “<strong>in</strong>transitivo de comunicação”,<br />

segundo Chamie (2002, p. 29). Dessa forma, a ausência de uma comunicação<br />

direta pela l<strong>in</strong>guagem verbal, impulsiona o observador a ver e <strong>in</strong>terpretar<br />

o que lhe parece plausível, tal como afi rmara: “por assim o desejar”.<br />

É necessário entender, no entanto, que o ato português tem um sentido<br />

religioso e político em relação à terra. Assim, a comunicação com o índio


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 53<br />

seria vital para a consolidação do projeto de expansão mercantil e a difusão<br />

do catolicismo. Na experiência do “ver” e “parecer”, Cam<strong>in</strong>ha visualiza<br />

uma realidade adversa da que os europeus idealizaram a respeito do novo<br />

mundo: “ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por<br />

o mar quebrar na costa” (ibidem, p.93). Se não houve a possibilidade de<br />

comunicação, como um europeu, desconhecedor da cultura ameríndia,<br />

poderia descrever com exatidão os gestos e a fala do nativo? Essa é uma<br />

questão <strong>in</strong>quietante, suscitada com a leitura da crítica, ao perceber entre<br />

ela uma propensão aos aspectos positivos da narrativa de Cam<strong>in</strong>ha, em<br />

comparação aos demais textos dos viajantes e cronistas, que representaram<br />

a terra desconhecida a partir de imagens concebidas pela fi guração visual.<br />

Um exemplo que esclarece essa concepção europeia do nativo é a tela<br />

Adoração dos Magos, atribuída a Vasco Fernandes, em que o índio fi gura<br />

como um dos reis magos, v<strong>in</strong>do de longe para acompanhar o rito religioso<br />

de adoração ao Men<strong>in</strong>o Jesus. A <strong>in</strong>trodução do índio no cenário europeu<br />

por essa vertente, expressa, de antemão, a contradição no processo fi gurativo,<br />

ao transportar de terras distantes um habitante que não comunga dos<br />

valores cristãos e o <strong>in</strong>serem num processo de negação de sua própria cultura.<br />

O ato considerado digno aos olhos eurocêntricos prenuncia os efeitos<br />

que a catequese irá desencadear sobre o nativo que, ao considerá-lo igual<br />

perante Cristo, descaracteriza-o, contraditoriamente, no conjunto de suas<br />

crenças.<br />

Cam<strong>in</strong>ha possuía, então, uma projeção do que encontraria nas novas<br />

terras, uma construção simbólica que o surpreende no momento em que<br />

depara com a realidade desnuda da fantasia ilustrada. Vista a Carta sob<br />

essa hipótese, é possível entender o fascínio que os <strong>in</strong>dígenas exerceram no<br />

escrivão, que passa a descrever seus atributos e põe em segundo plano a<br />

observação da terra. A dimensão que a narrativa dá aos <strong>in</strong>dígenas é visivelmente<br />

maior que a dest<strong>in</strong>ada à descrição da terra e das riquezas naturais.<br />

A sugestão simbólica, que trazia o escrivão, fez constituir uma representação<br />

verbal de conjunto, pois os nativos eram vistos anteriormente de modo<br />

coletivo e não como persona, dotada de s<strong>in</strong>gularidade. Ante visão formada<br />

pela superfi cialidade do olhar, Belluzzo (1996, p.15) entende que “na iconografi<br />

a e na crônica de autores viajantes nem sempre chegamos a protagonistas.<br />

Somos vistos, sem nos termos feitos visíveis. Fomos pensados”. No<br />

jogo articulado entre o pensado e o visto, encontra-se um escrivão-escritor


54 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

tomado pelas imagens, e <strong>in</strong>sere o índio com naturalidade, explicada, segundo<br />

Perrone-Moisés (1991-1992, p.122), pela experiência “com povos<br />

diversos, na África e na Ásia, que os predisporia a encarar naturalmente a<br />

aparição de outros gentios”.<br />

A primeira descrição feita acerca do nativo é favorável: “dali avistamos<br />

homens que andavam pela praia, obra de sete ou oito [...]. Eram pardos,<br />

todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. [...] A feição<br />

deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes,<br />

bem feitos” (ibidem, p.93-5). É a vertente idílica <strong>in</strong>stalada no primeiro<br />

encontro, o Adão antes de cometer o pecado, vivendo harmoniosamente<br />

junto à natureza. Além de possuírem dotes físicos positivos, o aspecto estético,<br />

impresso nas p<strong>in</strong>turas e no cabelo enfeitado, também é acolhido com<br />

simpatia: “andavam todos tão dispostos, tão bem feitos e galantes com suas<br />

t<strong>in</strong>turas, que pareciam bem” (ibidem, p.113).<br />

O quadro desenhado contém a visão do paraíso, que será <strong>in</strong>corporada<br />

aos valores do romantismo, quando a teoria de Rousseau, do “bom selvagem”,<br />

resguarda essas características. A leitura feita por Perrone-Moisés<br />

(1991-1992, p.122) acerca da fi guração de Cam<strong>in</strong>ha, aponta que “o índio<br />

a<strong>in</strong>da não é, então, o <strong>in</strong>imigo a vencer, o escravo a subjugar, o empecilho a<br />

elim<strong>in</strong>ar. Esse primeiríssimo momento, quase destituído de agressividade,<br />

é uma espécie de breve suspensão da história, que logo vai seguir seu curso<br />

de violência e furor”.<br />

Todo o percurso de simpatia para com os habitantes nativos, fi gurados<br />

na generosidade, na bondade e na alegria, não esconde, no entanto, um<br />

v<strong>in</strong>co traçado pelos portugueses, ao querer transformá-los em mão de obra<br />

abundante, na conquista das riquezas, e na impressão da fé católica, obtida<br />

por meio da conversão. A metáfora é de uma folha em branco à espera da<br />

mancha de t<strong>in</strong>ta que lhe dará conteúdo: “esta gente é boa e de boa simplicidade.<br />

E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho que se lhes<br />

quiserem dar”. Está esboçado no trecho o projeto de colonização em que<br />

o índio é tomado como um ser desprovido de cultura, a quem devem ser<br />

impressos os s<strong>in</strong>ais eurocêntricos: “homem não lhes ousa falar de rijo para<br />

não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem, para os bem<br />

amansar” (ibidem, p.107).<br />

As imagens dos índios brasileiros, elaboradas por Cam<strong>in</strong>ha, não diferem<br />

em grau de oposição das de Colombo, que perpassam, também, os dois


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 55<br />

polos: a descrição física e sua bondade, como parte <strong>in</strong>tegrante da natureza;<br />

e o extremo, no qual os considera “selvagens cheios de crueldade” (<strong>in</strong> Todorov,<br />

2003, p.51), tipifi cados pelos adjetivos bom/mau, abeirando à condição<br />

“bestial”, quando não compreende o real signifi cado do sistema de<br />

troca utilizado entre eles.<br />

Cam<strong>in</strong>ha também transita nesses extremos, comparando-os a animais a<br />

serem domesticados, como visto no excerto anterior, tomando a suposição,<br />

mais uma vez, como condutora de sua <strong>in</strong>terpretação: “do que tiro ser gente<br />

bestial, de pouco saber e por isso tão esquiva” (ibidem, p.107). Tomado em<br />

comparação com o padrão europeu, a desigualdade é marcada pelos atributos<br />

de mansidão versus selvageria: “andavam já mais mansos e seguros<br />

entre nós do que nós andávamos entre eles” (ibidem, p.113). A<strong>in</strong>da que<br />

<strong>in</strong>dicadas algumas nuanças de superioridade <strong>in</strong>dígena, é logo desfeita pela<br />

<strong>in</strong>segurança, ou falta de credibilidade em relação ao que parece. Assim, a<br />

mansidão e a segurança são mais visíveis no nativo em relação ao colonizador,<br />

visto o poder de persuasão que esse possui, ao impor seus hábitos,<br />

<strong>in</strong>strumentos, ritos e símbolos religiosos.<br />

As impressões, como se fazem notar, oscilam de acordo com as circunstâncias<br />

de abordagem, e refl etem, em certo grau, o encantamento comedido<br />

do escrivão ante o quadro visível. Isso não signifi ca que o português tenha<br />

realizado um ato benemerente, ao conceder s<strong>in</strong>ais de cordialidade ao nativo,<br />

uma vez que, pontuado sob as vestes de observador, está o discurso a serviço<br />

do poder, com o <strong>in</strong>tuito de “privilegiar <strong>in</strong>teresses culturais e ideológicos”<br />

(Chamie, 2002, p.13). A tessitura simuladora desse contexto dá-se desde o<br />

momento em que a descrição do nativo e de seus adereços culturais é feita<br />

pelas vestimentas que o observador lhe empresta. Assim, o movimento regulador<br />

das imagens, ora de bondade, ora de selvageria, estabelece a relação<br />

de domínio sobre o colonizado e lhe toma de empréstimo gestos e atitudes,<br />

como se o parodiasse, para destituí-lo de sua natureza <strong>in</strong>tocada.<br />

Em seu discurso simulador, coloca-se em posição de servo ao rei, como<br />

ser desprovido de conhecimento real do que descreve, uma “ignorância tácita”,<br />

diz Chamie (2002), somada à segunda ignorância, a do <strong>in</strong>dígena, que<br />

o escrivão “se permite sentir-se atraído por ela, julgando-a <strong>in</strong>ocente e <strong>in</strong>ata”<br />

(ibidem, p.22). Pautado no olhar crível que lhe parece, Cam<strong>in</strong>ha consolida<br />

três eixos, eleitos por Chamie (2002), que merecem ser destacados aqui. Os<br />

atributos da <strong>in</strong>ocência, da bondade e da alegria são responsáveis pelo enre-


56 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

damento dos propósitos do conquistador, e confi guram, ao mesmo tempo,<br />

o confronto entre a cultura letrada e a ágrafa, e a descoberta de uma nova<br />

realidade a ser compreendida.<br />

Na <strong>in</strong>ocência, Cam<strong>in</strong>ha destaca os aspectos físicos: “pardos, maneira de<br />

avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos”; a nudez: “andam<br />

nus, sem cobertura alguma”, <strong>in</strong>ser<strong>in</strong>do, ao lado dessa naturalidade exposta,<br />

a prescrição de valores imputados pelo código moral: “não fazem o menor<br />

caso de encobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta <strong>in</strong>ocência<br />

como em mostrar o rosto” (ibidem, p.95). Ao quebrar a fronteira do permitido,<br />

os adjetivos “bons” e “bem feitos” estendem seu signifi cado à nudez<br />

fem<strong>in</strong><strong>in</strong>a, na qual o escrivão deposita seu maior encantamento: “e uma daquelas<br />

moças era toda t<strong>in</strong>gida, de baixo a cima daquela t<strong>in</strong>tura; e certo era<br />

tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não t<strong>in</strong>ha) tão graciosa,<br />

que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fi zera vergonha,<br />

por não terem a sua como ela” (ibidem, p.100, grifo meu).<br />

Fica nítida, na perspectiva do olhar de Cam<strong>in</strong>ha, a pura curiosidade, que<br />

o faz tecer comparações a partir dos ditames ideológicos e culturais da cultura<br />

<strong>in</strong>vasora. Assim, a palavra vergonha desdobra-se em torno da genitália,<br />

como lugar simbólico que deixa de ser proibido pela espontaneidade com<br />

que as nativas as expõem, e como sentimento de <strong>in</strong>segurança das mulheres<br />

portuguesas, ante a desigualdade entre ambas. O estado de <strong>in</strong>ocência absoluta<br />

torna o habitante nativo um modelo de análise “da própria sociedade<br />

ocidental, um <strong>in</strong>strumento adequado para se pensar o próprio ‘estado de<br />

civilização’” (Schwarcz, 1993, p.45), contrariando a suposta <strong>in</strong>ferioridade<br />

do cont<strong>in</strong>ente.<br />

Da <strong>in</strong>ocência à bondade, tornam-se repetitivos os gestos que vão compor<br />

a fi guração do nativo em suas diferentes faces. Se a genitália deixa de ser<br />

o lugar da obscenidade para se revelar “<strong>in</strong>ocência imaculada”, a disposição<br />

em atender ao <strong>in</strong>vasor, mesmo com comunicação limitada, é fruto das estratégias<br />

de convencimento que leva o nativo a ser dócil e facilmente enganado.<br />

A cortesia com que o português trata o <strong>in</strong>vadido é a manifestação das<br />

segundas <strong>in</strong>tenções tácitas no discurso protocolar, pontuado de cautela em<br />

relação à confi ança <strong>in</strong>dígena:<br />

traziam alguns deles arcos e setas, que todos trocaram por carapuças ou por<br />

qualquer coisa que lhes davam. Comiam conosco do que lhes dávamos. Bebiam


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 57<br />

alguns deles v<strong>in</strong>ho; outros o não podiam beber. Mas parece-me que se lho avezarem<br />

o beberão de boa vontade. [...]. Andavam já mais mansos e seguros entre<br />

nós do que nós andávamos entre eles. (ibidem, p.113)<br />

A boa acolhida aclara o propósito do dom<strong>in</strong>ador em usufruir do trabalho<br />

<strong>in</strong>dígena para satisfazer suas necessidades: “acarretavam dessa lenha<br />

quanta podiam, com mui boa vontade, e levavam-na aos batéis” (ibidem,<br />

p.113), transformando-a na “perversa malícia de quem busca vantagens e<br />

lucros de diversa natureza”, afi rma Chamie (2002, p. 37). O adjetivo “simples”,<br />

que Cam<strong>in</strong>ha dest<strong>in</strong>a ao povo, assume, então, dois signifi cados ao<br />

demarcar a gentileza do nativo, um homem <strong>in</strong>ocente, primeiramente, e,<br />

como consequência disso, designa a fácil dom<strong>in</strong>ação, assum<strong>in</strong>do um tom<br />

pejorativo, ou depreciativo, uma vez que a simpatia aparente é al<strong>in</strong>havada à<br />

<strong>in</strong>versão do que expressa propriamente.<br />

Asseguradas a <strong>in</strong>ocência e a bondade, faria jus ao objetivo da carta dar<br />

respostas às im<strong>in</strong>entes ações a serem realizadas na nova terra. É a alegria<br />

<strong>in</strong>contida e natural do <strong>in</strong>dígena, no entanto, que vai surpreender o escrivão,<br />

arraigado na seriedade do rito sacramental da missa celebrada: “e, depois<br />

de acabada a missa, assentados nós à pregação, levantaram-se muitos deles,<br />

tangeram corno ou buz<strong>in</strong>a, e começaram a saltar e a dançar um pedaço”<br />

(ibidem, p.102). A dança festiva em meio à profusão litúrgica desloca o<br />

signifi cado da transubstanciação da eucaristia, rito antropofágico em que o<br />

corpo simbólico de Cristo é devorado, para o ato de deglutir o colonizador<br />

pela alegria sem causa aparente dos nativos. A concomitância dos rituais<br />

faz entrever na narrativa que, enquanto o <strong>in</strong>vasor considera a missa um ato<br />

sagrado a ser imposto ao <strong>in</strong>vadido, a alegria do nativo é devolvida como<br />

<strong>in</strong>strumento diferencial, que apreende a atenção do observador. O que poderia<br />

ser um ato de heresia, ao profanar o momento epifânico do rito cristão,<br />

torna-se emblema de “alegria sem culpa”, matéria oculta entre as palavras<br />

do escrivão, que no decorrer da Carta, vaza pelos <strong>in</strong>tervalos de encantamento.<br />

Esse <strong>in</strong>grediente, tão específi co do comportamento brasileiro, é retomado<br />

na proposta antropofágica de Oswald de Andrade, ao considerar<br />

a alegria um traço exponencial da cultura <strong>in</strong>dígena. Cam<strong>in</strong>ha, no entanto,<br />

não conseguiu sufocar, em meio à rede letrada de seu discurso, a manifestação<br />

latente do folguedo. Por isso, “a alegria é a prova dos nove”, aponta<br />

Andrade (1995, p.51), em seu Manifesto antropófago, que desejou chegar à


58 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

autenticidade da fala do nativo, escavando o texto da Carta, como será visto<br />

em capítulo posterior.<br />

A<strong>in</strong>da que preso à vontade do poder, Cam<strong>in</strong>ha é seduzido pelo universo<br />

edênico e, também, transformado pelos cenários que se desvelam à medida<br />

que o olhar se move em diferentes ângulos, desde o campo da aparência,<br />

da presunção e da hipótese, em que funda a retórica protocolar, ao campo<br />

das provas, do qual retira extratos da vida selvagem. Desses, ao campo<br />

simbólico, transplanta, para a terra virgem, o símbolo da cruz, na tentativa<br />

de reafi rmar os valores trazidos da Europa e de preencher uma suposta<br />

lacuna, observada na ausência de religião dos nativos. Embora a cruz seja<br />

posta em evidência, a direção do olhar de Cam<strong>in</strong>ha desprende-se do símbolo<br />

para tomar posse de todo e qualquer gesto realizado pelo índio, como se<br />

este fosse mais importante. Da mesma forma, a posição do nativo revela-se<br />

contraditória à expectativa do <strong>in</strong>vasor: “muitos deles v<strong>in</strong>ham ali estar com<br />

os carp<strong>in</strong>teiros. E creio que o faziam mais por ver a ferramenta de ferro com<br />

que faziam do que por ver a Cruz [...]” (ibidem, p.110). O deslocamento<br />

do olhar da cruz para a ferramenta assegura o papel funcional que o ferro<br />

exerce entre os nativos, permanecendo ao longo do contato com o colonizador.<br />

Enquanto a cruz legitima a esfera simbólica do cristão português,<br />

a ferramenta passa a ocupar a esfera do novo em relação à funcionalidade<br />

exercida no meio, por representar a posse de um elemento pertencente ao<br />

universo cultural do outro.<br />

Nem todas as demonstrações de des<strong>in</strong>teresse pelo símbolo cristão são<br />

sufi cientes para afastar a pretensão evangelizadora que seria a tarefa primordial<br />

do povo português. O escrivão não duvida de que o índio possa ser<br />

salvo pelo batismo em massa, como propõe ao rei: “Vossa Alteza, que tanto<br />

deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da sua salvação. E prazerá<br />

a Deus que com pouco trabalho seja assim. [...] se alguém vier, não deixe<br />

logo de vir clérigo para os batizar, porque já então terão mais conhecimento<br />

de nossa fé” (ibidem, p.114-7). É notável, em todo o discurso da Carta, a<br />

predom<strong>in</strong>ância da aparência, sugerida na <strong>in</strong>terpretação que o escrivão faz<br />

dos gestos e da fala, uma vez que “assim tomavam aquilo que nos viam<br />

fazer, como nós mesmos, por onde nos pareceu a todos que nenhuma idolatria<br />

nem adoração têm” (ibidem, p.117).<br />

O que ocorre durante as <strong>in</strong>úmeras <strong>in</strong>dicações do escrivão a respeito da<br />

necessidade de cristianização é que, para o <strong>in</strong>vasor, seria urgente o preen-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 59<br />

chimento de uma fenda que transparecia ao olhar do “outro”, como ausência.<br />

E não diz respeito somente à religião, como observado no episódio<br />

anterior, em que a leitura do narrador torna o fato da conversão algo de fácil<br />

solução. Compreensível tal situação, uma vez que é adv<strong>in</strong>da de um homem<br />

com a consciência possível de sua época, que se revela simpático ao leitor,<br />

em alguns momentos, porém, não há que se idealizar demasiadamente tal<br />

atitude humanizada, nem tampouco condená-lo pelo afastamento etnocêntrico.<br />

O que o escrivão deveria cumprir era revelar, pelo documento, o<br />

que via e lhe parecia, e que se pode julgar somente com o afastamento histórico,<br />

considerando que a narrativa moldura um quadro em que a terra e<br />

seus habitantes a<strong>in</strong>da não t<strong>in</strong>ham sofrido as barbáries fundadas pelos mesmos<br />

<strong>in</strong>vasores que levaram o encantamento e a apropriação de seus bens<br />

culturais.<br />

Cam<strong>in</strong>ha cumpre com seu dever preciso de <strong>in</strong>formar ao rei; contudo,<br />

alguns elementos dão conta de uma realidade além da mercantil. Segundo<br />

Roncari (2002, p.43), “na maior parte dela (da carta) perdemos de vista<br />

o rei; Cam<strong>in</strong>ha abandona as formas de tratamento e a referência direta a<br />

ele, e com isso parece dirigir-se a um leitor mais geral, preocupando-se<br />

em descrever com detalhes o que acabou de ver: a nova terra e os ‘homens<br />

da terra’”. Se o que viu e lhe pareceu não é fato, e sim apenas uma versão<br />

dele, trasladou uma experiência visual em artefato artístico, por meio<br />

do jogo do olhar, em que vê e é visto. O texto, lido hoje, a<strong>in</strong>da reserva o<br />

frescor da descrição, povoado de imagens reveladoras da busca <strong>in</strong>cessante<br />

em saber como se mostrava a exuberância de uma terra tão longínqua e<br />

sua gente orig<strong>in</strong>al. Cenas captadas por um fragmento de visão do observador<br />

são adornadas com sutilezas, temperadas com certo ludismo, ou com<br />

a conveniência da ideologia eurocêntrica, com o objetivo de apenas olhar<br />

o índio, sem desencadear a hostilidade impressa nos quadros históricos<br />

subsequentes.<br />

Não se trata de uma narrativa especialmente literária, com as características<br />

das obras apontadas nos demais capítulos deste trabalho, mas reserva<br />

em seu traço imagético um leque de sugestões sensoriais capazes de abeirar<br />

o fazer artístico, tornando-o plausível. Reside nesse aspecto, como também,<br />

no poder de transfi gurar a realidade observada em palavra, o valor literário<br />

que a <strong>in</strong>tegra, de acordo com Roncari (2002, p.62), às “novas visões<br />

que os escritores formulam da vida social e cultural brasileira” e lhe conce-


60 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

de um espaço sui generis no corpus da literatura brasileira em suas primeiras<br />

manifestações. Se Cam<strong>in</strong>ha não compôs por objetivo literário, a pr<strong>in</strong>cípio,<br />

legou no artifício da apropriação de gestos, hábitos e falares um conjunto de<br />

imagens signifi cativas quanto à temática brasileira nas letras portuguesas, o<br />

que leva a compreender a ausência de apontamento em relação ao <strong>in</strong>vasor.<br />

Durante a Carta, nenhum elemento o leva a falar dos portugueses, a não<br />

ser quando é motivo de comparação, como no episódio da nudez fem<strong>in</strong><strong>in</strong>a,<br />

ou do aspecto <strong>in</strong>telectual que portavam diante da realidade rasa dos habitantes.<br />

O olhar fi xo nos pormenores que descreveu aproxima-o de uma imagem<br />

distorcida do ponto de vista cultural, analisado daqui do século XXI,<br />

posterior ao desenvolvimento histórico de que se tem conhecimento em<br />

relação aos cam<strong>in</strong>hos tomados pelas etnias <strong>in</strong>dígenas. Considerado o momento<br />

em que o relato é produzido, as imagens não poderiam conter uma<br />

<strong>in</strong>terpretação diferente, uma vez que respondiam a um projeto de colonização<br />

e não foram feitas por um etnólogo. Cam<strong>in</strong>ha apenas suavizou as proporções<br />

dramáticas de extermínio dos nativos, colocadas nitidamente nas<br />

cartas dos jesuítas, por exemplo, que não pouparam adjetivos deprimentes<br />

para solidifi car a imagem do éden perdido, e para justifi car os cam<strong>in</strong>hos da<br />

pregação católica. Na Carta, embora pontuada de elementos parodiados,<br />

como entende Chamie (2002), que lhe asseguram um posto no terreno literário,<br />

acentua-se muito mais o aspecto idílico, como afi rmado anteriormente,<br />

justamente por suscitar a suposta verdade de quem vê e lhe parece ser.<br />

Somente o afastamento temporal permite ver que o universo tecido sob os<br />

nós do discurso protocolar vai em direção à contracultura, matizado pela<br />

simpatia, pelas descrições graciosas do aspecto físico, desembocando no aspecto<br />

primordial dessa contradição de olhar alicerçado na ausência. Onde<br />

se lê falta de religião, de casas, de hábitos, de símbolos, entre tantos outros,<br />

<strong>in</strong>terpreta-se ausência de conhecimento do observador que, preso nos<br />

andaimes imag<strong>in</strong>ários, produz acordes dissonantes acerca do índio. E são<br />

esses mesmos acordes que darão o tom de futuras obras em que o <strong>in</strong>dígena é<br />

tomado como tema ou como elemento de discussão mais alargada. Rimam<br />

com as dissonâncias de Cam<strong>in</strong>ha muitos dos cronistas, que quiseram seu<br />

nome registrado na história das viagens, como também, escritores que releram<br />

as imagens sob o auspício ideológico de sua época, como se verá em<br />

Alencar ou Oswald de Andrade, em capítulos posteriores.


Episódio-referência<br />

O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 61<br />

Andamos por aí vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao<br />

longo dela há muitas palmas, não mui altas, em que há muito bons palmitos.<br />

Colhemos e comemos deles muitos.<br />

Então tornou-se o Capitão para baixo para a boca do rio, onde havíamos<br />

desembarcado.<br />

Além do rio, andavam muitos deles dançando e folgando, uns diante dos<br />

outros, sem se tomar pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio<br />

Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer;<br />

e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar,<br />

tomando-os pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem<br />

ao som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas<br />

voltas ligeiras e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E<br />

conquanto com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza<br />

como de animais monteses, e foram-se para cima.<br />

E então o Capitão passou o rio com todos nós outros, e fomos pela praia de<br />

longo, <strong>in</strong>do os batéis, assim, rente da terra. Fomos até uma lagoa grande de água<br />

doce, que está junto com a praia, porque toda aquela ribeira do mar é apaulada<br />

por cima e sai a água por muitos lugares.<br />

E depois de passarmos o rio, foram uns sete ou oito deles andar entre os<br />

mar<strong>in</strong>heiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão, que Bartolomeu<br />

Dias matou, lhes levou e lançou na praia.<br />

Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem,<br />

logo duma mão para a outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro.<br />

Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa<br />

como eles querem, para os bem amansar.<br />

O Capitão ao velho, com quem falou, deu uma carapuça vermelha. E com<br />

toda a fala que entre ambos se passou e com a carapuça que deu, tanto que se<br />

apartou e começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar<br />

de lá para aquém.<br />

Os outros dois, que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já disse, nunca<br />

mais aqui apareceram – do que tiro ser gente bestial, de pouco saber e por isso<br />

tão esquiva. Porém e com tudo isso andam muito bem. E naquilo me parece<br />

a<strong>in</strong>da mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor<br />

pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão<br />

gordos e formosos, que não pode mais ser.


62 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Isto me faz presumir que não têm casas nem moradas a que se acolham, e<br />

o ar, a que se criam, os faz tais. Nem nós a<strong>in</strong>da até agora vimos casa alguma ou<br />

maneira delas.<br />

Mandou o Capitão aquele degredado Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez<br />

com eles. Ele foi e andou lá um bom pedaço, mas à tarde tornou-se, que o fi zeram<br />

eles vir e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas; e não lhe<br />

tomaram nenhuma cousa do seu. Antes – disse ele – que um lhe tomara umas<br />

cont<strong>in</strong>has amarelas, que levava, e fugia com elas, e ele se queixou e os outros<br />

foram logo após, e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar; e então mandaram-no<br />

vir. Disse que não vira lá entre eles senão umas choupan<strong>in</strong>has de rama verde e<br />

de tetos muito grandes, como de Entre Douro e M<strong>in</strong>ho.<br />

E assim nos tornamos às naus, já quase noite, a dormir. (p.106-8)


2<br />

OS BRASIS SERÃO BRASIL:<br />

DA ANTROPOFAGIA AO ROSÁRIO<br />

(JOSÉ DE ANCHIETA)<br />

Quando um <strong>in</strong>dígena passa da condição de índio tribal<br />

– em que sua consciência é seu ethos específi co – para a<br />

condição genérica de ‘índio civilizado’, a antiga consciência<br />

começa a ruir e a se decompor para dar lugar a uma forma<br />

que permanece sendo étnica, mas já corresponde, como<br />

mentalidade, à sua nova condição. [...] Nessas circunstâncias,<br />

cada um dos corpos ideológicos apresentados<br />

ao índio é uma consciência ‘do outro’ que busca m<strong>in</strong>ar<br />

a consciência do índio em suas bases de sustentação.<br />

(Darcy Ribeiro)<br />

No texto anterior, em que foram apontados os cam<strong>in</strong>hos da Carta de<br />

Achamento do Brasil, o índio é pontuado muito mais pela vertente idílica<br />

do que demoníaca, conforme as concepções formadas pelos europeus a esse<br />

respeito. Na avidez colonial, Cam<strong>in</strong>ha enaltece a terra fértil com <strong>in</strong>tenções<br />

exclamativas, que superlativam a natureza e seus habitantes. Decorrente<br />

desses ideais orig<strong>in</strong>ou-se um conjunto de textos ufanistas que se prolongaram<br />

até a metade do século XVIII, a<strong>in</strong>da com motivações da terra e do nativo.<br />

Cada um possui um fi m estabelecido, como o de elogiar ou de ser apenas<br />

utilitário. Permeia-os uma l<strong>in</strong>ha comum, que ora se atém à justifi cação dos<br />

elogios, ora se pauta no registro da história real e não na fantasia.<br />

Nesta leitura, pretende-se percorrer, em parte, textos do padre José de<br />

Anchieta, o jesuíta que viveu em meio aos índios, propagando a fé cristã,<br />

sob o patrocínio do rei de Portugal. Posteriores aos franciscanos, que já estavam<br />

no Brasil, os jesuítas chegaram em 1549, em companhia do primeiro


64 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

governador do Brasil, Tomé de Sousa, a mando do rei D. João III e por ordem<br />

do padre Inácio de Loyola. Manuel da Nóbrega fi gura entre os primeiros<br />

a chegar, junto aos demais padres e irmãos da Companhia. Outros<br />

vieram posteriormente, entre 1550 e 1553, ano em que José de Anchieta<br />

desembarcou, em julho, a<strong>in</strong>da irmão da Companhia, juntamente com o governador<br />

Duarte da Costa. Somente em 1565, tornou-se padre, na Bahia,<br />

ordenado pelo bispo D. Pedro Leitão.<br />

É necessário, antes de tudo, compreender que a presença dos jesuítas no<br />

Brasil não se fez por méritos de ação evangelizadora apenas, como muitos<br />

dos relatos apontam. Desde a Carta de Cam<strong>in</strong>ha é visível a dupla <strong>in</strong>tenção<br />

da catequese, uma vez que o <strong>in</strong>vasor lia na ausência de símbolos e credos uma<br />

lacuna cultural a ser preenchida pela doutr<strong>in</strong>a católica, como <strong>in</strong>strumento<br />

de salvação dos “gentios”, considerados bárbaros, mas que formariam uma<br />

nova sociedade a partir de sua <strong>in</strong>serção nos valores europeus. Enquanto o<br />

patriarcado via no <strong>in</strong>dígena um farto trabalho escravo, os jesuítas os tiveram<br />

como matéria-prima a ser lapidada pela imposição do Evangelho, segundo<br />

o poder do <strong>in</strong>vasor, a fi m de torná-los aptos ao serviço do re<strong>in</strong>o.<br />

Se a catequese <strong>in</strong>aciana obedecia aos <strong>in</strong>teresses europeus, certamente<br />

não se harmonizou com a realidade <strong>in</strong>dígena, uma vez que as tendências<br />

naturais não foram respeitadas, tal qual o fi zeram os franciscanos. Ansiosos<br />

pela salvação das almas gentis, os jesuítas não acataram os costumes, não<br />

lhe consentiram a liberdade em que viviam, nem tampouco observaram os<br />

talentos que possuíam. Na obsessão de torná-los letrados e adeptos ao cristianismo,<br />

sujeitaram-nos a todo tipo de aculturação, usando a língua como<br />

maior artifício. Os resultados desse massacre, revestido de catequese, não<br />

poderiam ter tido outro índice.<br />

Além da hostilidade, posta sem nenhum senso, os <strong>in</strong>dígenas sofreram<br />

os efeitos na “erradicação do espírito autóctone, desde a imposição do vestuário,<br />

verdadeiro suplício para os índios, até a ruptura da sua divisão do<br />

trabalho, do sistema econômico, da moral sexual e da atitude religiosa”<br />

(Merquior, 1996, p.18). Ante os <strong>in</strong>úmeros desencontros, os jesuítas deram<br />

preferência às crianças, uma vez que os adultos se esquivavam da doutr<strong>in</strong>a,<br />

mesmo com os castigos aplicados, semelhantes aos dos escravos. Explicamse,<br />

por meio desses aspectos, os motivos pelos quais fugiam do poder <strong>in</strong>vasor,<br />

que, além de lhe usurparem a existência, transformavam-nos em seres<br />

desarmados diante da estúpida experiência colonial.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 65<br />

O quadro desenhado tem uma dimensão de horror, como se vê na documentação<br />

do Padre Anchieta, em suas cartas, <strong>in</strong>formações, fragmentos<br />

históricos e sermões, produzidos paralelamente à obra “literária”, nos quais<br />

são colocadas a lume as cenas reais que a fi cção impermeabilizou com seu<br />

verniz multicor. Nesses documentos encontra-se uma face da produção jesuítica<br />

que difere do teor poético do primeiro <strong>in</strong>telectual a escrever no Brasil<br />

das coisas e gentes do Brasil. Nos 44 anos de missão realizada na nova<br />

terra, Anchieta não só observou, como fez Cam<strong>in</strong>ha, mas <strong>in</strong>seriu-se num<br />

ambiente avesso ao imag<strong>in</strong>ado na Europa. Os apontamentos que fez acerca<br />

dos <strong>in</strong>dígenas em suas cartas, de modo especial, não contêm o teor poético e<br />

a harmonia religiosa presente nos poemas escritos em tupi. A apresentação<br />

dos nativos, feita na Carta I, escrita em Pirat<strong>in</strong><strong>in</strong>ga, referente ao quadrimestre<br />

de maio a setembro de 1554, deixa evidente o total desconhecimento<br />

em relação à cultura autóctone, como se pode ver no excerto que segue:<br />

estes entre os quais vivemos estão espalhados 300 milhas (segundo nos parece)<br />

pelo sertão; todos eles se alimentam de carne humana e andam nus; moram em<br />

casas feitas de madeira e barro, cobertas de palhas ou com cortiças de árvores;<br />

não são sujeitos a nenhum rei ou capitão, só têm em alguma conta os que alguma<br />

façanha fi zeram, digna do homem valente, e por isso comumente recalcitram,<br />

porque não há quem os obrigue a obedecer; os fi lhos dão obediência<br />

aos pais quando lhes parece; fi nalmente, cada um é rei em sua casa e vive como<br />

quer; pelo que nenhum ou certamente muito pouco fruto se pode colher deles,<br />

se a força e o auxilio do braço secular não acudirem para domá-los e submetêlos<br />

ao jugo da obediência. [...] e não moderam a <strong>in</strong>saciável raiva nem com o<br />

sentimento do parentesco. (Anchieta, 1988, p.55)<br />

Embora Roncari (2002, p. 62) atente à necessidade de ler a obra de Anchieta<br />

“como um religioso num tempo a<strong>in</strong>da essencialmente religioso”, ao<br />

qual “não podemos atribuir-lhe ideias, sentimentos e valores fora desses limites,<br />

nem esperar dele atitudes que fugiam às perspectivas dos homens de<br />

seu tempo”, é, no mínimo, <strong>in</strong>stigante ler o excerto citado e apreender dele o<br />

pensamento de um conhecedor da fi losofi a cristã. A<strong>in</strong>da que não se trate de<br />

um etnólogo, a expectativa criada em torno de um religioso de sua grandeza<br />

leva a depositar-lhe uma conduta fraterna, no mínimo, de respeito ao outro,<br />

encontrada nas l<strong>in</strong>has gerais do catolicismo, salvo os hiatos históricos desa-


66 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

bonadores. Em poucas l<strong>in</strong>has, seu discurso nivela os <strong>in</strong>dígenas aos canibais,<br />

descreve as casas suc<strong>in</strong>tamente, aponta para a ausência de um rei, como se<br />

houvesse a necessidade de tê-lo, visto pelo seu sistema de governo, além<br />

de acusá-los de total desobediência, imputando à atitude livre dos fi lhos<br />

um fator negativo. Somado a esses aspectos, acentua o caráter desigual pela<br />

afi rmação de <strong>in</strong>dividualidade no comando das casas, o que contraria outras<br />

passagens posteriores em que elogia a atitude coletiva de morar e de dividir<br />

o alimento em harmonia.<br />

Para justifi car o cenário descrito, somente a tradição eurocêntrica, ou “o<br />

braço secular”, poderia submeter e dom<strong>in</strong>ar uma população tão adversa aos<br />

olhos do <strong>in</strong>vasor. Se Anchieta olha e sente como um religioso as circunstâncias<br />

da colonização, certamente o faz sob abrigo da congregação a que pertence e<br />

do governo a que serve, pois a <strong>in</strong>tenção de dom<strong>in</strong>ar alguém, como se “doma”<br />

um animal, diverge de qualquer fi losofi a religiosa, seja ela pautada por Cristo,<br />

Buda, ou outra div<strong>in</strong>dade professada. Não há como eximir o literato jesuíta<br />

de um preconceito exacerbado diante da cultura pueril, ao atribuir-lhes comparações<br />

dissonantes a um religioso: “não quererão chegar-se ao culto da fé<br />

cristã; pois são de tal forma bárbaros e <strong>in</strong>dômitos, que, parecem aproximarse<br />

mais a natureza das feras do que a dos homens” (Anchieta, 1988, p.56).<br />

A bestialidade, pontuada também em Cam<strong>in</strong>ha, passa a ser um dos<br />

motivos reiterativos das cartas e <strong>in</strong>formações encam<strong>in</strong>hadas ao re<strong>in</strong>o, como<br />

prova de que a catequese seria o bálsamo a curar um desvio, que se opõe<br />

ao círculo dos preceitos cristãos: “nos campos e fl orestas andam e rompem<br />

como bichos” (ibidem, p.441). O aspecto da bestialidade está presente<br />

numa série de textos recortados neste percurso de leitura. O que se pode<br />

apreender de sua constância é que o valor simbólico impresso difere como<br />

manifestação a ser apagada ou resguardada. Em Anchieta prevalece o teor<br />

negativo, de um ser bestial desprovido de cristandade, consequentemente,<br />

alvo da <strong>in</strong>serção de valores que o elevasse à condição igualitária do <strong>in</strong>vasor.<br />

A bestialidade, portanto, deveria ser retirada para que o novo homem<br />

surgisse. Em outros textos, como Iracema, Jupira e Meu tio o Iauretê, a<br />

aproximação com as características decorre da necessidade de <strong>in</strong>corporar<br />

a personagem a um contexto. As personagens Iracema e Jupira são comparadas<br />

a animais em detrimento das mudanças das ações e de atitudes que<br />

revelam similaridades com determ<strong>in</strong>ados traços, seja a fragilidade do saí,<br />

seja o poder traiçoeiro da boic<strong>in</strong><strong>in</strong>ga. No texto rosiano, no entanto, o re-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 67<br />

torno do mestiço à condição de animal se faz necessária, é algo que deve<br />

ser resguardado para que recupere a identidade totêmica, como se verá na<br />

análise posteriormente.<br />

Assim, em Anchieta, todos os cam<strong>in</strong>hos devem levar à conversão, entendida<br />

como um ato de anulação da bestialidade. As sessões a que foi submetido<br />

o nativo pelos jesuítas dão conta de um ritual que tende à dom<strong>in</strong>ação<br />

por meio dos conceitos cristãos que lhe restituiria a humanidade:<br />

na doutr<strong>in</strong>ação dos Índios guardamos a mesma ordem: duas vezes por dia são<br />

chamados à igreja, pelo toque da campa<strong>in</strong>ha, ao qual acodem as mulheres daqui<br />

e dali, e lá recitam as orações no próprio idioma, recebendo ao mesmo tempo<br />

contínuas exortações, e se <strong>in</strong>stru<strong>in</strong>do em tudo quanto respeita ao conhecimento<br />

da fé. (ibidem, p.97)<br />

Aliada à imagem referida está a de um povo violento, desejoso de guerra,<br />

como se esses rituais fossem negativos aos índios e aceitáveis aos europeus:<br />

“esta gente é tão carniceira, que parece impossível que possam viver sem<br />

matar” (ibidem, p.192). Dessa maneira, os então reconhecidos “selvagens”<br />

(ibidem, p.441) são moldurados em cenas tipicamente construídas pelo<br />

imag<strong>in</strong>ário <strong>in</strong>vasor, que traduz seus traços como “horrores da gentilidade”<br />

(ibidem ,p.82). Além disso, “têm grandíssimas guerras entre si, umas<br />

nações contra outras, o que é comum em toda a Índia do Brasil” (ibidem,<br />

p.82), e são <strong>in</strong>vestidos “de mui pouca capacidade natural”, “não têm escrita,<br />

nem caracteres, nem sabem contar, nem têm d<strong>in</strong>heiro” (ibidem, p.441).<br />

O lastro de imagens segue pelo aspecto da moralidade, em que “as mulheres<br />

andam nuas e não sabem se negar a n<strong>in</strong>guém, mas até elas mesmas<br />

cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porque<br />

têm por honra dormir com os Cristãos” (ibidem, p.78). A leitura do quadro,<br />

feita por Anchieta, prolonga o código <strong>in</strong>stituído na Carta de Cam<strong>in</strong>ha, em<br />

que o “corpo <strong>in</strong>dividual se transforma em cenário e lugar em que certas partes<br />

são obscenas”, justifi cados apenas em caso de “ignorância imputável”,<br />

atribuído ao <strong>in</strong>dígena, por encontrar-se em “estado de <strong>in</strong>ocência absoluta”<br />

(Chamie, 2002, p.31). Anchieta prescreve um cenário moral do colonizador<br />

em que a nudez <strong>in</strong>dividual fere a <strong>in</strong>tegridade do corpo social, representado<br />

pelo poder da Igreja, que <strong>in</strong>fl ige o sagrado e o pecam<strong>in</strong>oso à cultura nativa,<br />

desprovida desses limites.


68 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

O mesmo aspecto é empregado ao descrever o casamento entre os nativos:<br />

“casam sem dote e às vezes servem aos pais por casar com as fi lhas; [...]<br />

amam muito os fi lhos, mas não procuram deixar-lhes heranças” (Anchieta,<br />

1988, p.442). Fica evidente a ignorância do <strong>in</strong>vasor frente aos hábitos seculares<br />

de uma cultura a<strong>in</strong>da não tocada pelo imperialismo europeu, voltado<br />

para o casamento como <strong>in</strong>stituição em que se agregam valores dest<strong>in</strong>ados ao<br />

futuro, uma prática especialmente contrária à tradição <strong>in</strong>dígena, pautada na<br />

liberdade e na ausência de acúmulo de riquezas:<br />

os Índios do Brasil parece que nunca têm animo de se obrigar, nem o marido à<br />

mulher, nem a mulher ao marido, quando se casam: e por isso a mulher nunca<br />

se agasta porque o marido tome outra ou outras, reste com elas muito ou pouco<br />

tempo, sem ter conversação com ela, a<strong>in</strong>da que seja a primeira; e a<strong>in</strong>da que a<br />

deixe de todo, não faz caso disso, porque se é a<strong>in</strong>da moça, ela toma outro, e se é<br />

velha assim fi ca sem esse sentimento, sem lhe parecer que o varão lhe faz <strong>in</strong>júria<br />

nisso, sobretudo se isso o serve e lhe dá de comer, etc. E de ord<strong>in</strong>ário tem paz<br />

com suas comborças, porque tanto as têm por mulheres de seus maridos como<br />

a si mesmas. (ibidem, p.456)<br />

Os textos de Gabriel Soares e de Claude D’Abbeville, segundo Afrânio<br />

Peixoto, em nota explicativa ao texto de Anchieta, davam conta das relações<br />

matrimoniais entre os tup<strong>in</strong>ambás, que ora contestam, ora confi rmam<br />

o depoimento do jesuíta. O que os s<strong>in</strong>gularizam, no entanto, é a ausência<br />

de qualquer sentimento de ciúmes entre as índias e o número de mulheres<br />

dest<strong>in</strong>adas a um homem, dois aspectos <strong>in</strong>sólitos ao herdeiro e defensor do<br />

cânone católico: “casamentos de ord<strong>in</strong>ário não celebram entre si e assim um<br />

tem três e quatro mulheres, posto que muitos não têm mais que uma só e, se<br />

é grande pr<strong>in</strong>cipal e valente, tem dez, doze e v<strong>in</strong>te. Tomam umas e deixam<br />

outras...” (ibidem, p. 337).<br />

Ao lado da estranheza causada pela poligamia, encontra-se, também,<br />

nos relatos anchietanos, a referência a traços de comportamento que nivelam<br />

a <strong>in</strong>dianidade à civilização <strong>in</strong>vasora, como se nota no excerto referente<br />

a um índio Carijó, etnia considerada de fácil conversão: “mui bom cristão,<br />

homem mui discreto e nem parece ter cousa alguma de índio” (ibidem,<br />

p.90). Ser índio, no tecido discursivo do jesuíta, é estar fora do âmbito civilizatório,<br />

e reafi rma a vertente de que somente o batismo cristão o salvaria


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 69<br />

da barbárie. O desafi o era, então, conquistar as almas dos “brasis”, o que<br />

seria satisfatório se desenvolvido a partir das mentes mais jovens: “temos<br />

uma grande escola de men<strong>in</strong>os Índios, bem <strong>in</strong>struídos em leitura, escrita<br />

e em bons costumes, os quais abom<strong>in</strong>am os seus progenitores” (ibidem,<br />

p.89). Nota-se, no excerto, a visível “consolação” do <strong>in</strong>vasor, em perceber a<br />

alteração dos hábitos dos jovens em relação à cultura tradicional.<br />

Dentre o conjunto de aspectos negativos confi gurados nos relatos e <strong>in</strong>formações<br />

de Anchieta (1988, p.84), destaca-se o ritual de antropofagia:<br />

têm por sumo deleite comer-se uns aos outros, e muitas vezes vão à guerra e<br />

havendo andado mais de cem léguas, se cativam três ou quatro, se tornam com<br />

eles e com grandes festas e cantares os matam, usando de muitas cerimônias<br />

gentílicas, e assim os comem, bebendo muito v<strong>in</strong>ho, que fazem de raízes, e os<br />

miseráveis dos cativos se têm por mui honrados por morrer morte, que a seu<br />

parecer, é mui gloriosa.<br />

Prevalece no relato o que é observado, sem a preocupação de compreender<br />

o signifi cado do ritual, concebendo, entre outros, o hábito antropofágico<br />

como <strong>in</strong>tervenção do demônio. Da mesma maneira, os pajés são fi -<br />

guras não aceitáveis, por adotarem ações de feitiçaria e responsáveis pelo<br />

canibalismo: “são mui apreciados dos Índios, persuadem-lhes que em seu<br />

poder está a vida ou a morte; não ousam com tudo isto aparecer deante de<br />

nós outros, porque descobrimos suas mentiras e maldades” (ibidem, p.83).<br />

Marcados pelo poder de orientar os <strong>in</strong>dígenas, os pajés representavam a<br />

ameaça constante ao projeto de catequese, pois t<strong>in</strong>ham a seu favor a língua,<br />

as crenças particulares e o poder de se comunicarem com os mortos, motivo<br />

primordial para os jesuítas exigirem sua ext<strong>in</strong>ção, uma vez que dizem ter<br />

“um espírito dentro de si, com o qual podem matar, e com isto metem medo<br />

e fazem muitos discípulos comunicando este seu espírito a outros com os<br />

defumar e assoprar, e às vezes é isto de maneira que o que recebe o tal espírito<br />

treme e sua grandissimamente” (ibidem, p.339).<br />

Ao enumerar os aspectos pert<strong>in</strong>entes à cultura nativa, Anchieta classifi<br />

ca de acordo com as <strong>in</strong>tenções abrigadas em seu discurso de testemunha.<br />

Os carijós pertencem à etnia “mui mais mansa e capaz das coisas de Deus;<br />

estes estão já debaixo do poder do Imperador” (ibidem, p.84); os “Ibirajáras,<br />

dos quais temos notícia são mui chegados à razão, porque obedecem a


70 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

um senhor e não têm mais de uma mulher, nem comem carne humana, nem<br />

têm idolatria nem feitiçaria alguma, [...] se diferenciam muito dos outros<br />

Índios” (ibidem, p.84); os mais políticos “são os Tup<strong>in</strong>ambás, senhores da<br />

Baía, e Tup<strong>in</strong>aqu<strong>in</strong>s [...] que dantes viviam pela costa do mar e a<strong>in</strong>da todos<br />

estes são gente de mui pouca capacidade natural” (ibidem, p.441). Há referências<br />

aos tapuias e aos tamoios, sem muitos atributos, mas unidos em<br />

torno da guerra, aspecto abom<strong>in</strong>ado pelo jesuíta.<br />

Quanto ao aspecto físico observado, Anchieta não difere do texto de<br />

Cam<strong>in</strong>ha, ao priorizar a perfeição: “quase nenhum se encontra entre eles<br />

afetado de deformidade” (ibidem, p.139); “vermelhos de cor, de mediana<br />

estatura, a cara e os mais membros mui bem proporcionados; o cabelo é corredio<br />

de homens e mulheres” (ibidem, p.441). Dentre os hábitos, destaca<br />

que “são dados ao v<strong>in</strong>ho que fazem a seu modo [...]. Vivem muitos juntos<br />

em umas casas mui grandes de palma que chamam ocas e com tanta paz que<br />

põem espanto, e como terem as casas sem portas e suas cousas sem chave<br />

por nenhum modo furtam uns aos outros” (ibidem, p.442).<br />

Além da bebida e da moradia, a comida é descrita como “uma far<strong>in</strong>ha<br />

de pau, que se faz de certas raízes, que se chamam mandioca, as quais são<br />

plantadas e lavradas a este fi m, e se se comem cruas ou assadas ou cozidas<br />

matam, porque é necessário deixá-las em água até que apodreçam, e depois<br />

de apodrecidas se fazem em far<strong>in</strong>ha” (ibidem, p.83). Ao apresentar<br />

o pr<strong>in</strong>cipal alimento existente na nova terra aos Irmãos da Companhia, o<br />

jesuíta <strong>in</strong>sere o ato solidário dos nativos, raramente pontuado em seu discurso:<br />

“também os Índios nos dão algumas vezes alguma carne de caça e<br />

alguns peixes e muitas vezes Nosso Senhor, de onde menos esperávamos<br />

nos socorre” (ibidem).<br />

Como a visão negativa da cultura prevalece no relato, com pequenas exceções,<br />

os mitos e lendas são agrupados em torno do aspecto demoníaco,<br />

conforme se poderá ver no excerto que segue, no qual são apresentadas personagens<br />

da mitologia ameríndia:<br />

espectros noturnos ou antes demônios com que costumam os Índios aterrarse.<br />

[...] certos demônios a que os brasis chamam corupira, que acometem aos<br />

Índios muitas vezes no mato, dão-lhes de açoites, machucam-os e matam-os.<br />

São testemunhas disto os nossos Irmãos, que viram algumas vezes os mortos<br />

por eles [...].


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 71<br />

Há também nos rios outros fantasmas, a que chamam Igpupiára, isto é, que<br />

moram n’água, que matam do mesmo aos Índios. [...]<br />

Há também outros, máxime nas praias, que vivem a maior parte do tempo<br />

junto do mar e dos rios, e são chamados baetatá, que quer dizer “cousa de fogo”,<br />

o que é o mesmo como se dissesse “o que é todo fogo”.<br />

Há também outros espectros do mesmo modo pavorosos, que não só assaltam<br />

os Índios, como lhes causam dano; o que não admira, quando por estes e<br />

outros meios semelhantes, que longo fora enumerar, quer o demônio tornar-se<br />

formidável a estes brasis, que não conhecem a Deus, e exercer contra eles tão<br />

cruel tirania. (ibidem, p.139)<br />

Além dos citados, faz alusão, também, ao mito do dilúvio, que, entre<br />

os <strong>in</strong>dígenas, possui uma história “muito confusa, por lhes fi car de mão<br />

em mão dos maiores que contam a história de diversas maneiras” (ibidem,<br />

p.340). É possível reconhecer na descrição dos mitos e lendas a ambiguidade<br />

da <strong>in</strong>terpretação, que se move nos campos polares do que parece ser causador<br />

de espanto e do registro, que se irá dispor, posteriormente, ao serem<br />

coletados como matéria-prima da oralidade, transubstanciada na literatura<br />

em diferentes momentos históricos. Sendo Anchieta um produtor da educação<br />

escrita, não reconhece a tradição do mito que se refaz por meio das<br />

histórias orais de uma cultura ágrafa, como a encontrou. A<strong>in</strong>da entre os mitos,<br />

refere-se a dois homens que andavam entre eles: “Çumé, que deve ser<br />

o apostolo S. Tomé” e “Maira, que dizem que lhes fazia mal e era contrário<br />

de Çumé” (ibidem, p.340). Para o jesuíta, essas eram “<strong>in</strong>venções”, como as<br />

máscaras que faziam para ofertar “em uma casa escura”, a que em sentido<br />

geral chamavam de “Caraiba”, e, por isso, seu signifi cado estendeu-se aos<br />

portugueses, “tendo-os por cousa grande, como de outro mundo, por virem<br />

de tão longe por cima das águas” (ibidem, p.340).<br />

Como se nota no percurso feito até aqui, os relatos dão um panorama do<br />

que seria a civilização ameríndia em sua essência, tal como concebida nas<br />

p<strong>in</strong>turas e nos textos anteriores a Anchieta, que povoaram a imag<strong>in</strong>ação<br />

europeia. Diante dessa concepção, o índio passa a ser um alvo certo a ser<br />

at<strong>in</strong>gido pela catequese, como solução para os “desvios” observados. Uma<br />

das características acentuadas pelo jesuíta é a rebeldia à rigidez dos ritos e<br />

da pregação, como escreve ao padre geral: “há tão poucas cousas dignas de<br />

se escrever, [...] porque os adultos a quem os maus costumes de seus pais


72 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

têm convertido em natureza cerram os ouvidos para não ouvir a palavra da<br />

salvação” (ibidem, p.155). A recusa, segundo o relato, desencadeou a fuga<br />

dos nativos, acentuando a perspectiva do homem a ser dom<strong>in</strong>ado ante a<br />

<strong>in</strong>disponibilidade ao exercício da fé cristã:<br />

a maior parte destes (como nas cartas passadas disse) fez outras moradas não<br />

longe daqui, onde agora vivem, porque ultra de eles não se moverem nada às<br />

cousas div<strong>in</strong>as, persuadiu-se-lhes agora uma diabólica imag<strong>in</strong>ação, que esta<br />

igreja é feita para sua destruição, em a qual os possamos encerrar e aí ajudandonos<br />

dos Portugueses, matar aos que não são batizados e aos já batizados fazer<br />

nossos escravos, isto mesmo lhes dizem outros Índios. (ibidem, p.108)<br />

A fuga, vista como elemento de recusa da catequese implica outras<br />

questões, não impressas no excerto acima pelo jesuíta, em função de sua<br />

história e de seu objetivo. A causa, segundo o relato, devia-se aos “agravos<br />

que recebiam dos Portugueses, que os cativavam, ferravam, vendiam,<br />

apartando-os de suas mulheres e fi lhos com outras <strong>in</strong>júrias que eles sentem<br />

muito”, havendo a necessidade de pedir ao rei “que não sejam cativos nem<br />

os possa n<strong>in</strong>guém ferrar, nem vender” (ibidem, p.443). Considerado o distanciamento<br />

no tempo e observados os apontamentos, percebe-se que os<br />

nativos não agiam sob “diabólica imag<strong>in</strong>ação”, como <strong>in</strong>terpretou sob propósitos<br />

cristãos. Agiram, antes de tudo, em defesa de sua tradição, não se<br />

deixando exumar, pela religião do outro, até que os confi nassem nos becos<br />

mais remotos do território. Mesmo reag<strong>in</strong>do ao capcioso projeto de confi -<br />

namento e de desestabilização de suas raízes, foram alcançados, e a história<br />

registrou, posteriormente, os seus efeitos.<br />

O poder de convencimento dos jesuítas sobre a cultura autóctone alcançou<br />

tal dimensão que os poucos <strong>in</strong>dígenas convertidos passaram a agir conforme<br />

os “ens<strong>in</strong>amentos” recebidos. Um dos relatos de Anchieta (ibidem,<br />

p.99) ass<strong>in</strong>ala a violência com que a catequese se <strong>in</strong>stalou no meio:<br />

Se por acaso algum deles se entrega a qualquer ato, que saiba aos costumes<br />

gentios, a<strong>in</strong>da que em proporções mínimas, quer nos trajes, quer na conversação,<br />

ou qualquer outra cousa, imediatamente o censuram e o escarnecem.<br />

Como eu encontrasse um deles, tecendo um cesto ao Dom<strong>in</strong>go, no dia segu<strong>in</strong>te<br />

o levou para a escola e, na presença de todos, o queimou, porque o co-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 73<br />

meçara a tecer no Dom<strong>in</strong>go: muitos conhecem tão bem tudo quanto respeita à<br />

salvação, que não podem alegar ignorância perante o tribunal do Senhor. Contudo<br />

tememos que eles, quando chegarem a idade adulta, condescendendo com<br />

a vontade dos pais, ou no tumulto da guerra, a qual dizem que frequentemente<br />

se faz, e quebrada a paz entre eles e os cristãos, voltem aos antigos costumes.<br />

É notável, no entanto, que, ao mesmo tempo que se estampa o efeito da<br />

destribalização por meio da <strong>in</strong>serção do culto ao dia sagrado cristão, Anchieta<br />

aponta para um dos maiores empecilhos da conversão. Há o medo<br />

constante do retorno do nativo a suas origens, autenticando, assim, a <strong>in</strong>efi -<br />

cácia do método de abordagem. Lê-se na atitude do homem nativo, o que<br />

Castro (2002) denom<strong>in</strong>ou “a <strong>in</strong>constância da alma selvagem”, ao referir-se<br />

ao Sermão do Espírito Santo, de Vieira, do qual se destacou a epígrafe deste<br />

livro. Segundo o antropólogo, o tema da <strong>in</strong>constância impressa no sermão<br />

poderia ser resumido numa frase: “o gentio do país era exasperadoramente<br />

difícil de converter” (ibidem, p.184). O mesmo pode ser dito acerca de<br />

Anchieta, vista a preocupação em registrar a conduta receptiva do índio, a<br />

pr<strong>in</strong>cípio, para, posteriormente, lançar a dúvida sobre tal postura. Diante<br />

disso, Castro (2002, p.185) conclui que “esse gentio sem fé, sem lei e<br />

sem rei não oferecia um solo psicológico e <strong>in</strong>stitucional onde o Evangelho<br />

pudesse deitar”. Comparados não ao símile europeu da “estátua de murta”,<br />

mas ao ambiente natural, os índios mais se parecem com a “mata que<br />

os agasalhava, sempre pronta a se refechar sobre os espaços precariamente<br />

conquistados pela cultura”. A<strong>in</strong>da que parecessem crédulos aos olhos do<br />

missionário, cont<strong>in</strong>uavam <strong>in</strong>crédulos, considerado o permanente retorno às<br />

crenças, manifestado na idade adulta.<br />

Dentro desse arcabouço apostólico, o batismo cristão desponta como<br />

uma das vias para solidifi car o projeto de aliciamento dos índios. A adm<strong>in</strong>istração<br />

do sacramento é feita diante de situações adversas, em que o jesuíta<br />

se apropria do momento de desolação, como o fez junto aos doentes, aos<br />

quais lhe concedia a “salvação” pelo batismo:<br />

todavia, quando caem em alguma enfermidade, de que parece morrerão, procuramos<br />

de os mover, a que queiram receber o batismo, porque então comumente<br />

estão mais aparelhados; [...] adoeceu um destes catecúmenos em uma aldeia<br />

nos arrebaldes de Pirat<strong>in</strong><strong>in</strong>ga e fomos lá dar algum remédio, pr<strong>in</strong>cipalmente


74 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

para sua alma: dizíamos-lhe, que olhasse para a sua alma, e que deixando os<br />

costumes passados, se preparasse para o batismo.<br />

Adoeceu outro em outro lugar [...] visitei-o [...] com palavras brandas o persuadia<br />

a tomar o batismo [...] ‘pois que assim é, te batizarão e alcançarás a eterna<br />

salvação’; mas não somente não consentiu, que cobr<strong>in</strong>do a cara me deixou,<br />

sem dizer mais palavra, e no outro dia, permanecendo na mesma obst<strong>in</strong>ação,<br />

morreu. (Anchieta, 1988, p.155-6)<br />

A mecânica da docilidade vista em Cam<strong>in</strong>ha, na troca de objetos, desnuda-se<br />

em Anchieta de uma forma sacrifi cial, em que o objeto de troca não é<br />

mais o arco e fl echa por um <strong>in</strong>strumento de ferro, e sim a alma do “gentio”<br />

pela adesão ao catolicismo. O prêmio, portanto, deixa a esfera material para<br />

abrigar-se na espiritual, mesmo que imposto pela vontade do <strong>in</strong>vasor, sem<br />

a disponibilidade do nativo. Se Cam<strong>in</strong>ha atua como árbitro no julgamento<br />

de ações ante o homem americano, Anchieta fala em nome de um deus, que<br />

lhe outorga poder sagrado.<br />

Como se pode notar, a apresentação do habitante é matizada de acordo<br />

com a reação do <strong>in</strong>dígena, estimulada pelo assédio. Nomeia-o segundo as<br />

variações de sentido que atribui às situações de abordagem, elaborando, assim,<br />

um roteiro balizado pelo olhar da retórica da diferença em que destitui<br />

o selvagem de suas especifi cidades. Ao nativo são imputados os atributos<br />

de bestialidade, imperfeição e <strong>in</strong>ferioridade, que permitem ao conquistador<br />

tê-lo como propriedade, torná-lo dependente e fazê-lo obediente. Para<br />

anular o dom<strong>in</strong>ado, o <strong>in</strong>vasor coloca-se como espelho que refl ete o modelo<br />

a ser seguido, levando-o a livrar-se dos costumes naturais e <strong>in</strong>serir-se na<br />

cultura impositiva.<br />

Nos relatos das cartas e <strong>in</strong>formações sobre os “Brasis”, Anchieta não vê<br />

a ausência de símbolos, ritos e costumes da cultura <strong>in</strong>dígena como referência<br />

de um centro organizado, considera-o disperso e anárquico, passível de<br />

ser redimido somente pela conversão. Compreendidos esses limites polares<br />

do “olhar fechado” do jesuíta, é possível visualizar o motivo pelo qual seu<br />

roteiro dá ênfase muito mais aos aspectos negativos do índio, do que seus<br />

dotes orig<strong>in</strong>ais. As poucas <strong>in</strong>serções em que se deixa seduzir pelos selvagens<br />

sugerem necessidade ou reserva. São notados como portadores de algum<br />

traço positivo, quando “dão algumas vezes alguma carne de caça” (ibidem,<br />

p.83); ou “deram muitos deles de boa vontade seus fi lhos ao Padre para que


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 75<br />

fossem ens<strong>in</strong>ados, dos quais ajuntou muitos e os batizou, ens<strong>in</strong>ando-os a<br />

falar Português, ler e escrever” (ibidem, p.324). Reserva-se diante do costume<br />

<strong>in</strong>dígena, quando lhe oferecem, em honra, uma das fi lhas, como é de<br />

hábito presentear o visitante, para que se torne membro da família:<br />

oferecendo-nos suas fi lhas, <strong>in</strong>sist<strong>in</strong>do muitas vezes; mas como lhes déssemos<br />

a entender que não somente aquilo que era ofensa a Deus aborrecíamos, senão<br />

que não éramos casados, nem tínhamos mulheres, fi caram eles e elas tão espantados,<br />

como éramos tão sofridos, e cont<strong>in</strong>entes, e t<strong>in</strong>ham-nos muito maior<br />

crédito e reverência. (ibidem, p.212)<br />

Nota-se nos fragmentos que o selvagem é, gradativamente, encoberto<br />

por um matiz degenerado, que absorve o estado natural e o troca pelo civilizado,<br />

no jogo paradoxal da esfera vício/virtude. Julgado como fácil de<br />

dom<strong>in</strong>ar, suas ações são relativizadas como vícios a serem punidos e, em<br />

seu lugar, <strong>in</strong>serido o bom comportamento que a civilização, com seus conceitos<br />

seculares, concebe como virtude. Mesmo que ocorra a transmutação<br />

de valores, há episódios em que a ação toma duas medidas, como a adesão<br />

à guerra, por exemplo, condenada pelo jesuíta quando efetuada entre as etnias.<br />

No entanto, quando se trata de defender os <strong>in</strong>teresses da Companhia,<br />

a avaliação é outra:<br />

somente direi as grandes misericórdias de que Deus usou para conosco, das quais<br />

a pr<strong>in</strong>cipal foi mover o coração de muitos Índios dos nossos catecúmenos a Cristãos<br />

a nos ajudar a tomar armas contra os seus; os quais sabida a notícia e verdade<br />

da guerra, vieram de sete ou oito aldeias, em que estavam esparzidos, a meterse<br />

conosco, não todos, mas somente aqueles que amam a Deus. (ibidem, p.193)<br />

O conjunto de imagens retiradas dos textos protocolares do jesuíta permanece<br />

no mesmo campo visual das de Cam<strong>in</strong>ha, exceto o aspecto demoníaco,<br />

mais acentuado, tomado como justifi cativa para a realização do projeto<br />

de transubstanciação religiosa. Com a experiência prolongada entre os nativos,<br />

seus rituais e costumes, os objetivos se voltam a uma das áreas mais<br />

sensíveis aos olhos da igreja: a liturgia dest<strong>in</strong>ada aos mortos. Segundo Bosi<br />

(1992, p.69), “eram essas práticas verdadeiramente ricas de signifi cado, esses<br />

ritos que atavam a mente do índio ao seu passado comunitário ao mesmo


76 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

tempo que garantiam a sua identidade no <strong>in</strong>terior do grupo”. Assim, para<br />

desestabilizar os rituais, era impresc<strong>in</strong>dível criar um ambiente de horror,<br />

capaz de “diabolizar toda cerimônia que abrisse cam<strong>in</strong>ho para a volta dos<br />

mortos”. As formas de violência impostas pela <strong>in</strong>serção de novos valores<br />

em meio ao universo cosmogônico <strong>in</strong>dígena só foram atenuadas nos textos<br />

poéticos de Anchieta, em que sobressai a imagem do homem nativo adaptado<br />

ao ritual cristão, como se notará a seguir.<br />

De posse do imag<strong>in</strong>ário <strong>in</strong>dígena, Anchieta estabelece uma série de homologias<br />

entre os símbolos pagãos e os cristãos, a fi m de assegurar a efi cácia<br />

do método de transposição. Essa “mitologia paralela”, como aponta Bosi,<br />

foi construída nos Autos, em que o embate entre bem/mal, Deus-Tupã,<br />

era o cerne, e na lírica tupi, em que são dissolvidos na língua os signifi cados<br />

cristãos a serem absorvidos, como ocorreu com o símbolo de Nossa Senhora,<br />

apresentada em certas ocasiões como Tupansy, a mãe do deus maior<br />

Tupã, ou como símbolo de proteção aos menores, conforme evidenciado<br />

nos poemas A Nossa Senhora, e Tupã Sy, Santa Maria, referidos a seguir.<br />

A fi gura de Maria, ou Nossa Senhora, é reiterada em boa parte da lírica<br />

tupi, que tem como conteúdo a fi gura do diabo a perseguir o nativo e a fi gura<br />

materna, defensora dos que sofrem seu poder malévolo:<br />

Toma-nos a dianteira sempre<br />

o diabo, ameaçando-nos.<br />

O nosso chamado à mãe de Deus,<br />

fá-lo sofrer muito.<br />

Mas que nós não cessemos<br />

de chamá-la, para espantar o maldito.<br />

Compadece-se muito de nós<br />

a mãe de Deus, Santa Maria. (Anchieta, 2004, p.187)<br />

A dimensão diabólica, entendida pelo jesuíta como manifestação dos<br />

antepassados <strong>in</strong>dígenas, é transfi gurada no <strong>in</strong>tuito de dar à Maria o poder<br />

de expulsar os espíritos do mal. Por meio dessa estratégia, Anchieta <strong>in</strong>terfere<br />

na estrutura religiosa do nativo, não só do ponto de vista da substituição<br />

dos símbolos, mas dá ênfase, também, à <strong>in</strong>dividualidade. O índio<br />

perde, aos poucos, a expressão coletiva de seus rituais, e se põe diante das<br />

entidades religiosas do <strong>in</strong>vasor como ser único, responsável, portanto, pela


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 77<br />

cont<strong>in</strong>uidade de existência de sua gente. No poema Tupã Sy, Santa Maria,<br />

por exemplo, o poder demoníaco tem um posto mais elevado que o próprio<br />

representante do bem, colocando em risco a paz coletiva. Daí a necessidade<br />

permanente da <strong>in</strong>tercessão da fi gura de Maria para a expulsão do mal:<br />

“Mas que nós não cessemos/de chamá-la, para espantar o maldito” (ibidem,<br />

p.187).<br />

A <strong>in</strong>vocação à Maria e a Jesus obedece à proposta catequética de destruir<br />

os laços do nativo com o passado, pelo ritual dedicado aos mortos,<br />

temido pelo cristianismo pelo seu teor mediúnico e alicerçado de maneira<br />

especial nos transes obtidos por meio das bebidas e dos fumos utilizados.<br />

Paralelamente a essa função, estabelece-se o medo e o terror ao diabo, como<br />

<strong>in</strong>stituição que destrói qualquer ser, por isso é construído sob adjetivos s<strong>in</strong>gulares,<br />

como “<strong>in</strong>imigo”, aquele que ameaça e arrasta as almas para si, ou<br />

que ataca e perverte por meio de suas armadilhas. As ações que lhe são atribuídas<br />

são oriundas do discurso cristão, sem dúvida, as quais deveriam ser<br />

repelidas pelas forças antagônicas do bem, encontradas no poder de Jesus<br />

e Maria. Para cada ameaça demoníaca, há uma possibilidade de contenção,<br />

caso o eu lírico (o <strong>in</strong>dígena, implícito) se mantenha fi el às forças benévolas:<br />

Ao se dizer “Jesus”, o maldito<br />

tem medo, correndo de má vontade.<br />

Ouv<strong>in</strong>do o nome da mãe de Deus<br />

voa de nós.<br />

Que a Maria alegremos,<br />

do diabo a lei repel<strong>in</strong>do. (ibidem, p.189)<br />

Ante o medo e a ameaça, a estratégia de s<strong>in</strong>gularização da imagem cristã<br />

é o refrão no fi nal de cada estrofe, que reforça a posição de culpa de quem<br />

clama por ajuda celestial. Por meio dele, <strong>in</strong>voca-se o poder maior em benefício<br />

do nativo, que, prostrado, carrega o s<strong>in</strong>al do pecado, tal qual imposto<br />

aos primeiros habitantes da terra, Adão e Eva, na concepção cristã: “Compadece-se<br />

muito de nós/ a mãe de Deus, Santa Maria” (ibidem, p.187).<br />

Nas sete estrofes do poema escrito em tupi, traduzido para o português na<br />

edição utilizada neste trabalho, a imagem do diabo é responsável pela tensão<br />

tanto no plano lexical, expresso nos vocábulos “espanto”, “ameaça” e<br />

“maldição”, quanto no contexto semântico, em que a visão do diabólico


78 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

passa a ter uma abrangência devastadora, diante da cultura pagã, livre, até<br />

então, das angústias messiânicas trazidas pelo <strong>in</strong>vasor.<br />

Como se nota, o índio do poema difere do perfi l visto anteriormente, colhido<br />

das cartas e das <strong>in</strong>formações do Brasil, pois está oculto sob a máscara<br />

da subserviência, alterado pela <strong>in</strong>serção das crenças em deuses adversos à<br />

sua tradição, e aterrorizado pela presença do mal, numa faceta diferente da<br />

que habitualmente se defendia. Não se pode, no entanto, considerar que<br />

esse nativo, fi gurado nos textos ditos “literários” de Anchieta, tenha recebido<br />

pacifi camente a ditadura do <strong>in</strong>vasor, com suas entidades destruidoras.<br />

A aceitação fi gurada é, antes de tudo, produto da catequese, que percebia<br />

a necessidade urgente de estabelecer, dentro da cultura recém-descoberta,<br />

os limites colocados ao habitante tanto como público, quanto como personagem<br />

da aculturação. Essa fase de aparente domínio do conquistador<br />

refere-se ao momento em que o convívio entre nativos e colonos pautavase<br />

pela tolerância. A partir da alteração dessas relações, a catequese sofre<br />

oscilações, porque os <strong>in</strong>teresses da colonização veem no <strong>in</strong>dígena a possibilidade<br />

de mão de obra, o que o leva a buscar zonas distantes dos jesuítas.<br />

Os poemas atendem, assim, ao exercício fundador de conversão, primeiramente,<br />

fazendo que o nativo seja mergulhado num universo dom<strong>in</strong>ado<br />

“pela beatitude do amor a Deus, ou melhor, aos símbolos simples e diretos<br />

da div<strong>in</strong>dade: poesia ‘primitiva’, de metros e estribilhos fáceis de serem<br />

cantados, em s<strong>in</strong>gelas comemorações litúrgicas, por coros de conversos ou<br />

populares” (Merquior, 1996, p.19).<br />

Com o objetivo de “exacerbar a devoção nos crentes, suscitar o remorso<br />

nos pecadores, a regeneração nos <strong>in</strong>fi éis, a conversão nos gentios e pagãos”,<br />

conforme aponta Sodré (1969, p.75), o jesuíta dirige-se à imag<strong>in</strong>ação<br />

do nativo para persuadi-lo. Assim, os autos e a lírica reconstituem, pela<br />

língua local, os símbolos modelares da moral religiosa, elementos sensíveis<br />

ao homem americano devotado à vida natural. Aliados à produção poética<br />

e aos autos de Anchieta, outros artifícios contribuíram para desestabilizar<br />

as relações específi cas das etnias, como o uso dos objetos sagrados, a água<br />

abençoada, as procissões dirigidas ao culto de salvação, que foram sensíveis<br />

ao <strong>in</strong>teresse do nativo.<br />

Dentre o conjunto da lírica tupi, destaca-se, também, o poema A Nossa<br />

Senhora, que caracteriza, a exemplo do citado anteriormente, o ritual de<br />

devoção à Virgem, como fi gura detentora do poder de destruir as ações do


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 79<br />

mal. Composto de oito estrofes, o poema reúne o canto de oito men<strong>in</strong>os,<br />

diante do altar de Nossa Senhora da Glória, com o <strong>in</strong>tuito de lhe ofertarem<br />

presentes:<br />

Rerityba, m<strong>in</strong>ha terra,<br />

dela venho aqui,<br />

dizendo:<br />

– meus colegu<strong>in</strong>has,<br />

hei de ver o feriado santo. (ibidem, p.151)<br />

[...]<br />

Eu sou um mísero índio de fato.<br />

Iporece’õ é meu nome.<br />

O resto de m<strong>in</strong>has presas<br />

trouxe-o para a ra<strong>in</strong>ha. (ibidem, p.155)<br />

As imagens suscitadas vão em direção ao que se tem pontuado até aqui.<br />

O índio posto em condição de adoração a um símbolo cristão, depois do<br />

sacrifício de chegar até o local da festa: “Cam<strong>in</strong>hei durante este dia,/por<br />

causa da tua fama” (ibidem, p.151), o que assegura o direito à proteção:<br />

Que estes em quem mandas<br />

Lancem fora toda a maldade.<br />

Corrige-os, censura-os,<br />

Para que queiram se livrar<br />

Do fogo do diabo. (ibidem, p.159)<br />

O motivo comum entre os men<strong>in</strong>os-adoradores é a festa de Nossa Senhora,<br />

na qual cada um oferece o produto de seu esforço. Concomitantemente<br />

ao gesto, al<strong>in</strong>havam-se as características dos <strong>in</strong>dígenas, como um<br />

mapeamento de traços da sociedade civilizada: o que chega de “Rerityba”<br />

está fam<strong>in</strong>to e pede o alimento; o do “Rio Parati” traz a cabeça enfeitada<br />

para alegrar a Senhora; o da região de Miaí, fi lho de Jetuú, pesca especialmente<br />

para a ra<strong>in</strong>ha, embora sejam muitos seus servos; o de Guaraparim é<br />

feliz, e vai festejar a pedido da família, que fora cuidada por ela; há o miserável<br />

Iporece’õ, a quem os servos não tratam bem; Sauiaetá, o famoso caçador


80 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

de sauiás; o alegre Ibitirapé, que vivia na “ponta da montanha” (ibidem,<br />

p.157); e, por último, o terrível Juicum, pelo modo como captura os que<br />

passam por ele.<br />

O ritual de visitação e de oferta faz com que o <strong>in</strong>dígena deixe de exercer<br />

a celebração tribal, que herdou da tradição, para ajustar-se a um rito <strong>in</strong>dividual<br />

de entrega, disposto a sacrifi car seu legado plural em nome de uma<br />

cultura sobreposta, artifi cial, pautada na visibilidade corpórea dos s<strong>in</strong>ais,<br />

que o condena pela liberdade, pelo alimento, pelos hábitos matrimoniais,<br />

dentre outras práticas <strong>in</strong>aceitáveis ao olhar do <strong>in</strong>vasor. Com esse método,<br />

Anchieta consegue “c<strong>in</strong>dir as práticas das tribos e elim<strong>in</strong>ar o caráter holista<br />

de sua religiosidade, circunscrevendo-os nas esferas estanques do bem<br />

e mal” (Germano, 2000, p.68). Sob o domínio de Anhanga (o demônio)<br />

foram colocados todos os “vícios” e “pecados” culturais, segundo a leitura<br />

do jesuíta, provocando o temor aos espíritos malignos. Com isso, as celebrações<br />

em torno da Virgem e de seu fi lho <strong>in</strong>culcaram no meio o mundo<br />

maniqueísta, provocando uma confusão mental nos nativos que não conseguiram<br />

adequar-se à nova simbologia, <strong>in</strong>serida na pluralidade existente em<br />

sua própria cultura.<br />

Em todo o percurso da lírica tupi sobressai o horror a entidades maléfi<br />

cas, ocultas em máscaras que não revelam a aparência, diante das quais o<br />

nativo se sente impotente. Nesse cruzamento simbólico, muitas vezes motivo<br />

de resistência, ou de loucura em algumas tribos, a presença benévola<br />

de Maria e de seu fi lho, como santidades portadoras de elementos imagísticos<br />

da cultura europeia cristã, aplaca qualquer possibilidade de ameaça.<br />

Assim, o modelo de salvação vem expresso sob o poder de “afastar o amor<br />

ao diabo/enxotando-o/tornando-o detestável” (ibidem, p.83), pois “Santa<br />

Maria é o seu nome, <strong>in</strong>imiga do diabo/verdadeira estância de Deus/[...]<br />

adversária da morte, senhora da vida” (ibidem, p.89).<br />

Ante o breve excurso pelos textos de Anchieta, é possível perceber-lhe o<br />

traço fundamental, pautado na fi nalidade dos projetos da Companhia que,<br />

diretamente, estavam ligados à Igreja católica. Com a expansão das missões<br />

religiosas, cumpriria o desejo de se opor à presença protestante que se alargava<br />

em direção ao cont<strong>in</strong>ente, bem como conquistar as populações <strong>in</strong>dígenas<br />

ao catolicismo. Para tanto, reuniu em torno das narrativas epistolares,<br />

dos sermões e autos um conjunto de imagens relevantes que nortearam a<br />

leitura de muitos dos seus sucessores, ávidos por <strong>in</strong>ventarem um Brasil a


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 81<br />

seu modo. Certamente as <strong>in</strong>formações do jesuíta foram lidas, em muitos<br />

casos, num contexto em que a barbárie do europeu foi apagada, deixando<br />

transparecer a ação do colonizador como ato aceitável, enquanto a cultura<br />

nativa, aos poucos, foi transfi gurada da vida tribal à canoa do regatão, como<br />

se verá nos relatos e na fi cção de Darcy Ribeiro, na formação de aglomerados<br />

humanos deculturados, sem raízes, <strong>in</strong>seridos na força de trabalho, ou<br />

marg<strong>in</strong>alizados nas periferias urbanas.<br />

Não é necessário muito esforço crítico para visualizar a face romântica<br />

do índio pontuada na literatura brasileira, e que teve como gérmen a<br />

produção de Anchieta. Se observado o <strong>in</strong>dígena dos poemas e dos autos,<br />

compreende-se a moldura do índio do romantismo, por exemplo, ornado<br />

em seu estado natural, como que <strong>in</strong>tocado pela ação <strong>in</strong>vasora. Porém, a<br />

face impressa nas <strong>in</strong>formações das cartas revela claramente que o assédio<br />

missionário, “mesmo exercido secularmente, não converte n<strong>in</strong>guém, nem<br />

europeíza n<strong>in</strong>guém, por maior que seja a pressão exercida” (Ribeiro, 1996,<br />

p.12). Independentemente do ponto de partida de que se direciona o olhar<br />

aos textos de Anchieta, não há como <strong>in</strong>fundir-lhes apenas a imagem do <strong>in</strong>dígena<br />

“fácil de dom<strong>in</strong>ar”, dócil, à espera da impressão cultural do <strong>in</strong>vasor.<br />

Há um choque entre a fi guração poética, esmerada nos artifícios de l<strong>in</strong>guagem<br />

e na reconstrução de arquétipos cristãos, e a narrativa das <strong>in</strong>formações,<br />

tida como resultante do olhar direto do jesuíta. Essa, embora catalogada<br />

entre a produção protocolar, contém em sua arquitetura julgamentos e desvios<br />

que fazem emergir imagens elaboradas, antes de tudo, pelo imag<strong>in</strong>ário<br />

construído anteriormente à observação. Com isso, não se pode negar que,<br />

em suas lacunas de conhecimento cultural do nativo, Anchieta tenha preenchido<br />

suas <strong>in</strong>formações com adereços literários.<br />

Episódio-referência (Cartas Jesuíticas)<br />

I – Carta de Pirat<strong>in</strong><strong>in</strong>ga (1554)<br />

Estes entre os quais vivemos estão espalhados trezentas milhas (segundo<br />

nos parece) pelo sertão; todos eles se alimentam de carne humana e andam<br />

nus; moram em casas feitas de madeira e barro, cobertas de palhas ou com<br />

cortiças de árvores; não são sujeitos a nenhum rei ou capitão, só têm em al-


82 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

guma conta os que alguma façanha fi zeram, digna do homem valente, e por<br />

isso comumente recalcitram, porque não há quem os obrigue a obedecer;<br />

os fi lhos dão obediência aos pais quando lhes parece; fi nalmente, cada um<br />

é rei em sua casa e vive como quer; pelo que nenhum ou certamente muito<br />

pouco fruto se pode colher deles, se a força e o auxílio do braço secular não<br />

acudirem para domá-los e submetê-los ao jugo da obediência.<br />

O que faz com que, como vivam sem leis nem governo, não possam conservar-se<br />

em paz e concórdia, tanto que cada aldeia contém somente seis ou<br />

sete casas, nas quais se não se <strong>in</strong>terpusessem o parentesco ou aliança, não<br />

poderiam viver juntos e uns e outros se devorariam; bastantes vezes e em<br />

muitos outros lugares vimos fazerem isso, e não moderam a <strong>in</strong>saciável raiva<br />

nem com o sentimento do parentesco. [...] por isso, parece grandemente necessário<br />

que o direito positivo se afrouxe nestas paragens, de modo que, a não<br />

ser o parentesco de irmão com irmã, possam em todos os graus contrair casamento,<br />

o que é preciso que se faça em outras leis da Santa Madre Igreja, às<br />

quais, se quisermos presentemente obrigar, é fora de dúvida que não quererão<br />

chegar-se ao culto da fé crista; pois são de tal forma bárbaros e <strong>in</strong>dômitos,<br />

que, parecem aproximar-se mais à natureza das feras do que a dos homens.<br />

[...]<br />

Tendo, pois, um destes Cristãos cativado um dos <strong>in</strong>imigos na guerra de<br />

que acima fi z menção, trouxe-o a um seu irmão para que o matasse, o qual<br />

o matou, p<strong>in</strong>tando-se de encarnado nas pernas e tomando o nome do morto<br />

por <strong>in</strong>signe honra (como é de uso entre os gentios); se não comeu, deu certamente<br />

a comer aos Indios, para os quais, e não para si mesmo, o matara,<br />

exortando-os para que o deixassem escapar, mas antes o assassem e levassem<br />

consigo para comer. Tendo outro, irmão deste, usado de certas práticas gentílicas,<br />

sendo advertido duas vezes que se acautelasse com a Santa Inquisição,<br />

disse: “acabarei com as Inquisições a fl echas”. E são cristãos, nascidos de<br />

pais cristãos! Quem na verdade é esp<strong>in</strong>ho, não pode produzir uvas. (p.55-7)<br />

XXIX – Informação do Brasil e de suas capitanias (1584)<br />

Dos costumes dos brasis<br />

Naturalmente são <strong>in</strong>cl<strong>in</strong>ados a matar, mas não são cruéis: porque ord<strong>in</strong>ariamente<br />

nenhum tormento dão aos <strong>in</strong>imigos, porque se os não matam


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 83<br />

no confl ito da guerra, depois tratam-os muito bem, e contentam-se com<br />

lhes quebrar a cabeça com um pau, que é morte muito fácil, porque às vezes<br />

os matam de uma pancada ou ao menos com ela perdem logo os sentidos.<br />

Se de alguma crueldade usam, a<strong>in</strong>da que raramente, é com o exemplo dos<br />

portugueses e franceses. (p.337)<br />

Poemas-referência<br />

Tupã Sy, Santa Maria<br />

É terrível o senhor Jesus,<br />

fazendo tremer nosso <strong>in</strong>imigo.<br />

Compadece-se muito de nós<br />

a mãe de Deus, Santa Maria.<br />

Toma-nos a dianteira sempre<br />

o diabo, ameaçando-nos.<br />

O nosso chamado à mãe de Deus,<br />

fá-lo sofrer muito.<br />

Mas que nós não cessemos<br />

De chamá-la, para espantar o maldito.<br />

Compadece-se muito de nós<br />

a mãe de Deus, Santa Maria.<br />

Ao se dizer “Jesus”, o maldito<br />

tem medo, correndo de má vontade.<br />

Ouv<strong>in</strong>do o nome da mãe de Deus<br />

voa de nós<br />

Que a Maria alegremos,<br />

do diabo a lei repel<strong>in</strong>do.<br />

Compadece-se muito de nós<br />

a mãe de Deus, Santa Maria.<br />

O <strong>in</strong>imigo de nossa alma<br />

para si mesmo nos arrasta.


84 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Dele nos afasta<br />

nosso pai verdadeiro, Deus.<br />

A mãe de Deus o maldito castiga,<br />

Fazendo-o correr, fazendo-o tremer.<br />

Compadece-se muito de nós<br />

a mãe de Deus, Santa Maria.<br />

Fica-nos amaldiçoando,<br />

nossa alma querendo comer.<br />

Ele é lampeiro como uma onça,<br />

segu<strong>in</strong>do nosso rastro.<br />

De Maria e do Senhor Jesus<br />

O nome ouv<strong>in</strong>do, vai, tremendo.<br />

Compadece-se muito de nós<br />

a mãe de Deus, Santa Maria.<br />

Fica-nos atacando,<br />

pensando perverter-nos.<br />

Santa Maria bela<br />

fi ca-o ameaçando.<br />

Irrita-o, empurra-o,<br />

Para seu fogo o maldito espantando.<br />

Compadece-se muito de nós<br />

a mãe de Deus, Santa Maria.<br />

Fica-nos pondo suas armadilhas,<br />

querendo fazer a gente entrar.<br />

A mãe de Deus, tomando o t<strong>in</strong>hoso,<br />

no maldito fi ca pisando.<br />

Como o vento zune,<br />

tremendo por causa de sua bravura.<br />

Compadece-se muito de nós<br />

a mãe de Deus, Santa Maria.(p.187-91)


A Nossa Senhora<br />

1º<br />

Rerityba, m<strong>in</strong>ha terra,<br />

dela venho aqui,<br />

dizendo:<br />

- meus colegu<strong>in</strong>has,<br />

hei de ver o feriado santo.<br />

Trouxe muitas destas ostras,<br />

com elas querendo alimentar-te.<br />

No meio do cam<strong>in</strong>ho, men<strong>in</strong>os<br />

assaltaram-me mesqu<strong>in</strong>hamente,<br />

de mim comendo-as todas.<br />

Em todo o caso, somente estas retirei<br />

dos malditos, com elas correndo.<br />

Tomara que hoje guerra<br />

não se tenha comigo.<br />

Mas faze-me tu alimentar,<br />

desde ontem não como nada.<br />

Cam<strong>in</strong>hei durante este dia,<br />

por causa da tua fama.<br />

O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 85<br />

2º<br />

Do rio Parati<br />

vim para ver a ra<strong>in</strong>ha,<br />

enfeitando m<strong>in</strong>ha cabeça,<br />

para alegrá-la.<br />

Não trouxe vários paratis,<br />

um só é o conteúdo de m<strong>in</strong>ha rede.<br />

Não o comerás, Senhora,<br />

ele está duramente ressequido por deterioração.<br />

Mas a ti, sobram-te<br />

gal<strong>in</strong>has e porcos.<br />

Junto de ti que eu coma algo:<br />

grande é o meu cansaço.


86 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

3º<br />

Era bela, outrora,<br />

Miaí, m<strong>in</strong>ha antiga região.<br />

Sou antigo fi lho de Jetuú<br />

criei-me dentro dela.<br />

Antigamente, em verdade, peixes<br />

pescava bem:<br />

garoupas, cavalas,<br />

robalos, corv<strong>in</strong>as.<br />

Meu anzol muito belo,<br />

há de pescar para ti<br />

puxando bem os meros<br />

e os olhos-de-boi verdadeiros.<br />

Embora sejas ra<strong>in</strong>ha,<br />

embora sejam muitos teus servos,<br />

eu, não obstante, pesco para ti,<br />

eu, fi lho de Jetuú.<br />

4º<br />

Eu sou de Guaraparim,<br />

para ver a Ra<strong>in</strong>ha eu vim.<br />

Eu estou muitíssimo feliz,<br />

pela santidade do dia.<br />

Antigamente freqüentavas<br />

nossa terra, amando-a.<br />

Ali, para ouvir missa,<br />

por ocasião dos feriados, ias.<br />

Antigamente eu fi cava sempre<br />

junto de ti, na ponta da montanha.<br />

Ao passar m<strong>in</strong>ha família,<br />

tu t<strong>in</strong>has cuidado por ela.<br />

Portanto, eu vim<br />

a ti, para o dia festejar.<br />

Para fazer-te festa<br />

m<strong>in</strong>ha família me fez vir.


5º<br />

Eu sou um mísero índio de fato.<br />

Iporece’õ é meu nome.<br />

O resto de m<strong>in</strong>has presas<br />

trouxe-o para a Ra<strong>in</strong>ha.<br />

És tu porventura (a ra<strong>in</strong>ha)?<br />

Muito bem, eis que aqui estou,<br />

trazendo para ti estes siris.<br />

Estão bons, com efeito. Que os comas.<br />

Eu também como alguns destes.<br />

São maus estes teus servos,<br />

não me tratam bem.<br />

A ponte derrubam,<br />

querendo que a canoa passe.<br />

Depois disso<br />

fi ca afl ito o padre<br />

ao passar ele ali.<br />

Castiga, castiga os malditos,<br />

para que não me prejudiquem.<br />

O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 87<br />

6º<br />

Eu sou Sauiaetá.<br />

Famoso é meu nome.<br />

Comedor deles, causa de (m<strong>in</strong>ha) caçada<br />

sobram-me sauiás.<br />

Logo, decerto, andarás<br />

no lugar onde moro, chegando (por mar).<br />

Então alguns (saiuás) matarei,<br />

no meu laço fazendo-os cair,<br />

para a ti dá-los todos.<br />

Perguntando eu a respeito de ti,<br />

após seres ra<strong>in</strong>ha,<br />

fi quei-me apressando<br />

em ter saiuás<br />

E dizendo “Que os coma a ra<strong>in</strong>ha!”


88 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

7º<br />

Eu sou o alegre Ibitirapé,<br />

da ponta da montanha.<br />

Após vir eu para esta aldeia,<br />

por me <strong>in</strong>formar,<br />

apresso-me hoje,<br />

por causa de tua fama.<br />

Graça é seu nome, esta como<br />

tua ra<strong>in</strong>ha é chamada,<br />

como ra<strong>in</strong>ha é colocada<br />

tua senhora, acima das anciãs.<br />

Guarda-te,<br />

após conhecer essa lei,<br />

de ter má vida<br />

Que te coloque Deus nas alturas<br />

como sua fi lha.<br />

Que estes em quem mandas<br />

lancem fora toda a maldade.<br />

Corrige-os, censura-os,<br />

para que queiram se livrar<br />

do fogo do Diabo.<br />

Juicum com ambos:<br />

8º<br />

Eu sou o terrível Juicum.<br />

É terrível meu modo de capturar.<br />

Não há modo de passar por mim<br />

para os que cam<strong>in</strong>ham.<br />

Faze transformar os moradores do rio,<br />

com tua realeza temível,<br />

para que eu não seja cruel.<br />

Estas rãs, m<strong>in</strong>has presas,<br />

que as comas, em pagamento por isso.<br />

Vivei verdadeiramente<br />

com a Ra<strong>in</strong>ha Graça,


vossa lei antiga lançando fora<br />

para que vos leve para o alto,<br />

Deus, após a vossa morte,<br />

junto a si fazendo-vos sentar. (p.150-1)<br />

O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 89


3<br />

REALIDADE E APARÊNCIA EM VIEIRA:<br />

O INDÍGENA SOB O SIGNO DO PARADOXO<br />

(ANTONIO VIEIRA)<br />

Para uma alma se converter há de haver três concursos:<br />

há de concorrer o pregador com a doutr<strong>in</strong>a, persuad<strong>in</strong>do;<br />

há de concorrer o ouv<strong>in</strong>te com o entendimento, percebendo;<br />

há de concorrer Deus com a graça, alumiando.<br />

Antonio Vieira, Sermão da Sexagésima<br />

O excurso feito pelos textos anteriores mostra as duas dimensões no que<br />

se refere à imagem do <strong>in</strong>dígena: a primeira diz respeito ao campo físico-corpóreo,<br />

confi gurada pelo olhar de Cam<strong>in</strong>ha, pelo qual as restrições angulares<br />

não alcançaram a natureza nativa em essência, a não ser em pequenos recortes<br />

fl agrados no aspecto social, nos rituais e nas crenças religiosas. Deu-lhes<br />

uma moldura colorida no que se refere ao aspecto idílico, mas turvou-lhe<br />

a imagem, quando o teceu sob a justifi cativa da colonização, que não reconheceu<br />

o complexo cultural já <strong>in</strong>stalado em terras americanas.<br />

Em Anchieta, além do aspecto físico, encontra-se o projeto de desarticulação<br />

das crenças do nativo, imputando-lhe o código europeu na transmutação<br />

dos símbolos div<strong>in</strong>os. Nas cartas e <strong>in</strong>formações, o índio é comparado às<br />

feras e sujeito ao escárnio e à segregação, por realizar rituais denom<strong>in</strong>ados<br />

satânicos, como a antropofagia, não compreendida como evento natural entre<br />

as etnias. Na lírica tupi, a transposição de fi guras div<strong>in</strong>as cristãs alcança<br />

a cultura do índio e o faz prostrar-se diante das div<strong>in</strong>dades em oferendas e<br />

preces, em troca da expulsão dos demônios, presentes nos autos e poemas<br />

com o <strong>in</strong>tuito de desv<strong>in</strong>culá-lo de seus ritos tribais.


92 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Nessa primeira fase, a de exploração do universo autóctone, as “experiencias<br />

de contacto entre misioneros portugueses e <strong>in</strong>dígenas fueron consideradas<br />

como positivas por parte de los jesuítas, quienes destacaron en<br />

sus escritos y pronunciamentos la apacibilidad y docilidad con la cual <strong>in</strong>teraccionaron<br />

los naturales”, afi rma Morales (2004). É notável, no entanto,<br />

que a consideração positiva do contato, feita pelos jesuítas, se desdobra em<br />

ambiguidades no corpus protocolar de Anchieta, de forma especial, em que<br />

pesam muito mais os aspectos negativos do olhar sobre a cultura nativa que<br />

a própria <strong>in</strong>teração e os resultados da catequese. A ênfase positiva de alguns<br />

dos relatos serviu, antes de tudo, para reprovar as ações fomentadas pelos<br />

colonos, de adentrar os sertões em busca de índios para escravizar, o que<br />

ameaçava a ação evangelizadora.<br />

Pouco mais de um século de <strong>in</strong>tervenção histórica, Vieira desponta com<br />

a temática da terra e do índio, pautada pelos confl itos que se acentuaram à<br />

medida que a colonização avançou as fronteiras do território. Nascido em<br />

Lisboa, veio ao Brasil a<strong>in</strong>da criança, e conheceu desde cedo a realidade da<br />

colônia, na qual desenvolveu seus estudos de humanidades e <strong>in</strong>gressou na<br />

Companhia de Jesus, aos 15 anos. Portador de uma oratória de excelência,<br />

Padre Antonio Vieira teve sua vida diretamente ligada à obra, uma vez que<br />

a atuação de missionário do púlpito o ligou fortemente às questões políticas,<br />

às quais dedicou grande parte de suas pregações.<br />

Na condição de luso-brasileiro, transitou na esfera político-religiosa<br />

como porta-voz da colônia na corte de Lisboa, confessor e conselheiro de<br />

reis e ra<strong>in</strong>has e pregador da Capela Real, além de se opor à ocupação holandesa<br />

no Brasil. Dentre outras ações, desenvolveu <strong>in</strong>tensa luta pela catequese<br />

dos índios no Maranhão e Pará, de modo especial, onde contrariou os<br />

<strong>in</strong>teresses dos colonos, ao defender os índios da escravidão pura, mas não os<br />

que eram aldeados e convertidos, sob o mando dos próprios jesuítas.<br />

Sua obra extensa reúne mais de duzentos sermões, além das cartas e <strong>in</strong>formações<br />

do Brasil remetidas à Coroa. Destacam-se, para este trabalho,<br />

dois sermões que se dirigiram especialmente à questão <strong>in</strong>dígena: o Sermão<br />

da Primeira Dom<strong>in</strong>ga da Quaresma, ou o Sermão das Tentações, pronunciado<br />

no Maranhão em 1653, e o Sermão da Epifania, pronunciado na Capela<br />

Real, em Lisboa, em 1662. A região a que se referem os textos escolhidos<br />

é palco de uma história de embates entre os franceses, que fundaram o forte<br />

de São Luís, e os lusitanos, que pactuaram com grupos tapuias, aliados


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 93<br />

na aniquilação dos <strong>in</strong>imigos dos portugueses. Em pr<strong>in</strong>cípio, Maranhão e<br />

Pará estavam ligados diretamente a Portugal em razão das difi culdades de<br />

navegação entre o Rio de Janeiro, São Luís e Belém, e desses, até o <strong>in</strong>terior.<br />

Dado o aspecto econômico importante da região, a mão de obra <strong>in</strong>dígena<br />

foi vista como ideal, uma vez que se constituía como compatível com o tipo<br />

de economia, além de rentável pelo número elevado que habitava as terras,<br />

requerendo pouco <strong>in</strong>vestimento, se comparado ao comércio com negros<br />

africanos.<br />

A presença dos jesuítas deu-se a mando da Coroa, em razão dos constantes<br />

confl itos entre os trafi cantes de <strong>in</strong>dígenas, que viam o território como<br />

um espaço propício ao aprisionamento e à escravidão. Com a <strong>in</strong>cursão dos<br />

missionários, o embate tomou medidas desproporcionais, por causa da<br />

tensão desencadeada entre colonos e a adm<strong>in</strong>istração, ante a criação de aldeamentos<br />

<strong>in</strong>acianos, autorizados para resgatar índios desde as partes mais<br />

longínquas até as aldeias situadas nas entradas dos rios. O agravamento<br />

dessas questões fundamenta-se nas denúncias dos colonos quanto ao dest<strong>in</strong>o<br />

dado aos nativos aldeados pelos jesuítas, que os levavam para engenhos<br />

ou fazendas de gado, submetendo-os aos seus <strong>in</strong>teresses e à sua língua como<br />

forma de monopolizar o serviço escravo.<br />

A <strong>in</strong>stabilidade gerou, então, as duas frentes opositoras, pretensas, cada<br />

uma a seu modo, a tutelar o índio sob sua jurisdição. Assim, de um lado<br />

colocaram-se os colonos, que se consideravam agentes da colonização; de<br />

outro, os jesuítas, empenhados em garantir a conquista dos nativos para o<br />

serviço da metrópole. Para solucionar tal situação, a Coroa ordenou a <strong>in</strong>tervenção<br />

de portugueses para garantir aos jesuítas o direito à questão <strong>in</strong>dígena,<br />

com o argumento de que a ação dos colonos contribuiu para o aumento<br />

da presença de trafi cantes de escravos na região, dentre eles bandeirantes<br />

paulistas, oriundos de outras regiões, que <strong>in</strong>cursionavam pela Amazônia<br />

para apreender nativos, difi cultando o trabalho missionário.<br />

Ante esse panorama, Antonio Vieira foi enviado ao Maranhão e ao Pará,<br />

por ser “celebre fi gura que representó el ideal de la naturaleza <strong>in</strong>tegrada del<br />

mundo portugués a ambos lados de Atlántico; reconocido y respetado en<br />

todo el re<strong>in</strong>o gracias a su reputación como orador” (Morales, 2004). Diante<br />

disso, seu papel de <strong>in</strong>termediador esteve a serviço de anular as medidas e resoluções<br />

a respeito da escravidão <strong>in</strong>dígena. Há que considerar, no entanto,<br />

que a função do jesuíta não aportou na região com <strong>in</strong>tuito benéfi co à cultu-


94 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

ra nativa, uma vez que os objetivos correspondiam, em parte, aos mesmos<br />

buscados pelos colonos. Freyre (1954, p.244), ao considerar os padres como<br />

“agentes de des<strong>in</strong>tegração de valores nativos”, adverte que “temos que concluir<br />

pela sua <strong>in</strong>fl uência deletéria. Tão deletéria quanto a dos colonos, seus<br />

antagonistas, que por <strong>in</strong>teresse econômico ou sensualidade pura, só enxergavam<br />

no índio a fêmea voluptuosa a emprenhar ou o escravo <strong>in</strong>dócil a subjugar<br />

e a explorar na lavoura”.<br />

Os acontecimentos da época estão impressos nos textos em que Vieira<br />

pregou tanto no Brasil quanto em Portugal, e se põem como uma equação<br />

a ser resolvida, pois o discurso do pregador irá compor um quadro em que<br />

os elementos norteadores da oposição <strong>in</strong>stalada direcionam-se aos efeitos<br />

do poder dos colonos sobre os nativos, isentando os que se orig<strong>in</strong>avam das<br />

ações missionárias, com raras manifestações de mea culpa. Assim, compreendidos<br />

os aspectos históricos, que explicam a presença do missionário em<br />

meio aos confl itos do Maranhão e Pará, é possível estabelecer uma l<strong>in</strong>ha de<br />

leitura acerca do ideário proposto nos dois textos tomados aqui para estudo.<br />

É preciso, antes de tudo, lembrar que Vieira escreve a partir de “um comportamento<br />

sentimental, que teria sido outro, é claro, se o pregador, não<br />

tivesse v<strong>in</strong>do ao Brasil e vivido nele”, como aponta Haddad (1968, p.7),<br />

ao considerar-lhe o aspecto híbrido no posto de português ou brasileiro.<br />

Enquanto l<strong>in</strong>guagem, afi rma Haddad, é “exclusivamente lusa”, deixando<br />

o papel de “diferenciação l<strong>in</strong>guística” ao seu contemporâneo Gregório de<br />

Matos. Mesmo assim, o Brasil <strong>in</strong>vade-lhe como “realidade selvagem a determ<strong>in</strong>ar-lhe<br />

os matizes da atitude e da conduta; sob a forma de índio, sob a<br />

forma de negro, sob a forma de guerra holandesa” (ibidem).<br />

É <strong>in</strong>dispensável, também, compreender os limites em que atua o sermão,<br />

dentro de uma obra tida, em pr<strong>in</strong>cípio, como <strong>in</strong>strumento dest<strong>in</strong>ado<br />

a convencer pela fala o ouv<strong>in</strong>te imerso na consciência de pecado, da qual se<br />

nutre o sermão para alcançar a dimensão purifi cadora por meio da refl exão.<br />

Dessa forma, a perspectiva do pecado está vigente tanto no pregador como<br />

no auditório, ligados pela antítese axiológica máxima: o bem e o mal. Part<strong>in</strong>do<br />

desse aspecto, o sermão, como arte participante, nem sempre fi gura<br />

entre a audiência como um remédio ao gosto do enfermo. Segundo Haddad<br />

(1968, p.29), Vieira “era capaz de generoso pensamento antiescravagista,<br />

diante de senhores de escravos”, pois ele mesmo estabelecera que “ao pregador<br />

não cumpre apenas falar coisas agradáveis”.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 95<br />

Concomitante à palavra do pregador barroco, impõe-se o gesto como<br />

meio de explicar o pensamento, participando ativamente da composição do<br />

quadro argumentativo em que o movimento do corpo dá ritmo à palavra,<br />

concretizando-o na pregação. Além disso, a voz do pregador, de modo especial,<br />

a do barroco Vieira, deve assemelhar-se à voz do profeta, viril, não<br />

recatada, para não cair na frouxidão e na fraqueza. Isso explica, em parte,<br />

a alusão frequente feita ao profeta Isaias nos sermões, como aquele que levanta<br />

a voz como trombeta. O próprio Vieira, no entanto, lamenta que o leitor<br />

receberá o texto sem vida, “uma vez que lhes falta a voz que os animou<br />

no momento da pregação: ‘sem a voz que os animou, a<strong>in</strong>da ressuscitados<br />

são cadáveres’. Mas creio que os leitores dos sermões de Vieira não podem<br />

deixar de discordar desta afi rmação do autor. Os seus sermões apresentamse-nos<br />

como textos plenos de vida” (Pires, 1997).<br />

Todos esses componentes, que dão sustentação ao texto argumentativo<br />

do jesuíta, devem-se ao fato de que “nas nações católicas, onde a alfabetização<br />

popular não contou com o <strong>in</strong>centivo protestante à leitura <strong>in</strong>dividual<br />

da Bíblia, o sermão e as artes plásticas se tornaram o grande <strong>in</strong>strumento da<br />

propaganda da fé” (Merquior, 1996, p.29). Sem o acesso à leitura, a doutr<strong>in</strong>a<br />

católica era imposta pela maneira corrente da época, ou seja, pela palavra<br />

proferida durante as celebrações litúrgicas.<br />

Entre os aspectos pontuados, revela-se a l<strong>in</strong>ha dorsal que sustenta o sermonário<br />

de Vieira. Como pregador de púlpito, tem em seu poder o conhecimento<br />

dos textos bíblicos, dos quais faz emergir as alegorias diretamente<br />

ligadas à realidade brasileira, dest<strong>in</strong>adas aos ouv<strong>in</strong>tes. Com essa estratégia<br />

de “decolagem do texto bíblico”, Merquior entende que Vieira s<strong>in</strong>tetizou os<br />

contrários da magia transfi guratória do barroco, pois “cheio de jogos verbais<br />

e agudezas de ideia, converteu a meditação sobre o sentido atemporal<br />

da mensagem cristã em focalização crítica de circunstâncias históricas” (ibidem,<br />

p.32). Segu<strong>in</strong>do esse raciocínio, é possível apreender dos dois sermões<br />

escolhidos para este estudo o ponto de apoio do qual se espalham as alegorias<br />

constitutivas da imagem do nativo.<br />

No Sermão da Primeira Dom<strong>in</strong>ga da Quaresma, Vieira prega a colonos no<br />

Maranhão acerca da escravidão <strong>in</strong>dígena. Como se pode notar, a pregação<br />

poderia ser considerada como metáfora de outro texto bíblico, também utilizado<br />

no Sermão da Sexagésima, em que a palavra semeada estaria ca<strong>in</strong>do<br />

em solo <strong>in</strong>fértil, por dest<strong>in</strong>ar-se justamente aos que aprisionavam os nati-


96 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

vos. Diante da audiência, o tema pr<strong>in</strong>cipal do sermão volta-se para a última<br />

tentação do demônio a Cristo, enquanto no Sermão da Epifania, pregado<br />

na Capela Real, diante da regente, a visita dos Reis Magos a Jesus serve<br />

de pista preparatória para desencadear as <strong>in</strong>úmeras <strong>in</strong>terpretações dadas ao<br />

quadro de escravidão <strong>in</strong>dígena no Brasil.<br />

Nos dois textos a estrutura parte do tema universal, ou seja, de um recorte<br />

temático bíblico, para adensar-se nas questões particulares em que o<br />

pregador se <strong>in</strong>sere, <strong>in</strong>dependentemente da audiência estar ou não à altura<br />

de sua eloquência, ou desejosa de ouvir acerca do assunto. Quando prega no<br />

Maranhão, o jesuíta se dispõe a ser um amigo que alerta a respeito do perigo<br />

que ronda os colonos enquanto os <strong>in</strong>dígenas permanecerem em cativeiro, o<br />

que seria equivalente à tentação a Cristo: “toma o demônio pela mão a Cristo,<br />

leva-o a um monte mais alto que essas nuvens, mostra-lhe dali os re<strong>in</strong>os,<br />

as cidades, as cortes de todo o mundo, e suas grandezas, e diz-lhe desta<br />

maneira: Haec omnia tibi dabo, si cadens adoraveris me (Mt. 4,9): Tudo isto<br />

te darei, se dobrando o joelho me adorares” (Vieira, 1874, p.177). Deriva<br />

desse aspecto o questionamento em torno do valor entre alma e corpo, pois<br />

a “alma é espiritual, não a conhecemos; e como não a conhecemos, não a<br />

estimamos, e por isso a damos tão barata”, correndo o risco de entregá-la ao<br />

demônio, que “conhece muito bem o que ela é; e como a conhece, estimaa,<br />

e estima-a tanto, que do primeiro lanço oferece por uma alma o mundo<br />

todo” (ibidem, p.178).<br />

Lido o Evangelho como metáfora dos problemas locais, o pregador critica<br />

a facilidade com que se aprisionam os nativos, uma prática ligada aos<br />

domínios demoníacos: “no Maranhão não é necessário ao demônio tanta<br />

bolsa para comprar todas: não é necessário oferecer mundos, não é necessário<br />

oferecer re<strong>in</strong>os, não é necessário oferecer cidades, nem vilas, nem<br />

aldeias. Basta acenar o diabo com um tujupar de p<strong>in</strong>doba, e dois tapuias,<br />

e logo está adorado com ambos os joelhos” (ibidem, p.186). Como é notável<br />

nos excertos, a fi gura demoníaca é aludida constantemente, como se<br />

observou, também, em Anchieta, dada a ideia difundida pelos jesuítas de<br />

que, no Novo Mundo, andava solto o demônio, o qual seria o <strong>in</strong>imigo a<br />

ser vencido. Explica-se sua presença como articulador do sofrimento dos<br />

escravos pelo fato de o discurso teológico combater, veementemente, em<br />

terras americanas, os ritos e as representações de div<strong>in</strong>dades, tidas como<br />

demoníacas.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 97<br />

Os exemplos bíblicos em que se encontram similitudes com as ações dos<br />

colonos apontam para Judas, que vendeu seu “Mestre e a sua alma por tr<strong>in</strong>ta<br />

d<strong>in</strong>heiros”, ou a<strong>in</strong>da José: “os irmãos de José eram onze, e venderam-no<br />

por v<strong>in</strong>te d<strong>in</strong>heiros” (ibidem, p.180). Porém, o argumento, que traduz o<br />

anseio do pregador quanto ao castigo a quem pratica a escravidão, é pautado<br />

em duas fi guras históricas: “Alexandre Magno e Júlio César”, que “foram<br />

senhores do mundo; mas as suas almas agora estão ardendo no <strong>in</strong>ferno,<br />

e arderão por toda a eternidade” (ibidem, p.181-2). Com a <strong>in</strong>dicação da<br />

máxima de que o crime não compensa, Vieira evidencia que seu projeto vai<br />

além da expansão do cristianismo, da luta contra os <strong>in</strong>fi éis e protestantes e<br />

da conquista das almas, pois o entrave que impede a <strong>in</strong>tegração cristã está<br />

impresso no terreno demoníaco em que se situam os colonos, responsáveis<br />

por corromper as almas dos gentios. Como portador da solução salvífi ca aos<br />

que escravizam, apela à libertação dos escravos <strong>in</strong>dígenas submetidos pelos<br />

colonos e donos de fazendas:<br />

– Sabeis, cristãos, sabeis, nobreza e povo do Maranhão, qual é o jejum que<br />

quer Deus de vós esta quaresma? Que solteis as ataduras da <strong>in</strong>justiça, e que<br />

deixeis ir livres os que tendes cativos e oprimidos. Estes são os pecados do Maranhão,<br />

estes são os que Deus me manda que vos anuncie: Annuntia populo meo<br />

scelera eorum. – Cristãos, Deus me manda desenganar-vos, e eu vos desengano<br />

da parte de Deus. Todos estais em pecado mortal, todos viveis e morreis em<br />

estado de condenação, e todos vos ides direitos ao <strong>in</strong>ferno. Já lá estão muitos, e<br />

vós também estareis cedo com eles, se não mudardes de vida. (ibidem, p.189)<br />

Tomado o período da quaresma como fator concreto a seu argumento,<br />

Vieira considera mais que ilegítima a escravidão <strong>in</strong>dígena, por ofender<br />

diretamente a Deus, o que resulta na “venda” da alma do escravagista ao<br />

demônio, como também, responsável por atrair uma série de calamidades<br />

sobre a região: “Sabeis quem traz as pragas às terras? Cativeiros <strong>in</strong>justos.<br />

Quem trouxe ao Maranhão a praga dos holandeses? Quem trouxe a praga<br />

das bexigas? Quem trouxe a fome e a esterilidade? Estes cativeiros” (ibidem,<br />

p.190). O jogo de oposições entre condenação e salvação, construído<br />

no discurso de Vieira com o <strong>in</strong>tuito de convencer à libertação dos escravos<br />

nativos, decorre, segundo Palac<strong>in</strong> (1986, p.16), do “emprego de uma lógica<br />

extremamente racionalista sobre objetos alógicos ou ilógicos – como os


98 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

mistérios da fé cristã –, e muitas vezes com o secreto propósito de chegar a<br />

conclusões escandalosas – pelo menos formalmente – à razão lógica”.<br />

Com o <strong>in</strong>tercâmbio constante de metáfora e realidade, atribui a Deus a<br />

<strong>in</strong>tervenção direta sobre grandes acontecimentos registrados pela história,<br />

como também sobre os problemas locais e cotidianos. Ao lado dessa visão,<br />

a vileza ou a grandeza do homem são motivos de juízos que oscilam ora<br />

pela autonomia moral do homem, ora pela depreciação de sua condição de<br />

pecado e de morte: “todo o homem que deve serviço ou liberdade alheia,<br />

e, podendo a restituir, não restitui, é certo que se condena: todos, ou quase<br />

todos os homens do Maranhão, devem serviços e liberdades alheias, e, podendo<br />

restituir, não restituem: logo, todos ou quase todos se condenam”<br />

(Vieira, 1874, p.192).<br />

O estilo de Vieira tende conduzir a unidade de pensamento por meio<br />

da circularidade, como se tem notado nos fragmentos escolhidos, em que<br />

o texto bíblico estabelece o teor temático, para, posteriormente, <strong>in</strong>serir a<br />

pausa de refl exão acerca do assunto particular. A tentação de Cristo pelo<br />

demônio ilum<strong>in</strong>a o cotidiano dos escravagistas como dest<strong>in</strong>ados à condenação,<br />

tal qual ocorreu a personagens históricos. Da Bíblia aos mercados do<br />

Maranhão e ao pecado, as ações vão sendo descamadas aos poucos, uma a<br />

uma, no mesmo espaço alegórico, para que a unidade seja fi xada em meio<br />

à variedade, e o conceito seja sondado em suas <strong>in</strong>úmeras possibilidades. É<br />

o artifício barroco posto a serviço do projeto missionário, sedutor em nível<br />

de l<strong>in</strong>guagem, tanto quanto o é a atitude do pregador. Seduzir os ouvidos<br />

dos colonos, utilizando-se das ameaças de condenação ao <strong>in</strong>ferno, também<br />

é estratégia para desviar a atenção dos ouv<strong>in</strong>tes à verdadeira crença al<strong>in</strong>havada<br />

às arguições circulares que tece no decorrer do sermão. Assim, “a mais<br />

grave e a mais útil matéria”, que há de solucionar no Estado do Maranhão, é<br />

“só dizer a verdade” (ibidem, p.186). Essa é a verdade do discurso. A <strong>in</strong>tenção<br />

é outra, diante dos fatos que se apresentam. Como pedir a libertação dos<br />

escravos aos colonos, se nas aldeias havia os que serviam aos missionários?<br />

A estratégia argumentativa para justifi car a <strong>in</strong>conveniência da situação<br />

a que foram submetidos os <strong>in</strong>dígenas pelos colonos e, paralelamente, para<br />

encobrir os <strong>in</strong>teresses em obter o privilégio legal de sujeitá-los pela doutr<strong>in</strong>a<br />

cristã, passa, portanto, pela defi nição dos tipos existentes na região. Dessa<br />

forma, a proposta que concilia os confl itos aponta para a segu<strong>in</strong>te divisão:<br />

“todos os índios deste Estado, ou são os que vos servem como escravos, ou


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 99<br />

os que moram nas aldeias de el-rei como livres, ou os que vivem no sertão<br />

em sua natural e a<strong>in</strong>da maior liberdade” (ibidem, p.196). Isso demonstra,<br />

claramente, a ambiguidade expressa no conceito de liberdade, no qual cabem<br />

como livres os nativos que vivem nas aldeias sob o apoio da Coroa,<br />

que, também, os submete ao trabalho e à doutr<strong>in</strong>a. Para esses, o pregador<br />

não propõe nenhum tipo de ação, uma vez que a Companhia é defendida<br />

como <strong>in</strong>stituição geradora de pacifi cação e de liberdade, entendida assim a<br />

partir do ponto de vista do pregador.<br />

Os que vivem nos sertões só poderiam ser capturados caso estivessem<br />

em condição de aprisionamento, por <strong>in</strong>imigos, concedendo-lhes o direito<br />

de liberdade nas aldeias: “ao sertão se poderão fazer todos os anos entradas,<br />

em que verdadeiramente se resgatem os que estiverem – como se diz – em<br />

cordas, para ser comidos, e se lhes comutará esta crueldade em perpétuo cativeiro”<br />

(ibidem, p.197). Serão esses “tomados em justa guerra”, ou com “o<br />

piedoso nome de resgate”, [...] “da qual serão juízes o governador de todo o<br />

Estado, o ouvidor-geral, o vigário do Maranhão ou Pará, e os prelados das<br />

quatro religiões, carmelitas, franciscanos, mercenários, e da Companhia de<br />

Jesus” (ibidem, p.197).<br />

Aos escravos da cidade, que servem diretamente aos colonos, os “herdados,<br />

havidos, e possuídos de má-fé” terão a liberdade de escolha entre<br />

deixar a condição ou permanecer no cativeiro: “depois de lhes ser manifesta<br />

esta condição de sua liberdade, por serem criados em vossa casa, e com vossos<br />

fi lhos, ao menos os mais domésticos, espontânea e voluntariamente vos<br />

quiserem servir, e fi car nela, n<strong>in</strong>guém, enquanto eles tiverem esta vontade,<br />

os poderá apartar de vosso serviço” (ibidem, p.197). Os argumentos direcionam<br />

a ideia de que os índios capturados “pela guerra justa” deveriam<br />

permanecer no âmbito do cativeiro dos colonos, sem que esses tivessem<br />

prejuízos, pois “que será haverem alguns particulares de perder alguns índios,<br />

que eu vos prometo, que sejam mui poucos” (ibidem, p.199). Assim<br />

fi ca constituído o exagero antitético de Vieira, em que a defesa da escravidão<br />

é posta a lume, sob o auspício do Evangelho, para persuadir os colonos, mas<br />

esconde em suas camadas o <strong>in</strong>teresse de contornar os confl itos para maior<br />

bem do poder e da Companhia. De acordo com o julgamento das autoridades<br />

competentes, os demais nativos seriam dest<strong>in</strong>ados aos aldeamentos,<br />

sem a possibilidade de serem qualifi cados de escravos, pois estar a serviço<br />

do rei consistia encontrar-se em liberdade, segundo o orador.


100 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

No Sermão da Epifania, pregado em Lisboa, na Capela Real, em 1662,<br />

o assunto da escravidão é retomado, também, sob a luz do Evangelho. Tal<br />

qual o sermão anteriormente citado, há, aqui, uma profunda ligação com<br />

as circunstâncias históricas. Segundo Pires (1997), “o sermão é para Vieira<br />

não apenas uma forma de edifi cação moral e espiritual, mas também um<br />

<strong>in</strong>strumento de <strong>in</strong>tervenção na vida política e social, uma arma que maneja<br />

com destreza em defesa das grandes causas a que se dedicou”. Vivenciando<br />

um contexto conturbado, Vieira prega à Ra<strong>in</strong>ha Luísa de Gusmão, regente<br />

de Portugal, e a seu fi lho D. Afonso VI, logo após sua expulsão do Maranhão,<br />

em virtude das divergências com os colonos na disputa pela posse<br />

dos <strong>in</strong>dígenas como escravos. Mesmo ante o embate estabelecido em defesa<br />

do índio, que o levou à expulsão, Vieira não silencia, e toma como ponto de<br />

partida para sua defesa o texto do Evangelho, que se refere à visita dos Reis<br />

Magos a Jesus, ou o dia da Epifania.<br />

Em sua abertura, o engenhoso discurso do pregador fala em nome do<br />

outro, conforme é notável na maior parte dos sermões: “para que Portugal<br />

na nossa idade possa ouvir um pregador evangélico, será hoje, o Evangelho<br />

o pregador. [...] O estilo era que o pregador explicasse o Evangelho: hoje o<br />

Evangelho há de ser a explicação do pregador. [...] Eu repetirei suas vozes,<br />

ele bradará os meus silêncios” (Vieira, 1951, p.5). O tema que gerará a circularidade<br />

da pregação será uma das ilusões de grandeza, o Qu<strong>in</strong>to Império,<br />

no qual repousaria o idealismo reformista da fraternidade entre as raças<br />

e a exaltação do bem. O objetivo do sermão <strong>in</strong>cide sobre a “necessidade da<br />

conversão dos índios e da presença dos jesuítas em terras americanas e, por<br />

outro lado, a da ação ‘pouco cristã’ dos que os expulsaram, imped<strong>in</strong>do que<br />

a fé chegasse aos nativos”, conforme aponta Bernardo (s. d.).<br />

Sendo o Evangelho o responsável pela pregação, o <strong>in</strong>tuito não é refutálo,<br />

mas s<strong>in</strong>gularizá-lo mediante a transposição de espaços a que ambos se<br />

referem: o texto sagrado fala do Oriente; o pregador, do Ocidente: “parece<br />

que repugna o mesmo Evangelho a ser meu <strong>in</strong>térprete, porque a sua história<br />

e o seu mistério é da Índia Oriental: ab oriente venerunt – e o meu caso é das<br />

Ocidentais” (Vieira, 1951, p.6). Assim posto, parece que o próprio texto<br />

sacro impede Vieira de falar dos índios do Brasil, uma vez que a América foi<br />

excluída: “se apelo para os reis e para o sentido místico, também está contra<br />

mim, porque totalmente exclui a América, que é a parte do mundo donde<br />

venho” (ibidem).


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 101<br />

Além desse empecilho que se impõe ao entendimento, há que se destacar<br />

que Vieira aponta para outra contradição entre as profecias do Antigo e<br />

do Novo Testamentos: “pois, se todas as gentes e todos os reis do mundo<br />

haviam de vir adorar a Cristo, por que vieram somente três? [...] Foram<br />

três, e nem mais nem menos que três, os reis que vieram adorar a Cristo,<br />

porque neles se representavam todas as partes do mundo, que também são<br />

três: Ásia, África e Europa” (ibidem, p.7). Assim diz o Evangelho, mas,<br />

para o pregador, “o mesmo Evangelho, para ser meu <strong>in</strong>térprete, a<strong>in</strong>da há de<br />

dizer mais” (idem, ibidem, p.7). Como se pode notar, as contradições expostas<br />

por Vieira não se direcionam à negação das palavras bíblicas, e sim,<br />

são postas no curso de seu objetivo: “a vocação da gentilidade à fé” (ibidem,<br />

p.5). A<strong>in</strong>da segundo Bernardo (s. d.), “ele o fará dizer muito mais que isso –<br />

Vieira fará o trecho de Mateus ser acrescido nada menos do que de seu próprio<br />

contrário (a ideia de que povos do Ocidente viriam adorar a Cristo)”.<br />

A partir do pressuposto de que a <strong>in</strong>terpretação de Vieira fará com que<br />

o texto bíblico fale mais do que se possa recolher de seu signifi cado, os rumos<br />

discursivos do pregador alcançam uma dimensão mítico-histórica, a<br />

do messianismo sebastianista. A profecia é sustentada pelo segu<strong>in</strong>te argumento:<br />

o mundo antigo apontava para a divisão em três partes, Ásia, África<br />

e Europa. Depois ocorreu a descoberta de uma quarta parte, a América.<br />

Faltava, no entanto, o qu<strong>in</strong>to elemento, sobre o qual Portugal teria total<br />

poder de governo: a utopia do Qu<strong>in</strong>to Império. A unidade sobre o Qu<strong>in</strong>to<br />

Império seria viabilizada, então, pela dilatação das fronteiras da fé, em que<br />

um só rei governaria, o português, como também, sua língua, acompanhado<br />

do catolicismo como religião única. O argumento apoia-se no fato de<br />

que “se cada uma das outras partes do mundo teve o seu rei que as apresentasse<br />

a Cristo, por que lhe há de faltar pobre América?” (ibidem, p.7). Sua<br />

edifi cação justifi ca-se pela duplicidade temporal e espiritual que permeia as<br />

duas épocas:<br />

a primeira vocação da gentilidade foi nos dias de Herodes: In diebus herodis Regis<br />

– a segunda quase em nossos dias. A primeira foi quando Cristo nasceu:<br />

Cum natus esset Jesus – a segunda quando já se contavam mil e qu<strong>in</strong>hentos anos<br />

do nascimento de Cristo. A primeira foi por meio dos reis do oriente: Ecce Magi<br />

ab oriente venerunt – a segunda por meio dos reis do Ocidente, e dos mais ocidentais<br />

de todos, que são os de Portugal. (ibidem, p.8-9)


102 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

O que Vieira acrescenta à construção do Qu<strong>in</strong>to Império, e que é sua<br />

verdadeira tese defendida, é a propagação de uma nova Igreja, pela presença<br />

da Companhia de Jesus, em terras americanas. O que parecia ser contradição<br />

no <strong>in</strong>ício, serve de exemplo ao pregador como forma de aceitar parcialmente<br />

a citação do evangelista Mateus, fazendo expandir seu signifi cado,<br />

ao considerar que o Ocidente viria a adorar a Cristo. Há uma justifi cativa<br />

acerca da <strong>in</strong>serção dos <strong>in</strong>dígenas na igreja de Cristo, que os põem em igualdade<br />

aos demais povos descobertos há mais tempo, porém, tardios na aceitação<br />

do Evangelho: “se me disserem que não apareceu no presépio, porque<br />

tardou e veio muitos séculos depois, também as outras tardaram; antes, ela<br />

tardou menos, porque se converteu e adorou a Cristo mais depressa e mais<br />

sem repugnância que todas” (ibidem, p.7). Segu<strong>in</strong>do os cam<strong>in</strong>hos dos que<br />

o antecederam, Mateus, Marcos, Lucas e João, Vieira se vê como o qu<strong>in</strong>to<br />

evangelista, que tem a missão de term<strong>in</strong>ar o trabalho <strong>in</strong>iciado por Cristo<br />

na terra.<br />

Toda a circularidade em torno da visão messiânico-sebastianista da<br />

construção do Qu<strong>in</strong>to Império deságua no aspecto particular do sermão<br />

que Vieira propõe: descoberto o Novo Mundo, justifi ca-se a criação de uma<br />

nova igreja, voltada especialmente para a nova gente: “e porque o fi m do<br />

descobrimento, ou desta nova criação, era a Igreja, também nova, que Deus<br />

pretendia fundar no mesmo Mundo Novo [...] – que também havia de criar<br />

uma nova Jerusalém, isto é, uma nova Igreja, na qual muito se agradasse”<br />

(ibidem, p.11). Dessa forma, a oposição <strong>in</strong>stalada desde o <strong>in</strong>ício do sermão<br />

não dispõe padres e colonos, cada um em seu território, como no Sermão<br />

das Tentações, visto anteriormente. Coloca-se em campos dist<strong>in</strong>tos e contrários<br />

a verdade da Escritura e a vontade dos homens, sujeita a enganos.<br />

Visto pelo ângulo do jogo persuasivo do pregador, e não do texto de Mateus,<br />

estaria implícito no texto bíblico o s<strong>in</strong>al de que os portugueses seriam<br />

os escolhidos para serem os portadores da luz aos gentios, unifi cando os<br />

aspectos temporais e espirituais.<br />

No <strong>in</strong>ício da terceira parte do Sermão da Epifania encontram-se os questionamentos<br />

que darão a matéria para construir o segundo percurso de <strong>in</strong>terpretação<br />

do texto bíblico:<br />

mas quem dissera ou imag<strong>in</strong>am que os tempos e os costumes se haviam de trocar,<br />

e fazer tal mudança, que esta mesma glória nossa se visse entre nós eclip-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 103<br />

sada, e por nós escurecida? Não quisera passar a matéria tão triste, e tão <strong>in</strong>digna<br />

– que por isso a fui dilatando tanto, como quem rodeia e retarda os passos,<br />

por não chegar aonde muito repugna. – Mas nem a força da presente ocasião<br />

mo permite, nem a verdade de um discurso, que prometeu ser evangélico, o<br />

consente. Quem imag<strong>in</strong>ara, torno a dizer, que aquela glória tão heroicamente<br />

adquirida nas três partes do mundo, e tão celebrada e esclarecida em todas quatro,<br />

se havia de escurecer e profanar em um r<strong>in</strong>cão ou arrabalde da América?<br />

(ibidem, p.14-5)<br />

É notável que o pregador não se assume como <strong>in</strong>tegrante das ações que<br />

profanaram os objetivos da colonização do Novo Mundo, pontuados nas<br />

duas primeiras partes do sermão. A culpa de tal “escurecimento” a que se<br />

refere não recai sobre a Companhia de Jesus, como uma das <strong>in</strong>stituições<br />

responsáveis pelo aprisionamento dos nativos; pelo contrário, põe-se sobre<br />

os que não souberam fazer a leitura do texto bíblico adequadamente, julgando<br />

a missão dos jesuítas como <strong>in</strong>coerente. A partir do jogo <strong>in</strong>tertextual<br />

com o evangelista, o jesuíta irá descamar a alegoria das raças, presente nos<br />

três Reis Magos, na qual defende que a cor da pele não é o fator decisivo<br />

para defi nir um homem como escravo: “e pode haver a maior <strong>in</strong>consideração<br />

do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu<br />

que hei de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis<br />

de ser meu escravo, porque nascestes mais perto?” (ibidem, p.47).<br />

Toda a rede discursiva, projetada em longas considerações em torno<br />

das raças, serve de desaguadouro para justifi car a necessidade de os jesuítas<br />

permanecerem no Maranhão e no Pará, após a expulsão promovida pelos<br />

colonos da região, <strong>in</strong>teressados no cativeiro dos nativos. O que Vieira expõe<br />

é um conjunto de situações, nas quais o missionário sente-se agredido pela<br />

violência com que foi arrancado de seu trabalho de conversão, diante “dos<br />

gentios atônitos e pasmados” (ibidem, p.16), pelas mãos dos próprios portugueses,<br />

que deveriam reconhecer nos jesuítas o poder <strong>in</strong>stituído da igreja.<br />

Diante do quadro, o índio é motivo de preocupação no que lhe compete à<br />

sobrevivência: “que será dos pobres e miseráveis índios, que são a presa e os<br />

despojos de toda esta guerra? [...] Que será dos gentios?” (ibidem, p.16). O<br />

<strong>in</strong>tuito de protegê-los está ligado, essencialmente, ao efeito que o argumento<br />

deveria provocar, uma vez que grande número de nativos encontrava-se<br />

em poder dos aldeamentos a serviço do rei e da Companhia.


104 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Para isso, o pregador utiliza a transposição de conceito, tornando a fi gura<br />

do <strong>in</strong>dígena humanizada: “os egípcios, a<strong>in</strong>da que gentios, eram homens;<br />

aqueles gentios, que hoje começam a ser homens, ontem eram feras” (ibidem,<br />

p.22). Nota-se, então, que a estratégia utilizada, para fazer convencer<br />

a audiência, está no fato de o pregador ter exercido <strong>in</strong>fl uência sobre a condição<br />

zoomórfi ca do gentio. Caberia a ele o respeito e a tolerância, uma vez<br />

que fora responsável pela “humanização” das feras, que “sem uso da razão,<br />

nem sentido de humanidade, se fartavam de carne humana” (ibidem, p.22-<br />

3), alud<strong>in</strong>do à antropofagia existente na cultura autóctone.<br />

No roteiro da transfi guração, as “feras” vão tomando feição de personagens<br />

bíblicas em que a virtude do bem prevalece:<br />

e estas são hoje as feras que, em vez de nos tirarem a vida, nos acolhem entre si,<br />

e nos veneram como os leões a Daniel; estas as aves de rap<strong>in</strong>a que, em vez de nos<br />

comerem, nos sustentam como os corvos a Elias; estes os monstros – pela maior<br />

parte mar<strong>in</strong>hos – que, em vez de nos tragar e digerir, nos metem dentro nas<br />

entranhas, e nelas nos conservam vivos, como a baleia a Jonas. (ibidem, p.23,<br />

grifo nosso)<br />

Os aspectos que vão decl<strong>in</strong>ando em favor do nativo, mostrando-o submetido<br />

à ext<strong>in</strong>ção nas mãos dos colonos se permanecerem longe da proteção<br />

do jesuíta, mostram a engenhosidade do discurso de Vieira para obter<br />

o efeito positivo a que se propunha. Assim, para que fossem aceitos seus<br />

argumentos, o nativo serve de escudo para a justifi cativa da escravidão, dita<br />

lícita, no Brasil. É preciso compreender que Vieira não pretende suspendêla,<br />

o que pontua são as queixas em virtude da não-aceitação do trabalho<br />

missionário na região, visando à revisão das causas apontadas pelos colonos:<br />

“não é m<strong>in</strong>ha tenção que não haja escravos, antes procurei nesta corte,<br />

como é notório e se pode ver da m<strong>in</strong>ha proposta, que se fi zesse, como se fez,<br />

uma junta dos maiores letrados sobre este ponto, e se declarassem, como<br />

se declaram por lei – que lá está registrada – as causas do cativeiro lícito”<br />

(ibidem, p.49).<br />

Os fi os do Sermão da Epifania são paradoxais no sentido de serem tecidos<br />

dentro de um sistema colonial marcado pela opressão e pela violência.<br />

Dessa forma, é preciso compreender a defesa do cativeiro lícito como ação<br />

que não compromete os direitos da comunidade. Palac<strong>in</strong> (1986, p.29) con-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 105<br />

sidera que “o homem do século XVII não t<strong>in</strong>ha a sensibilidade do homem<br />

moderno na percepção e na repulsa dos abusos da autoridade”, como se nota<br />

no discurso de Vieira, em que o cativeiro lícito, ou seja, “o castigo corporal<br />

e a tortura” são atos aceitáveis em nome da necessidade, e, em consonância,<br />

com o poder mercantilista que o pregador quer preservar. Nessa rede de nós<br />

apertados, a questão do cativeiro lícito é posto como ação natural diante da<br />

audiência, como se percebe na defesa: “mas, porque queremos só os lícitos,<br />

e defendemos os ilícitos, por isso nos não querem naquela terra, e nos lançam<br />

dela” (Vieira, 1951, p.49). Entende-se, no entanto, que o caráter lícito<br />

é estratégia argumentativa, que, na prática, exige refl exão mais profunda,<br />

uma vez que as duas formas de escravidão convergem para o mesmo fi m.<br />

Defender o cativeiro lícito, portanto, atende a ambos os <strong>in</strong>teresses da colonização,<br />

voltada à mão de obra e à conversão de almas.<br />

Todo o rosário desfi ado em torno da escravidão dos nativos ajusta-se,<br />

exclusivamente, a cumprir o aspecto mais relevante dos sermões, que é convencer,<br />

pelo argumento, da necessidade de rever os documentos que dão<br />

aos colonos o direito de terem índios em cativeiro. Para tanto, a estampa<br />

deixa a esfera zoomórfi ca para comparar-se à bíblica, no que compete ao<br />

lado humanizado do gentio, e colore, também, uma série de apontamentos<br />

que os colocam em situação de “gente [...] tão pobre e tão miserável que<br />

nem eles têm que oferecer nem nós que aceitar” (ibidem, p.46). Na condição<br />

de magos a serem conduzidos, tal qual desempenhou a função da estrela<br />

no texto bíblico, Vieira faz a mea culpa quando elenca em que situações a<br />

atividade missionária deixou de ter o resultado que Cristo teve em relação<br />

aos Magos: “não consentiu que perdessem a pátria, nem a soberania, nem a<br />

liberdade; e nós não só consentimos que os pobres gentios que convertemos<br />

percam tudo isto, senão que os persuadimos a que o percam, e o capitulamos<br />

com eles, só para ver se se pode conter a tirania dos cristãos: mas nada<br />

basta” (ibidem, p.46).<br />

Dessa forma, alude à perda da pátria porque “os arrancamos de suas<br />

terras, trazendo as povoações <strong>in</strong>teiras a viver ou a morrer junto das nossas”<br />

(ibidem, p.47), à soberania porque “sujeitando-os ao jugo espiritual da<br />

Igreja, os obrigamos também ao temporal da coroa, fazendo-os jurar vassalagem”<br />

(idem, ibidem, p.47) e à liberdade porque “pacteamos com eles<br />

e por eles, como seus curadores, que sejam meio cativos, obrigando-se a<br />

servir alternadamente a metade do ano” (ibidem). Nesses fragmentos, fi ca


106 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

evidente que o pregador assume ter trabalhado na esfera consonante a dos<br />

colonos, que ora se voltam contra os jesuítas com o argumento de que os nativos<br />

“são negros, e hão de ser escravos” (ibidem). Daí decorre uma das explicações<br />

em defesa da cor da pele, citada anteriormente: “dos Magos, que<br />

hoje vieram ao presépio, dois eram brancos e um preto, como diz a tradição;<br />

e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltasar, porque eram<br />

brancos, tornassem livres para o Oriente, e Belchior, porque era pret<strong>in</strong>ho,<br />

fi casse em Belém por escravo, a<strong>in</strong>da que fosse de S. José?” (ibidem, p.48).<br />

Além do exemplo, buscado em Cristo, aponta que a virtude que os coloca<br />

em igualdade, como reis, sem a menção do evangelista ao negro, é o fato de<br />

serem batizados, pois somente o batismo lava, e nele “não há diferença de<br />

nobreza, porque todos são fi lhos de Deus; nem há diferença de cor, porque<br />

todos são brancos” (ibidem, p.47). Diante desse pensamento, conclui o pregador<br />

que “depois de nós os fazermos brancos (os índios) pelo batismo, eles<br />

(os colonos) os querem fazer escravos por negros” (ibidem, p.49).<br />

Ao considerar os argumentos de Vieira como “razões da natureza”, Bosi<br />

(1992, p.135) esclarece que, se mantida a coerência <strong>in</strong>terna do discurso, fi ca<br />

em relevo “a condenação pura e simples do que se praticava então no Brasil,<br />

ou seja, tomaria forma lógica o repúdio a qualquer tipo de cativeiro”, e faz<br />

emergir a dupla tarefa da missão, tal qual a efetivou a estrela conduz<strong>in</strong>do<br />

os Magos: “levar a boa nova às almas dos tup<strong>in</strong>ambás e defender os seus<br />

corpos quando ameaçados de cair às mãos dos brancos”.<br />

De acordo com as nuanças de seu pensamento, pontuadas ao longo deste<br />

texto, o índio é motivo para justifi car os argumentos do mercantilismo e do<br />

trabalho e, em segundo plano, servir à evangelização da Companhia. Antes<br />

de ser confi gurada a verdadeira estampa da cultura local, é colocada uma<br />

série de <strong>in</strong>teresses, nos quais o nativo ocupa o cenário de mercadoria, construído<br />

sob o signo paradoxal de “feras” humanizadas pelo poder da fé cristã,<br />

que outorga ao jesuíta o direito de considerá-lo objeto de posse. O discurso<br />

dos sermões escolhidos percorre os polos da civilização e da barbárie e deixa<br />

em evidência que os <strong>in</strong>teresses coletivos estão unidos aos práticos, uma vez<br />

que não defende totalmente o <strong>in</strong>dígena da escravidão, antes condena a ação<br />

dos colonos, revertendo a seu favor o que considera lícito. Ante o escopo do<br />

sermonista, compreende-se que os sermões cumpriram sua dupla vocação:<br />

a de orientar, convencer e provocar mudanças no auditório, em primeira<br />

<strong>in</strong>stância, e a de merecer o status de obra literária, posteriormente, pelo ter-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 107<br />

reno umedecido de alegorias, que transformam a substância histórica em<br />

húmus literário.<br />

Episódio-referência<br />

Parte VI – Sermão da Epifania<br />

E porque na apelação deste pleito, em que a <strong>in</strong>justiça e violência dos<br />

lobos fi cou vencedora, é justo que também eles sejam ouvidos, assim como<br />

ouvistes balar as ovelhas, no que eu tenho dito, ouvi também uivar os mesmo<br />

lobos, no que eles dizem. Dizem que o chamado zelo com que defendemos<br />

os índios é <strong>in</strong>teresseiro e <strong>in</strong>justo: <strong>in</strong>teresseiro, porque o defendemos<br />

para que nos sirvam a nós; e <strong>in</strong>justo porque defendemos que sirvam ao povo.<br />

Provam o primeiro, e cuidam que com evidência, porque veem que nas aldeias<br />

edifi camos as Igrejas com os índios; veem que pelos rios navegamos<br />

em canoas equipadas de índios; veem que nas missões por água e por terra<br />

nos acompanham e conduzem os índios: logo, defendemos e queremos os<br />

índios para que nos sirvam a nós! Esta é a sua primeira consequência, muito<br />

como sua, da qual, porem, nos defende muito facilmente o Evangelho. Os<br />

Magos, que também eram índios, de tal maneira seguiam, e acompanhavam<br />

a estrela, que ela não se movia, nem dava passo sem eles. Mas, em todos<br />

estes passos, e em todos estes cam<strong>in</strong>hos, quem servia, e a quem? Servia<br />

a estrela aos Magos, ou os Magos à estrela? Claro está que a estrela os servia<br />

a eles, e não eles a ela. Ela os foi buscar tão longe, ela os trouxe ao Presépio,<br />

ela os alumiava, ela os guiava, mas não para que eles a servissem a ela, senão<br />

para que servissem Cristo, por quem ela os servia. Este é o modo com que<br />

nós servimos aos índios, e com que dizem que eles nos servem.<br />

Se edifi camos com eles as suas Igrejas, cujas paredes são de barro, as colunas<br />

de pau tosco, e as abóbodas de folhas de palma, sendo nós os mestres e<br />

os obreiros daquela arquitetura, com o cordel, com o prumo, com a enxada,<br />

e com a serra e os outros <strong>in</strong>strumentos – que também nós lhes damos – na<br />

mão, eles servem a Deus e a si, nós servimos a Deus e a eles, mas não eles<br />

a nós. Se nos vem buscar em uma canoa, como têm por ordem, nos lugares<br />

onde não residimos, sendo isso, como é, para os ir doutr<strong>in</strong>ar por seu turno,<br />

ou para ir sacramentar os enfermos, a qualquer hora do dia ou da noite,


108 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

em distância de tr<strong>in</strong>ta, de quarenta e de sessenta léguas, não nos vêm eles<br />

servir a nós; nós somos os que os imos servir a eles. Se imos em missões<br />

mais largas a reduzir e descer os gentios, ou a pé, e muitas vezes descalços,<br />

ou embarcados em grandes tropas à ida, e muito maiores à v<strong>in</strong>da, eles e nós<br />

imos em serviço da Fé e da República, para que tenha mais súditos a Igreja<br />

e mais vassalos a Coroa; e nem os que levamos, nem os que trazemos, nos<br />

servem a nós, senão nós a uns e a outros, e ao rei e a Cristo. E porque deste<br />

modo, ou nas aldeias, ou fora delas, nos vêem sempre com os índios, e os<br />

índios conosco, <strong>in</strong>terpretam esta mesma assistência tanto às avessas que,<br />

em vez de dizerem que nós os servimos, dizem que eles nos servem. [...]<br />

Resta a segunda parte da queixa, em que dizem que defendemos os índios,<br />

porque não queremos que sirvam ao povo. A tanto se atreve a calúnia,<br />

e tanto cuida que pode desmentir a verdade! Consta autenticamente nesta<br />

mesma corte, que no ano de 1655 vim eu a ela só, a buscar o remédio desta<br />

queixa, e a estabelecer – como levei estabelecido por provisões reais – que<br />

todos os índios, sem exceção, servissem ao mesmo povo, e o servissem, e o<br />

modo, a repartição e a igualdade com que o haviam de servir para que fosse<br />

bem servido. Vede se podia desejar mais a cobiça, se com ela pudesse andar<br />

junta a consciência. Não posso, porém, negar que todos nesta parte, e eu em<br />

primeiro lugar, somos muito culpados. E por quê? Porque, devendo defender<br />

os gentios que trazemos a Cristo, como Cristo defendeu os magos, nós,<br />

acomodando-nos à fraqueza do nosso poder, e à força do alheio, cedemos<br />

da sua justiça, e faltamos à sua defensa. Como defendeu Cristo os Magos?<br />

Defendeu-os de tal maneira que não consentiu que perdessem a pátria, nem<br />

a soberania, nem a liberdade; e nós não só consentimos que os pobres gentios<br />

que convertemos percam tudo isso, senão que os persuadimos a que o<br />

percam, e o capitulamos com eles, só para ver se se pode contentar a tirania<br />

dos cristãos: mas nada basta. Cristo não consentiu que os magos perdessem<br />

a pátria, porque reversi sunt <strong>in</strong> regionem suam; e nós, não só consentimos que<br />

percam a sua pátria aqueles gentios, mas somos os que, à força de persuasões<br />

e promessas que se lhes não guardam os arrancamos das suas terras,<br />

trazendo as povoações <strong>in</strong>teiras a viver ou a morrer junto das nossas. Cristo<br />

não consentiu que os magos perdessem a soberania, porque reis vieram e<br />

reis tornaram, e nós não só consentimos que aqueles gentios percam a soberania<br />

natural, com que nasceram e vivem isentos de toda a sujeição, mas<br />

somos os que, sujeitando-os ao jugo espiritual da Igreja, os obrigamos tam-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 109<br />

bém ao temporal da coroa, fazendo-os jurar vassalagem. F<strong>in</strong>almente, Cristo<br />

não consentiu que os Magos perdessem a liberdade, porque os livrou do<br />

poder e tirania de Herodes, e nós não só não lhes defendemos a liberdade,<br />

mas pacteamos com eles, e por eles, como seus curadores, que sejam meios<br />

cativos, obrigando-se a servir alternadamente a metade do ano. Mas nada<br />

disto basta para moderar a cobiça e tirania dos nossos caluniadores, porque<br />

dizem que são negros, e hão de ser escravos.<br />

Já considerei algumas vezes por que permitiu a div<strong>in</strong>a Providência, ou<br />

ordenou a div<strong>in</strong>a Justiça, que aquelas terras e outras viz<strong>in</strong>has fossem dom<strong>in</strong>adas<br />

dos hereges do Norte. E a razão me parece que é porque nós somos<br />

tão pretos em respeito deles, como os índios em respeito de nós e era justo<br />

que, pois fi zemos tais leis, por ela se executasse em nós o castigo. Como se<br />

dissera Deus: já que vós fazeis cativos a estes, porque sois mais brancos<br />

que eles, eu vos farei cativos de outros, que sejam também mais brancos<br />

que vós. A grande sem-razão desta <strong>in</strong>justiça declarou Salomão em nome<br />

alheio com uma demonstração muito natural. Introduz a etiopisa, mulher<br />

de Moisés, que era preta, falando com as senhoras de Jerusalém, que eram<br />

brancas, e por isso a desprezavam, e diz assim: Filiae Jerusalém,nolite considerare<br />

quod fusca sim, quia decoloravit me sol: Se me desestimais porque sois<br />

brancas, e eu preta, não considereis a cor, considerai a causa: considerai que<br />

a causa desta cor é o sol, e logo vereis quão <strong>in</strong>consideradamente julgais. – As<br />

nações, umas são mais brancas, outras mais pretas, porque umas estão mais<br />

viz<strong>in</strong>has, outras mais remotas do sol. E pode haver a maior <strong>in</strong>consideração<br />

do entendimento, nem maior erro do juízo entre homens, que cuidar eu que<br />

hei de ser vosso senhor, porque nasci mais longe do sol, e que vós haveis de<br />

ser meu escravo, porque nascestes mais perto?<br />

Dos Magos que hoje vieram ao presépio, dois eram brancos e um preto,<br />

como diz a tradição; e seria justo que mandasse Cristo que Gaspar e Baltasar,<br />

porque eram brancos, tornassem livres para o Oriente, e Belchior,<br />

porque era pret<strong>in</strong>ho, fi casse em Belém por escravo, a<strong>in</strong>da que fosse de S.<br />

José? Bem o pudera fazer Cristo, que é Senhor dos senhores; mas quis-nos<br />

ens<strong>in</strong>ar que os homens de qualquer cor todos são iguais por natureza, e mais<br />

iguais a<strong>in</strong>da por fé, se creem e adoram a Cristo, como os Magos. Notável<br />

coisa é que, sendo os Magos reis, e de diferentes cores, nem uma nem outra<br />

coisa dissesse o Evangelista. Se todos eram reis, por que não diz que o<br />

terceiro era preto? Porque todos vieram adorar a Cristo, e todos se fi zeram


110 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

cristãos, e entre cristão e cristão não há diferença de nobreza, nem diferença<br />

de cor. Não há diferença de nobreza, porque todos são fi lhos de Deus; nem<br />

há diferença de cor, porque todos são brancos. Essa é a virtude da água do<br />

batismo. Um etíope, se se lava nas águas do Zaire, fi ca limpo, mas não fi ca<br />

branco, porém na água do Batismo sim, uma coisa e outra: Asperges me hyssopo,<br />

et mundabor: ei-lo aí limpo. – Lavabis me, et super nivem dealbabor:<br />

ei-lo aí branco. Mas é tão pouca a razão e tão pouca a fé daqueles <strong>in</strong>imigos<br />

dos índios, que, depois de nós os fazerm os brancos pelo batismo, eles os<br />

querem fazer escravos por negros. (p.44-7)


4<br />

O UNIVERSO HÍBRIDO DE O URAGUAI:<br />

RUPTURA E FUNDAÇÃO<br />

(BASÍLIO DA GAMA)<br />

Oh! Quem foi das entranhas das<br />

[águas,<br />

O mar<strong>in</strong>ho arcabouço arrancar?<br />

Nossas terras demanda, fareja...<br />

Esse monstro...– o que vem cá buscar?<br />

Não sabeis o que o monstro procura?<br />

Não sabeis a que vem, o que quer?<br />

Vem matar vossos bravos guerreiros,<br />

Vem roubar-vos a fi lha, a mulher!<br />

Vem trazer-vos crueza, impiedade –<br />

Dons cruéis do cruel Anhangá;<br />

Vem quebrar-vos a maça valente,<br />

Profanar manitôs, maracá.<br />

Vem trazer-vos algemas pesadas,<br />

Com que a tribo Tupi vai gemer;<br />

Hão-se os velhos servirem de escravos<br />

Mesmo o Piaga <strong>in</strong>da escravo há de ser!<br />

Gonçalves Dias, O canto do Piaga<br />

O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, emerge no contexto literário brasileiro<br />

como um poema narrativo, em que tece o caráter épico, voltado ao<br />

massacre dos <strong>in</strong>dígenas nas missões jesuítas dos Sete Povos das Missões.<br />

Sua presença nesta parte <strong>in</strong>augural das imagens do nativo justifi ca-se pela


112 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

tessitura de vários elementos que o <strong>in</strong>screvem no rol dos matizes fundadores<br />

das letras representativas do desenho da cultura brasileira. Decorrem de<br />

seu conteúdo, em pr<strong>in</strong>cípio, diversos enfoques apontados pelos argumentos<br />

da crítica, que focalizam, entre eles, a agressão de Basílio aos jesuítas,<br />

como também o encantamento pelas cores e formas da terra e pela cultura<br />

<strong>in</strong>dígena, que o faz merecedor do posto de célula participativa da chamada<br />

“poesia americana”. Ante o distanciamento em relação ao centro <strong>in</strong>telectual<br />

do Re<strong>in</strong>o, que mant<strong>in</strong>ha relegados os poetas da Colônia, o poema engendra<br />

os ecos da poesia heroica, transmutando o mundo <strong>in</strong>dígena, cheio de<br />

riquezas de formas, “numa espécie de mitologia nacional”, afi rma Holanda<br />

(1991, p.81).<br />

É preciso estabelecer alguns parâmetros condutores das vias fl utuantes do<br />

cenário traduzido poeticamente, pelos quais as imagens se abrem em diversas<br />

vertentes, dando ao poema a oportunidade de romper com alguns elementos<br />

clássicos da epopeia. Dentro dessa manifestação de polivalência do poema,<br />

Candido (1970, p.172) o considera “um poema narrativo de assunto épico<br />

e político, banhado por um lirismo terno ou heroico que permite ver com<br />

simpatia a vida do índio brasileiro”. Por esse viés, uma das maneiras de ler o<br />

poema, segundo Teixeira (1996, p.19), “é tomá-lo como um romance colonial,<br />

pois sua <strong>in</strong>triga envolve igualmente lances históricos e líricos”, tal qual<br />

o denom<strong>in</strong>ou seu tradutor <strong>in</strong>glês, Sir Richard Burton: A Historical Romance<br />

of South America. Com o acréscimo do adjetivo “sul-americano”, a vertente<br />

temática é alargada pelo fato de romper os limites brasileiros, permit<strong>in</strong>do entrever<br />

na narrativa o poder corrosivo da Europa sobre a América no ataque<br />

de portugueses e espanhóis, sobre os índios dos Sete Povos das Missões. Del<strong>in</strong>eia-se,<br />

dessa maneira, a ideia de que o “poema-romance” abriga em seus<br />

c<strong>in</strong>co cantos “o choque entre o Velho e o Novo Mundo”, de acordo com Teixeira<br />

(1996, p.20). Antonio Candido (1970) tem uma <strong>in</strong>terpretação similar,<br />

ao conceber que a polêmica do antijesuitismo fi ca em plano secundário, para<br />

emergir o choque entre as culturas, exposto, de forma contundente, no Canto<br />

II, em que Gomes Freire e os dois caciques, Sepé e Cacambo, debatem.<br />

O resultado desse confronto cultural é explicado por Candido (1970,<br />

p.175) como o mais forte, em virtude de que “estes falam com a razão natural<br />

e mesmo a razão pura e simples, enquanto aquele (apesar da dignidade<br />

compassiva de que é revestido pelo poeta) argumenta com as conveniências<br />

de Estado”. O encontro das culturas é visto, também, no Caramuru como


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 113<br />

eixo constitutivo da civilização brasileira, no entanto, põe-se na qualidade<br />

de “acomodação das raças e dos costumes”, segundo Candido (1970), enquanto<br />

Basílio torna-o “mais dramático e menos convencional”.<br />

O evento histórico, que daria o tom épico ao poema, não alcança, no<br />

entanto, a mesma dimensão presente em obras que marcaram a história literária,<br />

como Os lusíadas, de Camões, ou Caramuru, de Durão. O que faz O<br />

Uraguai dissolver alguns requisitos são, justamente, a redução e a atualidade<br />

do assunto que, somadas, destituem as regras compatíveis com o gênero,<br />

consolidado no recuo temporal-histórico e na dilatação das imagens poéticas<br />

em longos cantos.<br />

A negação de alguns desses traços básicos da epopeia, segundo Candido<br />

(1970, p.172), elege “a presença da sátira e do burlesco” como <strong>in</strong>strumentos<br />

de aproximação “do poema herói-cômico”, ou seja, “antiepopeia deliberada”.<br />

O que ecoa como um ato de <strong>in</strong>ovação, na concepção de Candido,<br />

permanece no campo da limitação, segundo Veríssimo (1996, p.421), visto<br />

que “faltava ao poeta o recuo necessário no tempo para uma idealização<br />

verdadeiramente poética do acontecimento”. Por esse motivo, acrescenta o<br />

crítico, o poema é “limitado no tempo e no espaço, e, sobretudo, despido das<br />

roupagens e feições propriamente épicas”. De qualquer forma, o obscuro<br />

acontecimento histórico colonial da América do Sul põe-se como paradigma<br />

de ação épica, valioso na condição simbólica que marca a supremacia da Era<br />

das Luzes sobre a ignorância dos povos <strong>in</strong>vadidos pela perfídia dos <strong>in</strong>vasores.<br />

Como o papel da crítica é alavancar todas as possibilidades de <strong>in</strong>terpretação,<br />

os apontamentos de Chaves (2000, p.49) direcionam-se a O Uraguai<br />

como “epopeia brasílica”. Isso signifi ca que a estudiosa de Basílio assume<br />

“posição contrária à de uma parcela signifi cativa de seus receptores, que,<br />

com diversos argumentos, lhe têm recusado quer o caráter brasileiro, quer<br />

a qualifi cação de epopeia ou a própria natureza de poesia épica”. Respeitadas<br />

as variações, entende-se que o poema sedimenta-se num assunto de<br />

projeção da história nacional, ligado <strong>in</strong>tr<strong>in</strong>secamente ao tratado de 1750, ou<br />

Tratado de Madri, e, por extensão, expõe o confl ito da ocupação das terras<br />

missioneiras, nas quais o índio fi gura como apologia <strong>in</strong>tegrada, para confi -<br />

gurar a valorização da terra, expressa no título, e não no herói.<br />

Para fi ns de entendimento, é necessário situar o acontecimento histórico<br />

que envolveu os Sete Povos das Missões. Antes de tudo, a geografi a a que<br />

remete o evento não é a mesma que se tem, hoje, delimitada pelas frontei-


114 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

ras na região Sul e Centro-Oeste do Brasil. A Guerra Guaranítica, como<br />

foi denom<strong>in</strong>ada, está <strong>in</strong>serida num espaço decorrente da reorganização das<br />

posses de Portugal e Espanha no cont<strong>in</strong>ente sul-americano, del<strong>in</strong>eado pelo<br />

Tratado de Madri, de 1750, que anulava as fronteiras do Tratado de Tordesilhas.<br />

Constituiu-se pelos ataques constantes aos índios guaranis aldeados<br />

pelos jesuítas espanhóis aos Sete Povos das Missões, assim chamados,<br />

em virtude de serem sete aldeias paraguaias, sujeitas à Espanha. Segundo<br />

o estudo de Teixeira (1996, p.86), que serviu a este trabalho como roteiro<br />

de leitura, “a região chamada Uruguai, nos séculos da colonização, era um<br />

trecho da margem esquerda daquele rio, no ponto em que mais se aproxima<br />

do Rio Paraná, no noroeste do atual Rio Grande Sul”.<br />

As chamadas “reduções” migravam cada vez que um tratado estabelecia<br />

os limites das fronteiras ou eram atacadas por preadores de índios em busca<br />

de escravos; eram constituídas pelo regime cristão, imposto pelos padres;<br />

não possuíam leis civis, nem noção de propriedade privada, o que lhe rendeu<br />

o epíteto de “sociedade comunista” pelos apologistas da ação missionária. Os<br />

índios podiam apenas falar a língua guarani; não t<strong>in</strong>ham liberdade de culto,<br />

sendo punidos, caso manifestassem sua crença remanescente, com a expulsão<br />

para fora das “reduções”, além dos castigos corporais, prisões e jejuns.<br />

Além disso, eram proibidos de ter contato com leigos espanhóis ou portugueses,<br />

uma “obediência cega”, tida pelos missionários como “pr<strong>in</strong>cípio<br />

fundamental para a manutenção da ordem nas reduções”, entende Teixeira<br />

(1996, p.88), que vê na organização social a convergência para “o conceito<br />

católico de felicidade, própria dos padres dirigentes”. A cultura do mate era<br />

a atividade primordial, acompanhada do algodão, cana-de-açúcar, tabaco e<br />

grãos; uma <strong>in</strong>tensa produção, que se associava aos rituais religiosos, e dest<strong>in</strong>ava<br />

seus dividendos à construção de templos ou à Companhia, em Roma.<br />

A origem dos Sete Povos das Missões deu-se a partir das reduções de<br />

Guairá, fundadas em torno de povoações espanholas de Ciudad Real e Villa<br />

Rica Del Espírito Santo, sob vigilância dos padres v<strong>in</strong>dos de Assunção, em<br />

1588. Após 1610, contavam-se cerca de 13 reduções bem organizadas, com<br />

número superior a sete mil índios, todos convertidos e dest<strong>in</strong>ados ao trabalho.<br />

Com as características de expansão visíveis, foram objeto de ataques<br />

constantes e violentos pelos bandeirantes paulistas, os “preadores” de índios,<br />

que os aprisionavam para o trabalho escravo em suas fazendas, sob<br />

total consentimento do Estado português. Diante do acirramento dos ata-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 115<br />

ques e da posse do território pelos paulistas, as reduções do Guairá foram<br />

transferidas para “dois pontos: na zona do rio Uruguai (noroeste do atual<br />

Rio Grande do Sul) e na zona do Tape (centro do mesmo Estado). As que<br />

foram para o oeste localizaram-se na zona do Itatim (parte meridional do<br />

atual Mato Grosso do Sul)” (ibidem, p.85).<br />

A<strong>in</strong>da perseguidos pelos bandeirantes, os jesuítas concentraram-se nas<br />

imediações do Rio Uruguai, onde se consolidou, então, a “República Cristã<br />

dos Guaranis”, dentro da qual se encontra a unidade dos Sete Povos das<br />

Missões. Assim <strong>in</strong>stalados, o rei Felipe IV autorizou a organização militar<br />

dos índios em 1640, para que pudessem se defender dos ataques. Na <strong>in</strong>terpretação<br />

de Teixeira (1996, p.85), o fato de militarizarem os índios deixa<br />

evidente que bandeirantes e jesuítas estavam nivelados pelo <strong>in</strong>teresse da<br />

Península sobre a América, uma vez que, mesmo considerada<br />

uma enorme diferença na maneira com que ambos destruíram a cultura <strong>in</strong>dígena,<br />

[...] a destruição é total e bem caracterizada. São duas faces de um mesmo<br />

processo. Os colonos escravizavam e matavam os índios. Os padres protegiamnos<br />

do extermínio imediato e físico para, depois, lhes promover uma guerra<br />

ideológica, opressiva e desigual.<br />

Os ataques cessaram em torno de 1651, quando surgiram focos de m<strong>in</strong>eração<br />

em regiões mais afastadas, levando os bandeirantes a destruírem<br />

outras nações <strong>in</strong>dígenas. Até 1756, viveram sem a <strong>in</strong>cômoda presença dos<br />

bandeirantes, mas não isentos da escravidão imposta pelos <strong>in</strong>acianos, embora<br />

a crítica <strong>in</strong>sista em apontar para um período “pacífi co”, até que o exército<br />

luso-espanhol provocasse a ruína de sete de suas unidades, na tentativa<br />

de expatriar os aldeados do domínio espanhol ao português.<br />

Desse complexo histórico resulta O Uraguai, publicado em 1769, com<br />

sua fábula dividida em c<strong>in</strong>co pequenos cantos, que reúnem a versão estética<br />

da agressão europeia sobre a América “<strong>in</strong>culta”, e decantam o fato para dar<br />

entrada ao índio na poesia nacional como embrião do que viria a ser no século<br />

segu<strong>in</strong>te o <strong>in</strong>dianismo literário propriamente. A manifestação em Basílio<br />

e em Durão, segundo Veríssimo (1996, p.424), é compreendida apenas<br />

como “um artifício poético; o índio entra como uma necessidade de assunto,<br />

um simples recurso estético ou retórico”, enquanto que nos românticos<br />

“o índio passa de acessório a essencial, é ele o assunto e o objeto do canto”.


116 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

O que os põem em diferença de pontos de vista é que nos árcades o índio<br />

mantém-se na esfera do selvagem, apresentado pelos cronistas e viajantes<br />

como o elemento perturbador da expansão mercantilista a ser dom<strong>in</strong>ado,<br />

impresso na poesia pela determ<strong>in</strong>ação do tema, que o exigia de forma <strong>in</strong>cidental,<br />

enquanto no romantismo da primeira fase, o <strong>in</strong>dianismo situa o<br />

nativo na esfera de antepassado do poeta, como aquele que detém a terra e<br />

foi violentado pela opressão do <strong>in</strong>vasor, cabendo-lhe a posição mais alta no<br />

heroísmo nacional. Para Chaves (1996, p.466), “O Uraguai realiza a passagem<br />

do nativismo que cultuava a natureza bruta, características das obras<br />

de seus antecessores, para um ‘nacionalismo’ que celebra a conquista da<br />

terra, entendida como espaço de desenvolvimento da ‘Nação’”. Tal celebração<br />

será abandonada pelos românticos, ao optarem pela legitimidade do índio<br />

como seu ascendente, mesmo que cont<strong>in</strong>uem a sujeitá-lo e a destruí-lo.<br />

O que foi necessidade de assunto, no entanto, antecipa a vitalidade que<br />

se impôs em José de Alencar, com sua trilogia <strong>in</strong>dianista, revelada no maior<br />

expoente, O Guarani, como também em Gonçalves Dias, em Os Timbiras<br />

e I-Juca Pirama, em que o nacionalismo romântico se pôs a serviço da pesquisa<br />

local, para <strong>in</strong>fl uir no perfi l da cultura brasileira, contemplando o nativo<br />

como personagem de um passado glorioso que se alia ao signifi cado<br />

de nação. Assim, O Uraguai “pode ser lido como uma epopeia do colono<br />

brasileiro para conquistar o território pátrio e nele <strong>in</strong>serir as populações autóctones”<br />

(Chaves, 1996, p.465).<br />

O poema apresenta os componentes típicos da epopeia clássica: proposição,<br />

<strong>in</strong>vocação, dedicatória, <strong>in</strong>ício da narração, retrospecção, prospecção<br />

e epílogo. A fábula se mostra clara e tem, em seu Canto I, a <strong>in</strong>trodução,<br />

comum às epopeias, dividida em partes, nas quais se visualizam a caracterização,<br />

as razões e as causas do herói. A abertura chama a atenção para um<br />

detalhe <strong>in</strong>ovador de Basílio, posto antes da proposição, ex abrupto, no qual<br />

estampa a matéria essencial, ou seja, <strong>in</strong>icia <strong>in</strong> media res, com a imagem da<br />

destruição dos índios americanos:<br />

Fumam a<strong>in</strong>da nas desertas praias<br />

Lagos de sangue tépidos, e impuros,<br />

Em que ondeiam cadáveres despidos,<br />

Pasto de corvos. Dura <strong>in</strong>da nos vales<br />

O rouco som da irada artilheria. (Canto I, p.21)


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 117<br />

As imagens <strong>in</strong>iciais são captadas pela visão, como a fumaça que se eleva<br />

do sangue dos corpos espalhados, e pelo ruído das armas. Pela memória, o<br />

eu poético vivifi ca o quadro, tornando os versos o anúncio do que será narrado<br />

posteriormente, como se houvesse presenciado o fato. Segundo a leitura<br />

de Teixeira (1996, p.105), o bloco unitário dos c<strong>in</strong>co primeiros versos<br />

“funciona como um poderoso agenciador de signifi cados para todo o poema”,<br />

e constitui-se <strong>in</strong>dependente em relação à <strong>in</strong>trodução. Essa característica<br />

o <strong>in</strong>screve no diálogo com Virgílio, em sua Eneida, o primeiro a utilizar<br />

o recurso da antecipação de uma sequência autônoma à proposição, como<br />

também, com Camões, em Os lusíadas, em que as duas primeiras estrofes<br />

têm a mesma função confi gurada em Basílio.<br />

Em sua <strong>in</strong>vocação, Basílio segue a forma clássica de Homero, na qual<br />

grafa a palavra em maiúsculas:<br />

MUSA, honremos o Herói que o povo rude<br />

Subjugou do Uraguai, e no seu sangue<br />

Dos decretos reais lavou a afronta.<br />

Ai tanto custas, ambição do Império! (Canto I, p. 21)<br />

Nota-se, seguida à palavra laudatória, a substituição do termo cantar,<br />

reiterante nos poemas épicos, com o sentido de louvar o feito pela poesia,<br />

pelo termo honrar. No caso de Basílio, aponta seu exegeta, que o termo honrar<br />

cumpre o papel “mais próprio da poesia encomiástica e dotado de certa<br />

<strong>in</strong>s<strong>in</strong>uação burocrática” (Teixeira, 1996, p. 110), enfatizando o aspecto híbrido<br />

de O Uraguai no que lhe compete ao estilo de composição. Com brevidade<br />

e precisão, o verso <strong>in</strong>voca a “musa” e anuncia a ação realizada pelas<br />

mãos do herói, Gomes Freire de Andrade, no confl ito de sujeição aos índios<br />

do Uruguai. Ao referir-se ao “povo rude”, <strong>in</strong>stala, primeiramente, a noção<br />

de obstáculo ao qual o herói será submetido, ou seja, o índio como objeto da<br />

ação a ser vencido. Tal expectativa de abertura não se consolida, no entanto,<br />

no decorrer do poema, uma vez que os índios passam dessa condição à luta e<br />

resistência, sujeitos da ação, portanto, e postos em igualdade épica ao herói,<br />

com saberes equivalentes. Além disso, a qualifi cação “rude” determ<strong>in</strong>a a<br />

oposição a civilizado, tendo em vista que o poema dest<strong>in</strong>ava-se a uma parcela<br />

da burguesia portuguesa setecentista, o que o faz abrigar, também, em<br />

seu signifi cado, dois polos constantes: Europa/América.


118 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

A dualidade, que decorre da proposição, suscita de forma explícita que<br />

a voz presente não representa, ao longo do texto, as convicções acerca do<br />

herói. Gomes Freire não preenche as convicções <strong>in</strong>iciais, pois as ações <strong>in</strong>s<strong>in</strong>uam<br />

que o verdadeiro herói é o <strong>in</strong>dígena, que combate com a vida em favor<br />

das terras em vez de armas a serviço dos militares. A abertura do poema<br />

aponta para o desenvolvimento de ações sangrentas, impressa na expressão<br />

“lagos de sangue”, que irá se confi rmar no Canto II, de maneira acentuada.<br />

A<strong>in</strong>da na abertura do poema encontra-se a dedicatória, parte mais longa,<br />

que se dirige à proteção solicitada aos versos a outro poeta, bem como a<br />

<strong>in</strong>dicação do homenageado:<br />

E Vós, por quem o Maranhão pendura<br />

Rotas cadeias, e grilhões pesados,<br />

Herói, e Irmão de heróis, saudosa, e triste,<br />

Se ao longe a vossa América vos lembra,<br />

Protegei os meus versos. Possa entanto<br />

Acostumar ao voo as novas asas,<br />

Em que um dia vos leve. Desta sorte<br />

Medrosa deixa o n<strong>in</strong>ho a vez primeira<br />

Águia, que depois foge à humilde terra,<br />

E vai ver de mais perto no ar vazio<br />

O espaço azul, onde não chega o raio. (Canto I, p.21-2)<br />

Resumem-se no excerto o pedido e a promessa. Em nota, o poeta explica<br />

o “Vós” a que se dirige o poema; trata-se de Francisco Xavier de Mendonça<br />

Furtado, governador e capitão-general das capitanias do Pará e Maranhão.<br />

A alusão ao homem histórico ligado ao Norte do país duplica a imagem de<br />

Gomes Freire de Andrade, o conde de Bobadela, acerca dos feitos realizados<br />

no Sul, em que o jesuíta é o empecilho a ser vencido pelos mesmos<br />

motivos. A dedicatória, no entanto, estende-se, também, aos irmãos do governador,<br />

confer<strong>in</strong>do-lhes heroísmo, o que põe em dúvida o nome que o<br />

poema exalta a pr<strong>in</strong>cípio, o comandante Gomes Freire, representante da<br />

adm<strong>in</strong>istração pombal<strong>in</strong>a, a quem Basílio enaltece pela dedicação total aos<br />

<strong>in</strong>teresses do Estado. O Vós, segundo Chaves (1997, p.30), dirigido a Mendonça<br />

Furtado, “possibilita o oferecimento do livro a outros dest<strong>in</strong>atários,<br />

não referidos no lugar convencional”, como notado no epílogo, em que se<br />

constitui coletivo e histórico, com projeção ao futuro:


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 119<br />

Serás lido Uraguay. Cubra meus olhos<br />

Embora um dia a escura noite eterna.<br />

Tu vive, e goza a luz serena, e pura.<br />

Vai aos bosques de Arcádia: e não receies<br />

[...]<br />

E busca o sucessor, que te encam<strong>in</strong>he<br />

Ao teu lugar, que há muito que te espera. (Canto V, p.99)<br />

Uma das formas de ler O Uraguai é perceber-lhe a forma metonímica,<br />

que <strong>in</strong>cide na economia dos meios. No fragmento: “o Maranhão pendura/<br />

Rotas cadeias, e grilhões pesados”, podem ser entendidas as leis maranhenses<br />

que suspenderam a escravidão dos índios. Assim, a fi gura de Mendonça<br />

Furtado ocupa o lugar de herói que libertou os nativos do domínio dos<br />

jesuítas, confl ito já comentado no texto de análise dos Sermões de Vieira. O<br />

termo América também possui o caráter metonímico, uma vez que se refere<br />

à política dest<strong>in</strong>ada aos povos do cont<strong>in</strong>ente, reiterado em outros momentos<br />

do poema, sob as imagens de “estranho céu” e “bárbaras fl ores”, com as<br />

quais imprime o sentido de terra natal do autor.<br />

No decorrer do Canto I apresentam-se, a<strong>in</strong>da, as tropas portuguesas e<br />

espanholas sob o comando de Andrade (Gomes Freire de Andrade). Em<br />

longo discurso, descreve a batalha e <strong>in</strong>forma os motivos históricos ao coronel<br />

Almeida. As imagens matizadas pelo herói português dão a conhecer os<br />

resultados das batalhas anteriores e enaltecem nomes da história, que vão<br />

sendo tecidos no corpo do poema, como coronel Meneses, governador da<br />

Colônia; Alpoim e seu fi lho, Vasco, amigo do autor, conforme explicado em<br />

nota. Além desses, fi guram Mascarenhas, capitão dos granadeiros, e Castro<br />

Morais, de ilustre família do Rio de Janeiro, com o qual o autor t<strong>in</strong>ha estreitos<br />

laços, o que lhe favoreceu nas notícias do evento histórico do Sul do país.<br />

No Canto I, o índio é marcado pela rebeldia não autônoma, por ser manipulado<br />

pelos jesuítas no confronto com o arsenal luso-espanhol:<br />

Quem poderia esperar que uns índios rudes,<br />

Sem discipl<strong>in</strong>a, sem valor, sem armas,<br />

Se atravessassem no cam<strong>in</strong>ho aos nossos,<br />

E que lhes disputassem o terreno!<br />

[...]


120 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Não sofrem tanto os índios atrevidos:<br />

Juntos um nosso forte entanto assaltam.<br />

E os padres os <strong>in</strong>citam e acompanham.<br />

Que, à sua discrição, só eles podem<br />

Aqui mover ou sossegar a guerra. (Canto I, p.30)<br />

O fragmento do relato a<strong>in</strong>da aponta para a rudeza do nativo, desprovido<br />

de armas, entendidas as bélicas, usadas pelos europeus, mas dotado de armas<br />

não perceptíveis aos olhos do <strong>in</strong>vasor, que se surpreende com o resultado<br />

das ações de esterilidade dos campos, com as quais impede o avanço das<br />

tropas espanholas, comandadas pelo marquês de Valdelírios, que aconselha<br />

Andrade a se retirar:<br />

A discipl<strong>in</strong>a militar dos índios<br />

T<strong>in</strong>ha esterilizado aqueles campos.<br />

Que eu também me retire, me aconselha,<br />

Até que o tempo mostre outro cam<strong>in</strong>ho. (Canto I, p.32)<br />

Um dos episódios do Canto I chama a atenção pelo colorido das imagens<br />

decorrentes do desfi le das tropas portuguesas, apresentadas ao espanhol:<br />

Quem é este, Catâneo perguntava,<br />

Das brancas plumas e de azul e branco<br />

Vestido, e de galões coberto e cheio,<br />

Que traz a rica cruz no largo peito?<br />

[...]<br />

Toda essa guerreira <strong>in</strong>fanteria,<br />

A fl or da mocidade e da nobreza<br />

Como ele azul e branco e ouro vestem. (Canto I, p.26)<br />

Justaposto ao elevado cunho bélico dos portugueses, destaca-se a <strong>in</strong>capacidade<br />

das tropas, diante dos obstáculos da natureza, que nesta primeira<br />

tomada, opõe-se à presença do <strong>in</strong>vasor. O episódio da enchente do rio Jacuí<br />

(Uruguai) ilustra a presença do rio como um <strong>in</strong>imigo, cujo <strong>in</strong>dício não t<strong>in</strong>ha<br />

sido previsto, e se transforma, naturalmente, numa arma de guerra, expondo<br />

ao ridículo o exército a que Andrade comandava:


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 121<br />

Porém o rio e a forma do terreno<br />

Nos faz não vista e nunca usada guerra.<br />

Sai furioso do seu seio, e toda<br />

Vai alagando com o desmedido<br />

Peso das águas a planície imensa.<br />

As tendas levantei, primeiro aos troncos,<br />

Depois aos altos ramos: pouco a pouco<br />

Fomos tomar na região do vento<br />

A habitação aos leves passar<strong>in</strong>hos.<br />

[...]<br />

Cedi, e retirei-me às nossas terras. (Canto I, p.32-3)<br />

Encerrado o Canto I com o batismo do local como Campo das Mercês, o<br />

poema expõe, no Canto II, a batalha entre os dois exércitos e os índios dos<br />

Sete Povos. A escolha do Canto II, como referência dessa leitura, é justifi -<br />

cada pelo aspecto primordial que encerra, ao colocar os dois polos contrapostos<br />

em evidência. É o primeiro embate entre as culturas, ass<strong>in</strong>alado no<br />

<strong>in</strong>ício deste percurso, como o traço mais forte no poema, ultrapassando os<br />

limites do teor antijesuítico, compreendido à primeira vista. Tem-se, neste<br />

canto, a oportunidade, mesmo que limitada, de ouvir a voz do nativo, nos<br />

discursos de Sepé e Cacambo, perante o <strong>in</strong>vasor.<br />

A<strong>in</strong>da que atue como ponto central na fundação da imagem do índio<br />

guerreiro, a abertura do Canto II reserva ao leitor as imagens vistas pelo<br />

colonizador, que o apresentam como “<strong>in</strong>imigo”:<br />

Temos por perto o <strong>in</strong>imigo: aos seus dizia<br />

O esperto general: Sei que costumam<br />

Trazer os índios um volúvel laço,<br />

Com o qual tomam no espaçoso campo<br />

Os cavalos que encontram; e rendidos<br />

Aqui e ali com o cont<strong>in</strong>uado<br />

Galopear, a quem primeiro os segue<br />

Deixam os seus, que entanto se restauram. (Canto II, p.37)<br />

É possível verifi car no fragmento que o saber acerca dos costumes locais<br />

dá ao general a certeza de que poderá vencê-los pela estratégia de guerra,


122 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

com a qual anularia a ação dos nativos. A primeira imagem do grupo <strong>in</strong>dígena,<br />

no entanto, é posta “sobre uma larga/Ventajosa col<strong>in</strong>a” (ibidem), dando<br />

<strong>in</strong>ício à constituição do heroísmo desses em oposição ao herói português, a<br />

quem se devotou, no <strong>in</strong>ício, o poeta. A cena do encontro força a ação a direcionar<br />

o olhar para o batalhão de índios dispostos a defender seu território:<br />

[...]: Nestes desertos encontramos<br />

Mais do que se esperava, e me parece<br />

Que só por força de armas poderemos<br />

Inteiramente sujeitar os povos.<br />

Torna-lhe o General: tentem-se os meios<br />

De brandura e de amor; se isto não basta,<br />

Farei a meu pesar o último esforço. (Canto II, p.38)<br />

O saber anterior não é sufi ciente para desarticular o poder do rebelado,<br />

<strong>in</strong>stalando-se a necessidade da “brandura e de amor”, vista como artifício<br />

de convencimento, sem descartar, claramente, o uso bélico, para sujeitar o<br />

grupo. A cada suposta ação arquitetada pelo <strong>in</strong>vasor, outra lhe é direcionada<br />

em movimento contrário. O que era para convencer, torna ao <strong>in</strong>vasor como<br />

argumento conv<strong>in</strong>cente, como se nota, na aproximação dos dois índios, que,<br />

desarmados, deixam visível a possibilidade de diálogo em lugar das armas:<br />

Já para o nosso campo vêm descendo,<br />

Por mandado dos seus, dous dos mais nobres.<br />

Sem arcos, sem aljavas; mas as testas<br />

De várias e altas penas coroadas,<br />

E cercadas de penas as c<strong>in</strong>turas,<br />

E os pés, e os braços e o pescoço. Entrara<br />

Sem mostras nem s<strong>in</strong>al de cortesia<br />

Sepé no pavilhão. Porém Cacambo<br />

Fez, ao seu modo, cortesia estranha<br />

[...]. (Canto II, p.38-9)<br />

A palavra “cortesia”, no fi nal do fragmento, chama especial atenção por<br />

suscitar o elemento estranho, ou não compatível entre as duas culturas que<br />

se chocam. Que esperava o <strong>in</strong>vasor que o índio fi zesse? Um gesto de lou-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 123<br />

vação, beijando-lhe a mão, tal qual se faz usualmente desde a antiguidade?<br />

Sepé torna-se emblemático, no verso, no que diz respeito à orig<strong>in</strong>alidade de<br />

sua cultura, que não prevê honrarias e menções a quem é considerado <strong>in</strong>imigo,<br />

a não ser em ocasiões dos rituais antropofágicos. Cacambo também<br />

desempenha esse papel, contudo, seu gesto é destacado como “cortesia estranha”.<br />

Nota-se, então, que a<strong>in</strong>da persistem traços de <strong>in</strong>terpretação do que<br />

se verifi cou nos textos anteriores. São fatos isolados e que não têm a força<br />

do conjunto de O Uraguai, em que se elevam a coragem e bravura como<br />

caracteres naturais do homem americano.<br />

O Canto II reserva espaço para três discursos importantes, antes da batalha<br />

entre os exércitos e os índios. O primeiro, de Cacambo, faz menção à<br />

crueldade à qual os nativos foram submetidos:<br />

E começou: Ó General famoso,<br />

Tu tens à vista quanta gente bebe<br />

Do soberbo Uraguai a esquerda margem.<br />

Bem que os avôs fossem despojo<br />

Da perfídia de Europa, e daqui mesmo<br />

Co’s não v<strong>in</strong>gados ossos dos parentes<br />

Se vejam branquear ao longe os vales,<br />

Eu, desarmado e só, buscar-te venho. (Canto II, p.39-40)<br />

Em seguida à denúncia, segue a proposta de paz:<br />

Tanto espero de ti. E enquanto as armas<br />

Dão lugar à razão, senhor, vejamos<br />

Se se pode salvar a vida e o sangue<br />

De tantos desgraçados. [...]. (Canto II, p.40)<br />

A condição do estabelecimento de paz viria, segundo o representante<br />

<strong>in</strong>dígena, pela aceitação da permanência dos povos em suas terras, sobre as<br />

quais t<strong>in</strong>ham direito:<br />

[...]. Se o rei da Espanha<br />

Ao teu rei quer dar terras com mão larga<br />

Que lhes dê Buenos Aires, e Correntes


124 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

E outras, que tem por estes vastos climas;<br />

Porém não pode dar-lhes os nossos povos. (Canto II, p.40)<br />

Os argumentos que se seguem ao pedido enumeram a falta de ouro presente<br />

nas terras, uma vez que os padres dissem<strong>in</strong>aram entre os <strong>in</strong>dígenas<br />

a premissa de que o português visava ao ouro somente, o que leva o chefe<br />

nativo à justifi cativa de que sobrevivem do trabalho com a terra:<br />

As camp<strong>in</strong>as que vês e a nossa terra<br />

Sem o nosso suor e os nossos braços,<br />

De que serve ao teu rei? Aqui não temos<br />

Nem altas m<strong>in</strong>as, nem caudalosos<br />

Rios de areias de ouro.<br />

[...] A nós somente<br />

Nos toca arar e cultivar a terra,<br />

Sem outra paga mais que o repartido<br />

Por mãos escassas mísero sustento. (Canto II, p. 41-2; 43)<br />

Ante o im<strong>in</strong>ente perigo da guerra, o discurso fecha-se com a tentativa de<br />

evitar o derramamento de sangue, advertido por Cacambo, e com a proposição<br />

dos nativos em não reconhecerem os reis da Europa, reservando esse<br />

espaço aos padres com quem t<strong>in</strong>ham contato:<br />

Que mais queres de nós? Não nos obrigues<br />

A resistir-te em campo aberto. Pode<br />

Custar-te muito sangue o dar um passo.<br />

Não queiras ver se cortam nossas frechas.<br />

Vê que o nome dos reis não nos assusta.<br />

O teu está muito longe; e nós os índios<br />

Não temos outro rei mais do que os padres. (Canto II, p. 43)<br />

O segundo discurso pertence a Andrade e, como resposta ao chefe<br />

guerreiro, também se volta para a paz, com argumentos que <strong>in</strong>cidem nas<br />

imagens formadas pelos padres a respeito dos portugueses: “Vê que te<br />

enganam: risca da memória/ Vãs, funestas imagens, que alimentam/ Envelhecidos<br />

mal fundados ódios” (Canto II, p.44). Além disso, sustenta os


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 125<br />

argumentos com a ideia de liberdade: “fez-vos livres o céu” (ibidem) e a<br />

contrapõe com a imagem da escravidão posta pelos padres: “Esse absoluto/<br />

Império ilimitado, que exerciam/ Em vós os padres, como vós, vassalos,/<br />

É império tirânico, que usurpam” (ibidem). Ante a acusação feita aos jesuítas,<br />

o general coloca-se como meio de libertação e representante do rei:<br />

O rei é vosso pai: quer-vos felices.<br />

Sois livres, como eu sou; e sereis livres,<br />

Não sendo aqui, em outra qualquer parte.<br />

Mas deveis entregar-nos estas terras.<br />

Ao bem público cede o bem privado.<br />

O sossego da Europa assim o pede.<br />

Assim o manda o rei. Vós sois rebeldes,<br />

Se não obedeceis; mas os rebeldes,<br />

Eu sei que não sois vós, são os bons padres,<br />

Que vos dizem a todos que sois livres,<br />

E servem de vos como de escravos. (Canto II, p.44-5)<br />

O excerto evidencia com maior exatidão um dos v<strong>in</strong>cos do poema, ao<br />

caracterizar a ação missionária em meio aos povos <strong>in</strong>dígenas. Não há, entretanto,<br />

como disfarçar a força do discurso na defesa do rei, que o liga ao<br />

segundo fi o condutor da leitura. No mesmo espaço fi gurativo coadunam<br />

as esferas do ataque aos jesuítas e a defesa ao rei, na solicitação de entrega<br />

das terras. Os versos fi nais do discurso do general pontuam o gesto que se<br />

pode considerar o marco divisório entre a tentativa de diálogo e <strong>in</strong>ício da<br />

revolta propriamente, em que os nativos rejeitam a proposta. Como se viu<br />

desde Cam<strong>in</strong>ha, existe um obstáculo na comunicação entre <strong>in</strong>vasor e nativo,<br />

por isso o gesto é reiterante na maioria dos textos. No poema, é decisivo<br />

pela mudança abrupta de conduta: “pensa e resolve, e, pela mão tomando/<br />

Ao nobre embaixador, o ilustre Andrade/ Intenta reduzi-lo por brandura”<br />

(ibidem, p.45).<br />

Visto pelo olhar do colonizador, tomar o <strong>in</strong>imigo pela mão reduziria certa<br />

distância entre o confl ito e a paz, mas, do ponto de vista do <strong>in</strong>vadido, o<br />

gesto passa a signifi car mais uma das ações coercitivas, como se nota na reação<br />

de Cacambo: “E o índio, um pouco pensativo, o braço/ E a mão retira”<br />

(ibidem, p.46).


126 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Marca-se no episódio, além da negação do gesto, a concepção de distanciamento,<br />

tanto geográfi co quanto cultural, realçado pelas forças naturais,<br />

capazes de impedir a presença do <strong>in</strong>vasor em terras às quais o <strong>in</strong>vasor não<br />

deveria ter tido acesso:<br />

Gentes da Europa, nunca vos trouxera<br />

O mar e o vento a nós. Ah! Não debalde<br />

Estendeu entre nós a natureza<br />

Todo este plano espaço imenso de águas. (Canto II, p.46)<br />

Não por acaso, a natureza se põe como resistência, representada pela<br />

força <strong>in</strong>sólita do mar, meio pelo qual o <strong>in</strong>vasor tomou posse da terra, <strong>in</strong>duz<strong>in</strong>do<br />

o índio a exclamar, perante o general, sua revolta. Na concepção do<br />

homem natural, “o mar transgrediu uma lei natural de separação da terra<br />

moça de outros povos, que a ela não deviam ter acesso jamais. A seu ver, o<br />

mar e o vento t<strong>in</strong>ham assim conspirado contra a selva, onde só devia dom<strong>in</strong>ar<br />

a sua raça” (Gomes, 1996, p.436).<br />

A exclamação comovida do guerreiro <strong>in</strong>dígena, no fragmento anterior,<br />

é <strong>in</strong>terrompida pelo discurso breve e agressivo de Sepé, no qual se evidencia,<br />

primeiramente, a liberdade dos nativos: “Que estas terras, que pisas,<br />

o céu livres/ Deu aos nossos avôs; nós também livres/ As recebemos dos<br />

antepassados” (Canto II, p.46); e, em seguida, a crítica contumaz ao colonizador,<br />

consolidada na defesa dos povos <strong>in</strong>vadidos:<br />

As frechas partirão nossas contendas<br />

Dentro de pouco tempo: e o vosso Mundo,<br />

Se nele um resto houver de humanidade,<br />

Julgará entre nós; se defendemos<br />

Tu a <strong>in</strong>justiça, e nós o Deus e a Pátria.<br />

Enfi m quereis a guerra, e tereis a guerra. (Canto II, p.46-7)<br />

O desafi o proposto é aceito pelo general que os presenteia com espadas,<br />

arcos e vestes, repet<strong>in</strong>do o gesto dos “presentes”, desde o primeiro contato.<br />

O auge do embate entre os discursos <strong>in</strong>staura-se, no entanto, na resposta<br />

de Sepé, aqui considerada como a que dist<strong>in</strong>gue, com maior veemência, o<br />

sentimento de v<strong>in</strong>gança frente ao poder <strong>in</strong>vasor:


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 127<br />

Ó general, eu te agradeço<br />

As setas que me dás e te prometo<br />

Mandar-tas bem depressa uma por uma<br />

Entre nuvens de pó no ardor da guerra.<br />

Tu as conhecerás pelas feridas,<br />

Ou porque rompem com mais força os ares. (Canto II, p.47)<br />

Decorrente do último discurso, o embate da guerra ocupa parte signifi -<br />

cativa do fi nal do poema e revela a superioridade das armas frente aos dom<strong>in</strong>ados.<br />

No conjunto das ações, é narrada, dentre outras, a morte de Sepé,<br />

ao exibir todo o teor cruel que a cena épica da batalha exige:<br />

Era pequeno o espaço, e fez o tiro<br />

No corpo desarmado estrago horrendo.<br />

Viam-se dentro pelas rotas costas<br />

Palpitar as entranhas. Quis três vezes<br />

Levantar-se do chão: caiu três vezes,<br />

E os olhos já nadando em fria morte<br />

Lhe cobriu sombra escura e férreo sono.<br />

Morto o grande Sepé, já não resistem<br />

As tímidas esquadras. [...] (Canto II, p.53)<br />

A morte do guerreiro é posta num pa<strong>in</strong>el específi co, se comparada às<br />

demais ações de extermínio, pelas imagens agressivas que deságuam sobre<br />

o nativo. O movimento das entranhas a palpitar, pelas costas sangrentas,<br />

que os olhos do general visualizam e transformam em imagem, <strong>in</strong>tensifi case<br />

com a proximidade da cena dos “olhos nadando em fria morte”, que<br />

cobrem o guerreiro com a “sombra escura e férreo sono”. Além disso, é<br />

presente o <strong>in</strong>tertexto com a passagem bíblica da queda de Jesus, a cam<strong>in</strong>ho<br />

do Calvário, em que cai três vezes. Se o episódio da morte de Sepé for<br />

<strong>in</strong>terpretado pelo viés da destruição dos nativos, o símbolo do cam<strong>in</strong>ho<br />

do Calvário atualiza-se no poema ao pôr à vista o extermínio do homem<br />

natural, pelas costas, ou seja, sem direito à defesa, ou ao modo de traição,<br />

tanto pelo arsenal bélico, que o fere fi sicamente, quanto pelo aspecto moral,<br />

imposto pelos jesuítas, que o devasta pelas vias mais íntimas de sua<br />

cultura.


128 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

O fechamento do Canto II, em que é narrado o fi nal da batalha, alude ao<br />

fracasso dos índios que fogem em massa, deixando apenas os mais fortes em<br />

combate. Destacam-se, dentre eles, a fi gura de Baldetta, fi lho do padre Balda<br />

com índia; Cacambo, que lidera o grupo; Tatu Guaçu, valente guerreiro<br />

e Caitutu, um dos liderados ferido. Como se nota, os guerreiros <strong>in</strong>dígenas<br />

aparecem com nomes próprios, apresentados como corajosos, destros ao<br />

manejar suas armas, o que não os <strong>in</strong>timida diante do poder bélico do <strong>in</strong>imigo.<br />

Por outro lado, apenas dois guerreiros são brancos, e apenas um tem seu<br />

nome revelado: Gerardo. Para Teixeira (1996, p.77), no episódio, Basílio<br />

“desconstrói a versão orig<strong>in</strong>al da batalha de Caibaté, que, tanto no Diário<br />

de Jac<strong>in</strong>to Rodrigues quanto na Relação abreviada, não considera a presença<br />

humana dos índios”. Para o exegeta de O Uraguai, a versão literária<br />

de Basílio tem dupla função: “mitifi car os índios americanos, estimulando<br />

o sentimento de piedade no leitor; e caracterizar criticamente o processo<br />

civilizatório dos europeus, baseado na destruição física e cultural dos povos<br />

dom<strong>in</strong>ados” (ibidem).<br />

O Canto III localiza as tropas portuguesas às margens do Rio Uruguai,<br />

rumo aos Sete Povos. Neste, podem-se visualizar não apenas os confl itos<br />

entre <strong>in</strong>vasor e nativo, como também, os derivados do confronto entre a<br />

Companhia e os nativos. Segundo Chaves (1996, p.453), dentre as fi guras<br />

jesuíticas,<br />

destaca-se o padre Balda, fi gura metonímica onde se reúnem todos os crimes<br />

que Basílio da Gama atribui à Ordem e que se podem distribuir por três grandes<br />

grupos: crimes contra o Estado (usurpação do poder real), crimes contra<br />

a população <strong>in</strong>dígena (tirania) e crimes contra a religião (luxúria, assass<strong>in</strong>ato,<br />

impiedade, v<strong>in</strong>gança, etc.).<br />

A presença do padre Balda resume a catástrofe que levou os povos à ruína,<br />

o que reitera a imagem maléfi ca da <strong>in</strong>stituição, pontuada sob as peripécias<br />

e personagens para os quais o poema aponta. A<strong>in</strong>da se opõem no Canto<br />

III as duas culturas: de uma lado Cacambo, visitado em sonho pelo espectro<br />

de Sepé, ped<strong>in</strong>do-lhe que se v<strong>in</strong>gue do <strong>in</strong>imigo enquanto dorme, ateando<br />

fogo às cabanas das tropas; e de outro, o padre Balda, que manteve sob seu<br />

plano traiçoeiro, o afastamento de L<strong>in</strong>dóia de seu esposo, Cacambo, com a<br />

<strong>in</strong>tenção de tornar cacique, seu fi lho Baldetta, casando-o com a nativa:


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 129<br />

Não consente<br />

O cauteloso Balda que L<strong>in</strong>dóia<br />

Chegue a falar ao seu esposo; e manda<br />

Que uma escura prisão o esconda e aparte<br />

Da luz do sol.<br />

[...]<br />

Por meio de um licor desconhecido,<br />

Que lhe deu compassivo o santo padre,<br />

Jaz ilustre Cacambo – entre os gentios<br />

Único que na paz e em dura guerra<br />

De virtude e valor deu claro exemplo. (Canto III, p.63-4)<br />

No episódio da morte de Sepé, ass<strong>in</strong>alou-se que a morte “pelas costas”<br />

fi gura a destruição dos povos ameríndios de forma traiçoeira, impelida pelos<br />

propósitos da Companhia. A l<strong>in</strong>ha biográfi ca da personagem de Cacambo,<br />

entrelaçada à de L<strong>in</strong>dóia, faz emergir, também, o mesmo signifi cado, considerando-se<br />

o padre Balda como mentor da ação que resulta no episódico lírico<br />

da morte da nativa. Nesse segundo confronto entre as culturas, em que<br />

as tropas são deixadas em espaço reservado por alguns versos, estampa-se,<br />

portanto, a imagem negativa da Companhia de Jesus com profundidade. A<br />

dimensão religiosa das ações dos padres transforma-se em política, econômica<br />

e social, a partir dos delitos praticados, impressos no poema a partir da<br />

adesão de Basílio da Gama à luta setecentista contra o fanatismo religioso.<br />

Enquanto nos dois cantos anteriores a ação maléfi ca é <strong>in</strong>s<strong>in</strong>uada no discurso<br />

de Andrade, no atual, a ação é posta à vista. A prisão e morte de Cacambo,<br />

primeiramente, e as mentiras ditas a L<strong>in</strong>dóia, em decorrência da<br />

demora do esposo, são evidências da tirania exercida sobre os ameríndios.<br />

A<strong>in</strong>da assim, não têm a dimensão do episódio das visões, em que a índia<br />

Tanajura, caracterizada como feiticeira, faz L<strong>in</strong>dóia ver a destruição de Lisboa,<br />

em lugar do rosto do marido que procura:<br />

E viu Lisboa<br />

Entre despedaçados edifícios,<br />

[...]<br />

Mas do céu sereno<br />

Em branca nuvem Próvida Donzela


130 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Rapidamente desce e lhe apresenta,<br />

De sua mão, Espírito Constante,<br />

Gênio de Alcides, que de negros monstros<br />

Despeja o mundo e enxuga o pranto à pátria.<br />

Tem por despojos cabeludas peles<br />

De ensanguentados e fam<strong>in</strong>tos lobos<br />

E fi ngidas raposas. (Canto III, p. 66-7)<br />

O fragmento refere-se à expulsão da Ordem de Portugal, em que os <strong>in</strong>acianos<br />

são representados sob a metáfora de “fam<strong>in</strong>tos lobos” e “fi ngidas<br />

raposas”, enquanto o poder, sob o nome de Pombal, vem personifi cado em<br />

“Espírito Constante” e “Gênio de Alcides”. A Ordem é <strong>in</strong>terpretada, metonimicamente,<br />

como “fi lha da ambição”, nas quatro fi guras fem<strong>in</strong><strong>in</strong>as e<br />

uma mascul<strong>in</strong>a que se podem ver no excerto em destaque:<br />

Transportam a Ignorância e a magra Inveja,<br />

E envolta em negros e compridos panos<br />

A Discórdia, o Furor. A torpe velha<br />

Hipocrisia vagarosamente<br />

Atrás deles cam<strong>in</strong>ha; e <strong>in</strong>da duvida<br />

Que houvesse mão que se atrevesse a tanto. (Canto III, p.68-9, grifos nossos)<br />

Tal processo de metonimização no poema sugere que a própria Ordem<br />

é responsável pela Guerra Guaranítica. Assim afi rma Teixeira (1996, p.67):<br />

“os jesuítas são déspotas, escravizam os índios e desrespeitam a ordem justa<br />

do Estado”. Diante disso, é possível verifi car que a voz de Andrade, ao<br />

exclamar: “Ai tanto custas, ambição de império!” (ibidem, p.21), defi ne a<br />

l<strong>in</strong>ha dorsal do poema, em que os <strong>in</strong>acianos são tratados com frieza, como<br />

um <strong>in</strong>imigo a ser destruído, enquanto o autor, Basílio, “não os pretende<br />

destruir, propriamente. Deseja apenas enraivecer-se poeticamente” (ibidem,<br />

p.67). Visto desse modo, o índio é agredido com mais <strong>in</strong>tensidade por<br />

Gomes Freire, embora esse culpe os jesuítas por toda a situação vivenciada<br />

na guerra, o que impele a leitura do poema como um canto de ressentimento<br />

aos vilões opressores, guiado pela voz irritada do poeta, que problemati-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 131<br />

za, além da devastação dos jesuítas, o extermínio gerado duplamente pelo<br />

Estado e pela Igreja na América.<br />

No Canto IV, tal qual nos demais quadros, não há uma única personagem<br />

atuando. São diferentes guerreiros, como vistos no episódio da batalha,<br />

em que são destacados o heroísmo e a mutilação física dos índios, aludida,<br />

esta última, na imagem dos “lagos de sangue”. A presença tópica do sangue<br />

se faz em dois episódios do penúltimo canto, em que o corpo <strong>in</strong>sepulto de<br />

L<strong>in</strong>dóia é lançado às feras e aves fam<strong>in</strong>tas pelo padre Balda, e, em seguida,<br />

o mesmo padre queima viva a feiticeira <strong>in</strong>dígena. Ao lado da imagem reiterante<br />

do sangue, a culpa atribuída aos jesuítas é impressa, pela lógica da<br />

narrativa, na caricatura da transposição do costume europeu de punir os<br />

rebelados com a fogueira. Dessa forma, punir Tanajura por manter-se fi el<br />

à sua religião constitui-se, ao lado dos castigos corporais, prisões e jejuns, o<br />

procedimento autoritário religioso, que classifi cava como bruxaria a prática<br />

dos cultos primitivos.<br />

Se no Canto II encontra-se o ponto culm<strong>in</strong>ante da ação de Andrade,<br />

como ápice da face heroica da batalha sob seu comando, no Canto IV sua<br />

fi gura dilui-se para dar lugar às imagens voltadas aos índios nas aldeias,<br />

emerg<strong>in</strong>do alguns nomes mais importantes entre eles, como é o caso de<br />

L<strong>in</strong>dóia, com dest<strong>in</strong>o trágico, e Tanajura, queimada na fogueira.<br />

Balda, padre em destaque no canto, é, segundo a nota do autor, o que<br />

mais entusiasmou os índios à rebelião. O perfi l dado a ele deriva da autoridade<br />

que os padres exerciam sobre os nativos nas ações em que estes eram<br />

punidos com castigos, sem se queixarem de qualquer ressentimento. Frente<br />

às ações punitivas dos demais missionários, Balda é chamado de “bom padre”,<br />

no entanto, abriga, sob sua mansidão aparente, o dom implacável de<br />

escravizar. Dentre os episódios fomentados por ele, destaca-se o da morte<br />

de Tanajura:<br />

Balda, que há muito espera o tempo e o modo<br />

De alta v<strong>in</strong>gança, e encobre a dor no peito,<br />

Excita os povos a exemplar castigo<br />

Na desgraçada velha.<br />

[...]<br />

Parte, deixando atada a triste velha<br />

Dentro de uma choupana, e v<strong>in</strong>gativo


132 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Quis que por ela começasse o <strong>in</strong>cêndio.<br />

Ouviam-se de longe os altos gritos<br />

Da miserável Tanajura. Aos ares<br />

Vão globos espessíssimos de fumo,<br />

Que deixa ensanguentada a luz do dia. (Canto IV, p.85-6)<br />

Afora o <strong>in</strong>cêndio da aldeia, em virtude da aproximação das tropas lusoespanholas,<br />

o episódio dos festejos em torno do casamento de L<strong>in</strong>dóia com<br />

Baldetta colore o Canto IV com as cores do desfi le preparado por Balda. A<br />

grandiosidade das cores não at<strong>in</strong>ge o que fora visto no Canto I, quando as<br />

tropas foram apresentadas à Cataneo. Aqui são guerreiros <strong>in</strong>dígenas, que,<br />

de forma harmoniosa, desfi lam com suas t<strong>in</strong>turas e seus dotes. Despontam<br />

Cobé, “disforme e feio” (ibidem, p.78); P<strong>in</strong>dó, “que sucedera a Sepé no<br />

lugar” (ibidem, p.78); Caitutu, “de régio sangue e de L<strong>in</strong>dóia irmão” (ibidem,<br />

p.79), os “alegres guaranis de amável gesto”, antigo grupo de Cacambo,<br />

sob o comando de Baldetta; Tatu-Guaçu, “feroz”, que “vem guiando/<br />

Tropel confuso de cavaleria” (ibidem, p.79-80). Toda a movimentação de<br />

cenário dá-se em razão do casamento de L<strong>in</strong>dóia, que não ocorre pela renúncia<br />

que faz em memória de seu esposo. As cenas molduradas no Canto<br />

IV, em que L<strong>in</strong>dóia tem presença marcante, estabilizam o “processo híbrido<br />

do poema”, segundo Teixeira (1996, p.77), uma vez que “substitui a<br />

identidade épica pelo variado mosaico dos casos romanescos”.<br />

O matiz das imagens devastadoras, que a batalha encerrou, contrapõe<br />

à delicadeza com que o poema fi gura a morte de L<strong>in</strong>dóia, em que a suavidade<br />

do estilo reserva. O poema tece nas bordas do teor ideológico, que o<br />

aspecto épico alcança, os pontos que alicerçam o poema romântico, em que<br />

os índios fi guram como humanos e geradores de emoções, como se pode<br />

observar no excerto:<br />

Os olhos, em que Amor re<strong>in</strong>ava, um dia,<br />

Cheios de morte; e muda aquela língua<br />

Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes<br />

Contou a larga história de seus males.<br />

Nos olhos de Caitutu não sofre o pranto,<br />

E rompe em profundíssimos suspiros,<br />

Lendo na testa da fronteira gruta


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 133<br />

De sua mão já trêmula gravado<br />

O alheio crime e a voluntária morte.<br />

E por todas as partes repetido<br />

O suspirado nome de Cacambo.<br />

Inda conserva o pálido semblante<br />

Um não sei quê de magoado e triste,<br />

Que os corações mais duros enternece<br />

Tanto era bela no seu rosto a morte! (Canto IV, p.83)<br />

O Canto IV encerra-se com o <strong>in</strong>cêndio à aldeia em que se deu a cena de<br />

L<strong>in</strong>dóia e com a chegada das tropas no grande templo em que as imagens<br />

de culto cristão foram destruídas, restando apenas, na abóboda do templo<br />

de São Miguel, a p<strong>in</strong>tura alegórica, que será assunto no Canto V. A p<strong>in</strong>tura<br />

tem como temática a Companhia de Jesus, sob a forma de uma entidade<br />

num trono, a que submete vilas, cidades, províncias e re<strong>in</strong>os: “t<strong>in</strong>ha de um<br />

lado/Dádivas corruptoras: do outro lado/Sobre os brancos altares suspendidos/Agudos<br />

ferros, que gotejam sangue” (ibidem, p.91), em referência<br />

aos crimes e corrupções praticados pelos jesuítas, como a menção aos reis da<br />

França: “um dos Henriques perde a vida e o re<strong>in</strong>o./E cai por esta mão, oh<br />

céus! Debalde/Rodeado dos seus o outro Henrique” (ibidem, p.92).<br />

Os jesuítas são representados “de dous em dous: ou sobre os coroados/<br />

Montes do Tejo; ou nas remotas praias,/Que habitam as p<strong>in</strong>tadas Amazonas”,<br />

dispostos a dom<strong>in</strong>ar o comércio e a navegação dos povos. Além disso,<br />

os nativos são fi gurados em estado de submissão: “com um gesto <strong>in</strong>ocente<br />

aos pés do trono/Via-se a Liberdade Americana/Que arrastando enormíssimas<br />

cadeias/Suspira, e os olhos e a <strong>in</strong>cl<strong>in</strong>ada testa/Nem levanta, de humilde<br />

e de medrosa” (ibidem, p.93). Sob o pa<strong>in</strong>el <strong>in</strong>stala-se, mais uma vez,<br />

como em todo o poema, a m<strong>in</strong>iaturização de uma parcela da história que<br />

se torna situação-símbolo da colonização europeia na América. Essa característica<br />

dá ao Canto V a possibilidade de falar acerca da Companhia, mas<br />

também faz notável que, onde muitos poetas viram apenas Brasil, Basílio<br />

viu pr<strong>in</strong>cipalmente Europa, colocando os elementos num mesmo espaço<br />

cenográfi co, para <strong>in</strong>teragirem com o universo híbrido que pontuou em todo<br />

o poema.<br />

A contemplação da p<strong>in</strong>tura revela, também, os planos do general em<br />

relação aos povos viz<strong>in</strong>hos que se encontravam sob a tutela dos jesuítas:


134 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Enquanto os nossos<br />

Apascentam a vista na p<strong>in</strong>tura,<br />

Nova empresa e outro gênero de guerra<br />

Em si resolve o general famoso.<br />

Apenas esperou que ao sol brilhante<br />

Desse as costas de todo a opaca terra,<br />

Precipitou a marcha e no outro povo<br />

Foi sorprender os índios. (Canto V, p.97-8)<br />

A<strong>in</strong>da que se considere o fator <strong>in</strong>dicado anteriormente, em que o nativo<br />

ocupa o posto de herói, comparado ao heroísmo do português Andrade, é<br />

este que fi gura no último canto como o que ampara o nativo aldeado, ao<br />

mesmo tempo em que o submete à humilhação, fazendo ruir a “República<br />

comunista cristã dos Guaranis” diante da adoração ao rei:<br />

Reprime a militar licença, e a todos<br />

Co’a grande sombra ampara: alegre e brando<br />

No meio da vitória. Em roda o cercam<br />

(Nem se enganaram) procurando abrigo<br />

Chorosas mães, e fi lhos <strong>in</strong>ocentes,<br />

E curvos pais e tímidas donzelas.<br />

Sossegado o tumulto e conhecidas<br />

As vias astúcias de Tedeu e Balda,<br />

Cai a <strong>in</strong>fame república por terra.<br />

Aos pés do general as toscas armas<br />

Já tem deposto o rude Americano,<br />

Que reconhece as ordens e se humilha,<br />

E a imagem do seu rei prostrado adora. (Canto V, p.99)<br />

Lê-se, na arquitetura das imagens e na posição do templo da aldeia, o<br />

aspecto contraditório que percorre a primazia do poder radical e hierarquizante<br />

da Companhia: de um lado o templo, com sua organização teocrática<br />

e mediavalizante, bem como os aposentos dos padres construídos de<br />

pedras, conforme o padrão das igrejas; de outro, as choupanas negras pela<br />

fumaça, de cômodo único, em que se acomodam os nativos, asfi xiados pela<br />

ideologia feudal europeia, como se visualiza no “lamento-síntese”, feito por


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 135<br />

Cacambo diante de Andrade, em que se marca nitidamente o lugar de onde<br />

fala o índio:<br />

Essa riqueza<br />

Que cobre os templos dos benditos padres,<br />

Fruto da sua <strong>in</strong>dústria e do comércio<br />

Da folha e peles, é riqueza sua.<br />

Com o arbítrio dos corpos e das almas<br />

O céu lha deu em sorte. A nós somente<br />

Nos toca arar e cultivar a terra,<br />

Sem outra paga mais que o repartido<br />

Por mãos escassas mísero sustento.<br />

Podres choupanas, e algodões tecidos,<br />

E o arco, e as setas, e as vistosas penas<br />

São as nossas fantásticas riquezas.<br />

Muito suor, e pouco ou nenhum fasto. (Canto II, p.42-3)<br />

Reun<strong>in</strong>do os episódios em que os nativos são expostos e somados a esse<br />

excerto-expoente, é possível atualizar um dos quadros aviltantes da história<br />

da humanidade, como uma chaga que se vai renovando a cada cultura tocada<br />

pela ambição mercantilista. Para Teixeira (1996, p.97), “essa é a essência<br />

do verdadeiro assunto de O Uraguay, ou seja, a agonia de um povo e a perdição<br />

de sua cultura diante das forças imbatíveis v<strong>in</strong>das de fora”.<br />

A<strong>in</strong>da que o homem americano e a natureza local não confi ram totalmente<br />

o caráter de brasilidade ao poema, estabelecem uma ligação com a<br />

vida social da Colônia. Justifi cam, assim, o aspecto idealizante que o percorre,<br />

colocando o nativo<br />

em igualdade com o homem branco – igualdade formal, que não impediu a sua<br />

efetiva exploração e a sua real situação de <strong>in</strong>ferioridade – e se traduziu literariamente<br />

na sua fi guração idealizada e, em geral, expressa através de formas da<br />

utopia europeia do bom selvagem. Por sua vez, o enfrentamento do colonizador<br />

com um espaço que era preciso ocupar e domesticar transfi gurou-se numa literatura<br />

de exaltação da grandiosidade e riqueza da terra americana. (Chaves,<br />

1996, p.466)


136 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Isso explicita, de certa forma, a ausência dos caracteres físicos, presentes<br />

nos textos anteriores, que ora são suprimidos para não marcar a diferença<br />

entre <strong>in</strong>vasor e <strong>in</strong>vadido. O embrião do “bom selvagem”, ao molde brasileiro,<br />

não obscurece, no entanto, elementos que contradizem o pa<strong>in</strong>el harmonioso<br />

da <strong>in</strong>tegração entre Metrópole e Colônia, e deixa visível a violenta<br />

ação dos jesuítas sobre a cultura nativa, permit<strong>in</strong>do ao poema de Basílio da<br />

Gama descort<strong>in</strong>ar o “império” que a Companhia criara na América, bem<br />

como a opressão e miséria a que foram submetidos os <strong>in</strong>dígenas.<br />

Mesmo que a heroicidade <strong>in</strong>dígena seja posta como <strong>in</strong>ício de um projeto<br />

maior, fi rmado no romantismo, é possível visualizar que a matéria histórica<br />

contribui para tecer, ponto a ponto, no <strong>in</strong>terior do poema, a elim<strong>in</strong>ação das<br />

personagens <strong>in</strong>dígenas, como se pôde ver nos episódios pr<strong>in</strong>cipais, em que<br />

Sepé, Cacambo e L<strong>in</strong>dóia desaparecem dos versos, para deixar em evidência<br />

a luta pela terra e pelo direito de permanência sobre ela. Não é o índio o<br />

motivo pr<strong>in</strong>cipal do poema, mas confi gura-se no decorrer dele como ponta<br />

de lança para a <strong>in</strong>terpretação da brasilidade, emprestando seus costumes,<br />

hábitos e crenças à estampa, na qual fi gura o aniquilamento de sua cultura,<br />

camufl ado no genocídio praticado pela Ordem e pelo Estado em nome da<br />

construção da pátria. Não se constitui, portanto, um herói de glória imortal,<br />

tal qual a epopeia <strong>in</strong>dividualista; revela-se, antes de tudo, matriz para<br />

a <strong>in</strong>trodução de personagens e de ações no exótico americanismo, que ora<br />

desliza do primitivismo, para moldurar o choque entre as culturas, acentuando<br />

o aspecto de epopeia dos vencidos que o poema verbaliza.<br />

Canto-referência<br />

Canto II<br />

Depois de haver marchado muitos dias<br />

Enfi m junto a um ribeiro, que atravessa<br />

Sereno e manso um curvo e fresco vale,<br />

Acharam, os que o campo descobriram,<br />

Um cavalo anelante, e o peito e as ancas<br />

Coberto de suor e branca escuma.<br />

Temos perto o <strong>in</strong>imigo: aos seus dizia


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 137<br />

O esperto General: Sei que costumam<br />

Trazer os índios um volúvel laço,<br />

Com o qual tomam no espaçoso campo<br />

Os cavalos que encontraram; e rendidos<br />

Aqui e ali com o cont<strong>in</strong>uado<br />

Galopear, a quem primeiro os segue<br />

Deixam os seus, que entanto se restauram.<br />

Nem se enganou; porque ao terceiro dia<br />

Formados os achou sobre uma larga<br />

Ventajosa col<strong>in</strong>a, que de um lado<br />

É coberta de um bosque e de outro lado<br />

Corre escarpada e sobranceira a um rio.<br />

Notava o General o sítio forte,<br />

Quando Meneses, que viz<strong>in</strong>ho estava,<br />

Lhe diz: Nestes desertos encontramos<br />

Mais do que se esperava, e me parece<br />

Que só por força de armas poderemos<br />

Inteiramente sujeitar os povos.<br />

Torna-lhe o General: tentem-se os meios<br />

De brandura e de amor; se isto não basta,<br />

Farei a meu pesar o último esforço.<br />

Mandou, dizendo assim, que os índios [todos<br />

Que t<strong>in</strong>ha prisioneiros no seu campo<br />

Fossem vestidos das formosas cores,<br />

Que a <strong>in</strong>culta gente simples tanto adora.<br />

Abraçou-os a todos, como fi lhos,<br />

E deu a todos liberdade. Alegres<br />

Vão buscar os parentes e os amigos,<br />

E a uns e a outros contam a grandeza<br />

Do excelso coração e peito nobre<br />

Do General famoso, <strong>in</strong>victo Andrade.<br />

Já para o nosso campo vêm descendo,<br />

Por mandado dos seus, dous dos mais nobres.<br />

Sem arcos, sem aljavas; mas as testas<br />

De várias e altas penas coroadas,<br />

E cercadas de penas as c<strong>in</strong>turas,


138 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

E os pés, e os braços e o pescoço. Entrara<br />

Sem mostras nem s<strong>in</strong>al de cortesia<br />

Sepé no pavilhão. Porém Cacambo<br />

Fez, ao seu modo, cortesia estranha,<br />

E começou: Ó General famoso,<br />

Tu tens à vista quanta gente bebe<br />

Do soberbo Uraguai a esquerda margem.<br />

Bem que os nossos avôs fossem despojo<br />

Da perfídia de Europa, e daqui mesmo<br />

Co’s não v<strong>in</strong>gados ossos dos parentes<br />

Se vejam branquejar ao longe os vales,<br />

Eu, desarmado e só, buscar-te venho.<br />

Tanto espero de ti. E enquanto as armas<br />

Dão lugar à razão, senhor, vejamos<br />

Se se pode salvar a vida e o sangue<br />

De tantos desgraçados. Muito tempo<br />

Pode a<strong>in</strong>da tardar-nos o recurso<br />

Com o largo oceano de permeio,<br />

Em que os suspiros dos vexados povos<br />

Ordem o alento. O dilatar-se a entrega<br />

Está nas nossas mãos, até que um dia<br />

Informados os reis nos restituam<br />

A doce antiga paz. Se o rei de Espanha<br />

Ao teu rei quer dar as terras com mão larga<br />

Que lhe dê Buenos Aires, e Correntes<br />

E outras, que tem por estes vastos climas;<br />

Porém não pode dar-lhes os nossos povos.<br />

E <strong>in</strong>da no caso que pudesse dá-los,<br />

Eu não sei se o teu rei sabe o que troca<br />

Porém tenho receio que o não saiba.<br />

Eu já vi a Colônia portuguesa<br />

Na tenra idade dos primeiros anos,<br />

Quando meu velho pai cós nossos arcos<br />

Às sitiadoras tropas castelhanas<br />

Deu socorro, e mediu convosco as armas.<br />

E quererão deixar os portugueses


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 139<br />

A praça, que avassala e que dom<strong>in</strong>a<br />

O gigante das águas, e com ela<br />

Toda a navegação do largo rio,<br />

Que parece que pôs a natureza<br />

Para servi-vos de limite e raia?<br />

Será; mas não creio. E depois disto<br />

As camp<strong>in</strong>as que vês e a nossa terra<br />

Sem o nosso suor e os nossos braços<br />

De que serve ao teu rei? Aqui não temos<br />

Nem altas m<strong>in</strong>as, nem caudalosos<br />

Rios de areias de ouro. Essa riqueza<br />

Que cobre os templos dos benditos padres,<br />

Fruto de sua <strong>in</strong>dústria e do comércio<br />

Da folha e peles, é riqueza sua.<br />

Com o arbítrio dos corpos e das almas<br />

O céu lha deu em sorte. A nós somente<br />

Nos toca arar e cultivar a terra,<br />

Sem outra paga mais que o repartido<br />

Por mãos escassas mísero sustento.<br />

Podres choupanas, e algodões tecidos,<br />

E o arco, e as setas, e as vistosas penas<br />

São as nossas fantásticas riquezas<br />

Muito suor, e pouco ou nenhum fasto.<br />

Volta, senhor, não passes adiante.<br />

Que mais queres de nós? Não nos obrigue<br />

A resistir-te em campo aberto. Pode<br />

Custar-te muito sangue o dar um passo.<br />

Não queiras ver se cortam nossas frechas.<br />

Vê que o nome dos reis não nos assusta.<br />

O teu está muito longe; e nós os índios<br />

Não temos outro rei mais do que os padres.<br />

Acabou de falar; e assim responde<br />

O ilustre General: Ó alma grande,<br />

Digna de combater por melhor causa,<br />

Vê que te enganam: risca da memória<br />

Vãs, funestas imagens, que alimentam


140 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Envelhecidos mal fundados ódios.<br />

Por mim te fala o rei: ouve-me, atende,<br />

E verás uma vez nua a verdade.<br />

Fez-vos livres o céu, mas se o ser livres<br />

Era viver errantes e dispersos,<br />

Sem companheiros, sem amigos, sempre<br />

Com as armas na mão em dura guerra,<br />

Ter por justiça a força, e pelos bosques<br />

Viver do acaso, eu julgo que <strong>in</strong>da fora<br />

Melhor a escravidão que a liberdade.<br />

Mas nem a escravidão, nem a miséria<br />

Quer o benigno rei que o fruto seja<br />

Da sua proteção. Esse absoluto<br />

Império ilimitado, que exercitam<br />

Em vós os padres, como vós sois escravos.<br />

O rei é vosso pai: quer-vos felices.<br />

Sois livres, como eu sou; e sereis livres,<br />

Não sendo aqui, em outra qualquer parte. Mas<br />

deveis entregar-nos estas terras.<br />

Ao bem público cede o bem privado.<br />

O sossego de Europa assim o pede.<br />

Assim manda o rei. Vós sois rebeldes,<br />

Se não obedeceis; mas os rebeldes,<br />

Eu sei que não sois vós, são os bons padres,<br />

Que vos dizem a todos que sois livres,<br />

E se servem de vós como escravos.<br />

Armados de orações vos põem no campo<br />

Contra o fero trovão da artilheria,<br />

Que os muros arrebata; e se contentam<br />

De ver de longe a guerra: sacrifi cam,<br />

Avarentos do seu, o vosso sangue.<br />

Eu quero à vossa vista despojá-los<br />

Do tirano domínio destes climas,<br />

De que a vossa <strong>in</strong>ocência os faz senhores.<br />

Dizem-vos que não tendes rei? Cacique,<br />

E o juramento de fi delidade?


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 141<br />

Porque está longe, julgas que não pode<br />

Castigar-vos a vós, e castigá-los?<br />

Generoso <strong>in</strong>imigo, é tudo engano.<br />

Os reis estão na Europa; mas adverte<br />

Que estes braços, que vês, são os seus braços.<br />

Dentro de pouco tempo um meu aceno<br />

Vai cobrir este monte e essas camp<strong>in</strong>as<br />

De semivivos palpitantes corpos<br />

De míseros mortais, que <strong>in</strong>da não sabem<br />

Por que causa o seu sangue vai agora<br />

Lavar a terra e recolher-se em lagos.<br />

Não me chames cruel: enquanto é tempo<br />

Pensa e resolve, e, pela mão tomando<br />

Ao nobre embaixador, o ilustre Andrade<br />

Intenta reduzi-lo por brandura.<br />

E o índio, um pouco pensativo, o braço<br />

E a mão retira; e, suspirando, disse:<br />

Gentes de Europa, nunca vos trouxera<br />

O mar e o vento a nós. Ah! não debalde<br />

Estendeu entre nós a natureza<br />

Todo esse plano espaço imenso de águas.<br />

Prosseguia talvez; mas o <strong>in</strong>terrompe<br />

Sepé, que entra no meio, e diz: Cacambo<br />

Fez mais do que devia; e todos sabem<br />

Que estas terras, que pisas, o céu livres<br />

Deu a nossos avôs; nós também livres<br />

As recebemos dos antepassados.<br />

Livres as hão de herdar nossos fi lhos.<br />

Desconhecemos, detestamos jugo<br />

Que não seja o do céu, por mão dos padres.<br />

As frechas partirão nossas contendas<br />

Dentro de pouco tempo: e o vosso Mundo,<br />

Se nele um resto houver de humanidade,<br />

Julgará entre nós; se defendemos<br />

Tu a <strong>in</strong>justiça, e nós o Deus e a Pátria.<br />

Enfi m quereis a guerra, e tereis a guerra.


142 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Lhe torna o general: Podeis parti-vos,<br />

Que tendes livres o passo. Assim dizendo,<br />

Manda dar a Cacambo rica espada<br />

De tortas guarnições de prata e ouro,<br />

A que <strong>in</strong>da mais valor dera o trabalho.<br />

Um bordado chapéu e larga c<strong>in</strong>ta<br />

Verde, e capa de verde e fi no pano,<br />

Com bandas marelas e encarnadas.<br />

E mandou que a Sepé se desse um arco<br />

De pontas de marfi m; e ornada e cheia<br />

De novas setas a famosa aljava:<br />

A mesma aljava que deixara um dia,<br />

Quando envolto em seu sangue, e vivo apenas,<br />

Sem arco e sem cavalo, foi trazido<br />

Prisioneiro de guerra a nosso campo.<br />

Lembrou-se o índio da passada <strong>in</strong>júria<br />

E sobraçando a conhecida aljava<br />

Lhe disse: Ó General, eu te agradeço<br />

As setas que medas e te prometo<br />

Mandar-tas bem depressa uma por uma<br />

Entre nuvens de pós no ardor da guerra.<br />

Tu as conhecerás pelas feridas,<br />

Ou porque rompem com mais força os ares.<br />

Despediram-se os índios, e as esquadras<br />

Se vão dispondo em ordem de peleja,<br />

Como mandava o General. Os lados<br />

Cobrem as tropas de cavaleria,<br />

E estão no centro fi rmes os <strong>in</strong>fantes.<br />

Qual fera boca de libréu raivoso,<br />

De lisos e alvos dentes guarnecida,<br />

Os índios ameaça a nossa frente<br />

De agudas baionetas rodeada.<br />

Fez a trombeta o som da guerra. Ouviram<br />

Aqueles montes pela vez primeira<br />

O som da caixa portuguesa; e viram<br />

Pela primeira vez aqueles ares


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 143<br />

Desenroladas as reais bandeiras.<br />

Saem das grutas pelo chão cavadas,<br />

Em que até li de <strong>in</strong>dústria se escondiam.<br />

Nuvens de índios, e a vista duvidava<br />

Se o terreno os bárbaros nasciam.<br />

Qual já no tempo antigo o errante Cadmo<br />

Dizem que vira da fecunda terra<br />

Brotar a cruelíssima seara.<br />

Erguem todos um bárbaro alarido,<br />

E sobre os nossos cada qual encurva<br />

Mil vezes, e mil vezes sota o arco,<br />

Um chuveiro de setas desped<strong>in</strong>do.<br />

Gentil mancebo presumido e néscio,<br />

A quem a popular lisonja engana,<br />

Vaidoso pelo campo discorria,<br />

Fazendo ostentação dos seus penachos.<br />

Impert<strong>in</strong>ente e de família escura,<br />

Mas que t<strong>in</strong>ha o favor dos santos padres,<br />

Contam, não sei se é certo, que o tivera<br />

A estéril mãe por orações de Balda.<br />

Chamaram-no Baldetta por memória.<br />

T<strong>in</strong>ha um cavalo de manchada pele<br />

Mais vistoso que forte: a natureza<br />

Um ameno jardim por todo o corpo<br />

Lhe debuxou, e era jardim chamado.<br />

O padre na saudosa despedida<br />

Deu-lho em s<strong>in</strong>al de amor; e nele agora<br />

Girando ao largo com <strong>in</strong>certos tiros<br />

Muitos feria, e a todos <strong>in</strong>quietava.<br />

Mas se então se cobriu de eterna <strong>in</strong>fâmia,<br />

A glória tua foi, nobre Gerardo.<br />

Tornava o índio jactancioso, quando<br />

Lhe sai Gerardo ao meio da carreira:<br />

Disparou-lhe a pistola, e fez-lhe a um tempo<br />

Co’refl exo do sol luzir a espada.<br />

Só de vê-lo se assusta o índio, e fi ca


144 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Qual quem ouve o trovão e espera o raio.<br />

Treme, e o cavalo aos seus volta, e pendente<br />

A um lado e a outro de cair acena.<br />

Deixando aqui e ali por todo o campo<br />

Entornadas as setas; pelas costas,<br />

Flutuavam as penas; e fug<strong>in</strong>do<br />

Soltas da mão as rédeas ondeavam.<br />

Insta Gerardo, e quase o ferro o alcança,<br />

Quando Tatu-Guaçu, o mais valente<br />

De quantos índios viu a nossa idade,<br />

Armado o peito de escamosa pele<br />

De um jacaré disforme, que matara,<br />

Se atravessa diante. Intenta o nosso<br />

Com a outra pistola abrir cam<strong>in</strong>ho,<br />

E em vão o <strong>in</strong>tenta: a verde-negra pele,<br />

Que ao índio o largo peito orna e defende,<br />

Formou a natureza impenetrável.<br />

Co’a espada o fere no ombro e na cabeça<br />

E as penas corta, de que o campo espalha.<br />

Separa os dous fortíssimos guerreiros<br />

A multidão dos nossos, que atropela<br />

Os índios fugitivos: tão depressa<br />

Cobrem o campo os mortos e os feridos,<br />

E por nós a vitória se declara.<br />

Precipitadamente as armas deixam,<br />

Nem resistem mais tempo às esp<strong>in</strong>gardas.<br />

Vale-lhe a costumada ligeireza,<br />

Debaixo lhe desaparece a terra<br />

E voam, que o temor aos pés põe asas,<br />

Clamando ao céu e encomendando a vida<br />

Às orações dos padres. Desta sorte<br />

Talvez, em outro clima, quando soltam<br />

A branca neve eterna os velhos Alpes,<br />

Arrebata a corrente impetuosa<br />

Co’as choupanas o gado. Afl ito e triste<br />

Se salva o lavrador nos altos ramos,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 145<br />

E vê levar-lhe a cheia os bois e o arado.<br />

Poucos índios no campo mais famosos,<br />

Serv<strong>in</strong>do de reparo aos fugitivos,<br />

Sustentam todo o peso da batalha,<br />

Apesar da fortuna. De uma parte<br />

Tatu-Guaçu mais forte na desgraça<br />

Já banhado em seu sangue pretendia<br />

Por seu braço ele só pôr termo à guerra.<br />

Caitutu de outra parte altivo e forte<br />

Opunha o peito à fúria do <strong>in</strong>imigo,<br />

E servia de muro à sua gente.<br />

Fez proezas Sepé naquele dia.<br />

Conhecido de todos, no perigo<br />

Mostrava descoberto o rosto e o peito<br />

Forçando os seus co’exemplo e co’as palavras<br />

Já t<strong>in</strong>ha despejado a aljava toda,<br />

E destro em atirar, e irado e forte<br />

Quantas setas da mão voar fazia<br />

Tantas na nossa gente ensangüentava.<br />

Setas de novo agora recebia,<br />

Para dar outra vez pr<strong>in</strong>cípio à guerra.<br />

Quando o ilustre espanhol que governava<br />

Montevidio, alegre, airoso e pronto<br />

As rédeas volta ao rápido cavalo<br />

E por cima de mortos e feridos,<br />

Que lutavam co’a morte, o índio afronta.<br />

Sepé, que o viu, t<strong>in</strong>ha tomado a lança<br />

E atrás deitando a um tempo o corpo e o [braço<br />

A despediu. O braço e o corpo<br />

Ao ligeiro espanhol o ferro passa:<br />

Rompe, sem fazer dano, a terra dura<br />

E treme fora muito tempo a hástea.<br />

Mas de um golpe a Sepé na testa e peito<br />

Fere o governador, e as rédeas corta<br />

Ao cavalo feroz. Foge o cavalo,<br />

E leva <strong>in</strong>voluntário e ardendo em ira


146 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Por todo o campo a seu senhor; e ou fosse<br />

Que regada de sangue aos pés cedia<br />

A terra, ou que pusesse as mãos em falso,<br />

Rodou sobre si mesmo, e na caída<br />

Lançou longe a Sepé. Rende-te ou morre,<br />

Grita o governador; e o tape altivo,<br />

Sem responder, encurva o arco, e a seta<br />

Despede, e nela lhe prepara a morte.<br />

Enganou-se esta vez. A seta um pouco<br />

Decl<strong>in</strong>a, e açouta o rosto a leve pluma.<br />

Não quis deixar o vencimento <strong>in</strong>certo<br />

Por mais tempo o espanhol, e arrebatado<br />

Com a pistola lhe fez tiro aos peitos.<br />

Era pequeno o espaço, e fez o tiro<br />

No corpo desarmado estrago horrendo.<br />

Viam-se dentro pelas rotas costas<br />

Palpitar as entranhas. Quis três vezes<br />

Levantar-se do chão: caiu três vezes,<br />

E os olhos já nadando em fria morte<br />

Lhe cobriu sombra escura e férreo sono.<br />

Morto o grande Sepé, já não resistem<br />

As tímidas esquadras. Não conhece<br />

Leis o temor. Debalde está diante,<br />

E anima os seus o rápido Cacambo.<br />

T<strong>in</strong>ha-se retirado da peleja<br />

Caitutu mal ferido; e do seu corpo<br />

Deixa Tatu-Guaçu por onde passa<br />

Rios de sangue. Ou outros mais valentes<br />

Ou eram mortos, ou feridos. Pende<br />

O ferro vencedor sobre os vencidos.<br />

Ao número, ao valor cede Cacambo:<br />

Salva os índios que pode, e se retira.<br />

(p.37-54)


PARTE II<br />

PIGMENTOS DA NACIONALIDADE:<br />

VIAS DE ACESSO AO ÍNDIO TRANSFIGURADO


Os textos reunidos nesta Parte possuem uma s<strong>in</strong>gular relação que os<br />

liga a um momento privilegiado da cultura brasileira, em que se abrem as<br />

arestas para realizar um duplo movimento: contemplar-se e deixar-se contemplar<br />

pelo estrangeiro. Dessa forma, os autores, cada um a seu tempo,<br />

tomaram a matéria-prima local como diretriz de um projeto alicerçado nos<br />

ares nacionais, mas que não presc<strong>in</strong>dia dos assuntos dos grandes centros.<br />

Ao lado do aparato histórico, marcado pela Independência política do<br />

país, o romantismo brasileiro relê a <strong>in</strong>fância da literatura pelo viés histórico-nacionalista,<br />

apontando para o futuro da nação a partir de suas raízes,<br />

recuperadas nas lendas <strong>in</strong>dígenas e em seus mitos, que deslocam para o eixo<br />

tríplice natureza, etnia e língua o espaço de construção do pr<strong>in</strong>cípio regulador,<br />

capaz de <strong>in</strong>staurar a literatura nacional. A natureza, posta diante dos<br />

conquistadores do Novo Mundo como um prolongamento das primeiras<br />

descrições feitas pelos viajantes, <strong>in</strong>screve-se como elemento perturbador<br />

de uma ordem preestabelecida e se converte em metáfora do nativismo,<br />

responsável pelo amálgama do homem primitivo ao universo estético. Ao<br />

mesmo tempo, toma espessura e signifi cado, ao tencionar, paralelamente<br />

aos demais aspectos, o conjunto ideológico que lhe assegura o caráter de<br />

pilar da nacionalidade.<br />

Um dos fatores relevantes na constituição do acervo literário da época<br />

é o índio, tomado, no conjunto dos textos, como o elemento que encerra<br />

o próprio emblema da terra. Ler o <strong>in</strong>dígena, para os autores românticos¸<br />

signifi ca ler a América, com sua fi sionomia mesclada pela presença do colonizador<br />

e de seu habitante natural. O motivo de ter sido eleito como re-


150 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

presentante de uma nova nação, segundo Proença (1959, p.51), foi que “o<br />

índio não se conformou à escravidão, fugiu, morreu, revoltou-se, ou foi servo<br />

<strong>in</strong>capaz”. Essas constatações foram relevantes o bastante para que o negro<br />

fosse excluído do perfi l necessário para ocupar tal posto, e <strong>in</strong>dicariam,<br />

para o movimento nativista, traços importantes na composição de um herói<br />

desligado da metrópole e <strong>in</strong>tegrado livremente à natureza. Assim, conquistador<br />

e conquistado desnudam-se diante das lentes, numa impresc<strong>in</strong>dível<br />

busca pela existência de um passado que recomponha seu papel na trajetória<br />

da colonização.<br />

Em I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, o cunho apocalíptico, presente<br />

no ritual de morte do guerreiro, confi gura o ritmo do poema que traduz a<br />

agonia do <strong>in</strong>dígena diante do estreitamento das fronteiras de sua cultura.<br />

Assim, visto de modo panorâmico, e não como uma personagem <strong>in</strong>dividual,<br />

o índio gonçalv<strong>in</strong>o ganha perfi l de herói humano, ao revelar, por meio<br />

da fraqueza e do choro, um lado antagônico do clássico herói oriundo das<br />

epopeias.<br />

Alicerçado na nobreza das ações do guerreiro em meio ao ritual de sacrifício,<br />

o poema compõe-se de um conjunto de vozes que emolduram, a cada<br />

cena, uma vertente da cultura defl orada pelo conquistador. Os quadros que<br />

se movem, de acordo com a voz que os representa, traduzem a imagem da<br />

via crucis do esmagamento da cultura pelo contato com o não índio. O ritual<br />

antropofágico é, então, a possibilidade de restaurar a essência cultural <strong>in</strong>dígena<br />

por meio do mito que se atualiza. Embora a fi gura do índio em Gonçalves<br />

Dias aponte para uma descaracterização de sua cultura, é necessário<br />

observar que sua construção percorre os ditames do romantismo, ao elegêlo<br />

emblema da nacionalidade, sobre o qual repousa o arquétipo de herói.<br />

Com maior acento, estampa-se o índio de Alencar em Ubirajara, de<br />

1874, Iracema, 1865 e O Guarani, de 1857. Na tríade alencariana elevamse<br />

os adereços para a fi guração exemplar de um nativo “com roupagem de<br />

cavalheiro”, segundo Proença (1959, p. 52). Em Ubirajara, o retorno ao selvagem<br />

a<strong>in</strong>da resguardado da violência do colonizador encontra um herói<br />

que se transubstancia à medida que suas ações exigem desempenho de um<br />

guerreiro nato e representante de uma nação forte. De dom<strong>in</strong>ador dos animais<br />

ao posto de guerreiro, perpassa a metamorfose social que o <strong>in</strong>screve<br />

no rol dos nativos-personagens responsáveis pela cont<strong>in</strong>uidade do ethos.<br />

Constituído a partir das leituras feitas dos viajantes e cronistas, Ubirajara é


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 151<br />

uma resposta do seu criador aos que julgaram seus índios falsos e mal arquitetados.<br />

Por ele, desfaz uma série de equívocos impressos pelas descrições<br />

dos que observaram o nativo do seu ponto de vista. Embora Alencar esteja<br />

<strong>in</strong>tr<strong>in</strong>secamente ligado ao sistema escravocrata, marcado pela ideologia do<br />

progresso e de libertação do país que se constituía, a fi gura <strong>in</strong>dígena tecida<br />

em Ubirajara preserva a índole autêntica do primeiro homem, o Adão<br />

das terras americanas, que fundaria um povo. Dessa forma, sua biografi a<br />

estende-se entre as tribos araguaia e tocantim, para, a partir delas, gerar a<br />

nação Ubirajara, que, simbolicamente, traduz o desejo de emancipação da<br />

terra brasileira.<br />

Em Iracema encontram-se, sob o arco do retorno às origens da formação<br />

do povo brasileiro, as l<strong>in</strong>has que autenticam o projeto de Alencar ante o<br />

escopo do romantismo. Na l<strong>in</strong>guagem está alicerçada a ideia de hibridismo<br />

e tradução, defendida por Campos (1992), que as considera elementos fecundantes<br />

do lírico e do épico na tessitura do material histórico que permeia<br />

a constituição da lenda.<br />

Pela tradução do universo tupi, Alencar molda a língua importada dos<br />

europeus pelo viés da s<strong>in</strong>geleza primitiva, confi gurando na personagem<br />

fem<strong>in</strong><strong>in</strong>a, Iracema, os traços de uma guerreira, defensora de sua etnia e<br />

copartícipe da fecundação do povo a partir da fusão do sangue do colonizador,<br />

com o qual o contato é <strong>in</strong>evitável. Diferente de Ubirajara, que se situa<br />

nos limites geográfi cos das aldeias, Iracema expande sua l<strong>in</strong>ha biográfi ca até<br />

o alcance do <strong>in</strong>vasor. Há que se destacar que as ações da personagem levam<br />

à compreensão de que o contato não é espontâneo, e sim, por convencimento,<br />

uma vez que o colonizador utiliza estratégias efi cazes para adquirir a<br />

confi ança no ato de abordagem e realiza seu <strong>in</strong>tento.<br />

Dentre as personagens de Alencar, Iracema acentua-se como a fi guramatriz<br />

no que lhe diz respeito aos traços pert<strong>in</strong>entes ao projeto romântico,<br />

como também, pelo perfi l de mulher guerreira na defesa de sua etnia e como<br />

mulher geradora de vida, tanto no sentido da gestação de Moacir, seu fi lho,<br />

como na gestação simbólica do homem autenticamente brasileiro. Além<br />

desse aspecto expressivo, v<strong>in</strong>cula-se à sua constituição o aspecto popular,<br />

oriundo da lenda da criação do Ceará, na qual é representada a totalidade<br />

da nação.<br />

Em O Guarani, os fatos históricos são tecidos sob a voga da questão nacional,<br />

tal qual ocorreu, no século XIX, com países da Europa, em que a


152 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

literatura associou-se aos estudos do folclore como estratégia de v<strong>in</strong>cular<br />

a cultura popular à realidade do povo. Os países europeus possuíam um<br />

passado histórico, impresso na realidade concreta da Idade Média, e dele<br />

alimentaram-se os românticos para reorganizá-lo. No Brasil, Alencar resgata<br />

a Idade Média, mas não como um dado histórico concreto, pois “o leitor<br />

sabe que se trata de uma obra de imag<strong>in</strong>ação sem uma correspondência<br />

imediata com a história, pois o passado elim<strong>in</strong>a a possibilidade de que os<br />

fatos narrados possam ser confundidos com o real” (Ortiz, 1988, p.261).<br />

Dessa forma, o tema submerso em O Guarani é, segundo Ortiz (1988,<br />

p.261-2), “puramente simbólico, e deve se voltar para o futuro, isto é, para o<br />

que se pretende criar, e não tanto para o que efetivamente ocorreu”. Os elementos<br />

sociais são articulados de forma a organizar um conjunto de ideias<br />

que a<strong>in</strong>da se encontravam dispersas, e se mostravam muito mais como um<br />

projeto a ser del<strong>in</strong>eado para a nação pueril do que ações do passado vivido.<br />

O preenchimento dessa lacuna do passado histórico deu-se pelo elemento<br />

abundante e s<strong>in</strong>gular que o Brasil t<strong>in</strong>ha a oferecer: o índio, a natureza<br />

exuberante e seus animais selvagens. Tais fatores, conhecidos e, particularmente,<br />

visíveis a Alencar, seriam os responsáveis por constituir, por meio<br />

da literatura, o encontro com a cultura <strong>in</strong>vasora. Ao contrário dos europeus<br />

que conheciam o índio pelos livros ou por contatos de duração mínima,<br />

o autor brasileiro possuía know-how diferenciado, pois o <strong>in</strong>dígena era, ao<br />

mesmo tempo, fonte de <strong>in</strong>spiração e uma ameaça social, ignorada por ele,<br />

ao optar pelo bom nativo, fi gurado em Peri, oposto ao mau, impresso com<br />

menor escopo na versão antropofágica dos aimorés.<br />

A solução para unir os elementos constitutivos da narrativa dar-se-á pela<br />

dimensão mítica, na qual será re<strong>in</strong>augurado um Brasil em “sua virg<strong>in</strong>dade<br />

orig<strong>in</strong>ária” em que “a terra não havia sido profanada pela irreversibilidade<br />

do tempo”, conforme aponta Ortiz (1988, p.262). No tempo imemorial,<br />

autenticado pelo mito, é que a nação brasileira dá s<strong>in</strong>ais de sua existência,<br />

em sua pureza <strong>in</strong>icial, marcada pela presença do selvagem que a compõe<br />

num espaço fora da sociedade a que Dom Antonio de Mariz representa.<br />

Assim, a narrativa pauta-se pelos polos de oposição, tais como ordem/<br />

desordem, lealdade/traição, espírito/corpo, que serão contidos pelo mito,<br />

como forma de expelir as características externas à civilização ora nascente,<br />

para promover a condição necessária de autenticidade, engendrada nos<br />

sobreviventes Ceci e Peri, levados pelas águas simbólicas, que ultrapassam


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 153<br />

seus limites, tão calmos e defi nidos pelo Paquequer, no <strong>in</strong>ício. No espaço<br />

e tempo <strong>in</strong>determ<strong>in</strong>ados, surge uma civilização que sai dos seus limites, a<br />

exemplo das águas, formada s<strong>in</strong>uosamente pela relação de pureza e de amor<br />

assexuado dos dois, sem os elementos do círculo social a perturbá-los.<br />

Do teor mítico encerrado em Alencar e Gonçalves Dias, desliza-se para<br />

outra vertente da confi guração do <strong>in</strong>dígena, em que não somente o idealismo<br />

romântico sustenta a arquitetura da novela de Bernardo Guimarães. As<br />

relações de contato com o não índio, reconhecidas em diferentes valores,<br />

demonstram, por meio das ações da personagem Jupira, que o idealismo<br />

cede uma parte de seu espaço à fi gura do índio destribalizado, negando seus<br />

valores em favor dos que recebe da cultura externa de contato.<br />

A l<strong>in</strong>ha biográfi ca da personagem central caracteriza-se pela presença<br />

dos fi os que a ligam ao projeto literário romântico, com a l<strong>in</strong>guagem voltada<br />

às descrições detalhadas, situando-a entre o angelical e <strong>in</strong>gênuo. Acresce,<br />

em termos de fi guração, ao fazer notório o prolongamento do “bom selvagem”,<br />

concretizado na explosão da sensualidade, defi nida pela reiteração<br />

dos traços de animais a que é comparada ao longo da narrativa, concomitantemente<br />

à mudança de comportamento que revela diante das ações praticadas<br />

tanto no universo selvático, no qual resistem os traços culturais do<br />

nativo, quanto no do não índio, em que se manifestam as contravenções<br />

culturais.<br />

Mesmo diante da força biográfi ca a que se eleva Jupira, entende-se que<br />

a narrativa de Guimarães faz a transição para uma realidade fi ccional com<br />

matizes diferentes da presenciada em Alencar. Ao trazer para a fi cção a fi -<br />

gura do sertanejo, a temática não está centrada apenas no aspecto pitoresco<br />

da paisagem e no universo exótico e primitivo. Insere-se, ao lado do homem<br />

do sertão, a vertente que faz discutir a <strong>in</strong>serção e permanência do índio em<br />

meio à sociedade constituída que não o reconhece como <strong>in</strong>dígena, tampouco<br />

como civilizado. Com a nuança de <strong>in</strong>dígena aculturado, prestes a perder<br />

seu traço orig<strong>in</strong>ário, Guimarães chega ao limite de sua representação como<br />

herói nacional, como se, na fi gura de Jupira, expirasse o último suspiro poético<br />

do romantismo <strong>in</strong>dianista, e se verifi casse a necessidade im<strong>in</strong>ente de<br />

mergulho ao estado orig<strong>in</strong>ário da cosmogonia <strong>in</strong>dígena, como o fi zeram<br />

Mario de Andrade, Raul Bopp e Cavalcanti Proença posteriormente.


1<br />

A ESTATURA DO ÍNDIO COMO HERÓI HUMANO<br />

(GONÇALVES DIAS)<br />

América <strong>in</strong>feliz, já tão ditosa<br />

Antes que o mar e o vento não trouxessem<br />

A nós o ferro e as cascatas da Europa.<br />

Gonçalves Dias, Os Timbiras<br />

Antonio Gonçalves Dias nasceu em terras de Jatobá, uma vila do sertão<br />

maranhense, próxima a Caxias, onde viveu sua <strong>in</strong>fância. Desde cedo, revelou<br />

<strong>in</strong>timidade com as letras que o fez bacharel em Direito. O período em<br />

que viveu em Portugal foi determ<strong>in</strong>ante para sua formação e opção literária,<br />

além de fortalecer o vínculo com a produção poética, dados os contatos que<br />

teve com obras de escritores europeus.<br />

O regresso a Caxias (1845) é, segundo a crítica, um marco na vida do<br />

escritor, por tomar consciência de sua herança de sangue <strong>in</strong>dígena, como a<br />

imprimiu na imagem do índio apaixonado por uma mulher branca, no poema<br />

Canto do índio. Devolvido à terra natal, pela qual expressara <strong>in</strong>term<strong>in</strong>ável<br />

saudade em seu exílio voluntário, exerceria ali a vida de bacharel e de<br />

poeta. Em São Luís também <strong>in</strong>fl uenciou o meio literário, escrevendo acerca<br />

da abolição e alguns dos seus notáveis poemas, como O canto do Piaga e O<br />

canto do guerreiro.<br />

Em 1846, no Rio de Janeiro, passou a frequentar a Biblioteca Nacional e<br />

a publicar suas obras, dentre elas, Primeiros cantos (1847). Com o resultado<br />

satisfatório, anunciado pela crítica, viveu momentos de glorifi cação como<br />

“primeiro poeta do Brasil”, com mérito a artigo do escritor português Alexandre<br />

Herculano, publicado em Lisboa.


156 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

A partir de sua elevação <strong>in</strong>telectual, teve produção <strong>in</strong>tensa. Publicou<br />

As sextilhas do frei Antão, Segundos cantos e Últimos cantos, além de obras<br />

dramáticas como Leonor de Mendonça e Boabdil. Em Últimos cantos, obra<br />

publicada em 1851, encontra-se o poema I-Juca Pirama, tido como ápice da<br />

sua <strong>in</strong>spiração <strong>in</strong>dianista, de estilo dramático, ao lado de Marabá e Leito de<br />

folhas verdes, de cunho lírico, dentre outros poemas. A<strong>in</strong>da em 1851, retorna<br />

ao Maranhão com a missão de estudar a educação pública na região, com<br />

abono do Império, na condição de membro do Instituto Histórico.<br />

Em 1857, é <strong>in</strong>dicado para a expedição à Europa, com fi ns voltados aos<br />

estudos das <strong>in</strong>stituições públicas. No mesmo evento, foi nomeado como<br />

chefe da seção de Etnografi a da Comissão Científi ca de Exploração. Nessa<br />

missão, teve contato com o editor alemão Brockhaus, que contribuiu para a<br />

publicação dos Cantos em Leipzig. É a<strong>in</strong>da o mesmo editor que encam<strong>in</strong>ha<br />

a publicação do Vocabulário tupi e os quatro cantos de Os Timbiras, escritos<br />

havia dez anos.<br />

De volta ao Brasil, em 1858, foi-lhe dada a missão de estudar os <strong>in</strong>dígenas<br />

em seus aspectos físico, moral e social. Para cumprir tal tarefa, trouxe<br />

de seus estudos da Europa, dentre várias áreas, conhecimentos em craniologia<br />

e galvanoplastia, esta última para modelar pés e mãos dos <strong>in</strong>dígenas.<br />

O it<strong>in</strong>erário do poeta-viajante cont<strong>in</strong>ua em 1862, com a saúde debilitada,<br />

ano em que retorna à Europa para possíveis tratamentos. Após <strong>in</strong>úmeras<br />

tentativas, sent<strong>in</strong>do-se desabrigado pelo governo brasileiro, aceita<br />

voltar ao Maranhão, dois anos mais tarde, com a ajuda de amigos, para estar<br />

em meio ao clima ideal à sua cura. A bordo do Ville de Boulogne, como<br />

único passageiro, morre no naufrágio nos baixos dos At<strong>in</strong>s, à vista da costa<br />

do Maranhão.<br />

Soa no mínimo estranha a suc<strong>in</strong>ta passagem pela vida do poeta, conturbada<br />

à primeira vista, mas não <strong>in</strong>feliz. É necessária para compreender<br />

os estágios oscilantes de poeta e de homem público que se encontram com<br />

o poeta <strong>in</strong>dianista, submergido ao romantismo brasileiro. Não se trata de<br />

ler a obra pela biografi a, mas de visualizar um dos fatores importantes do<br />

momento da poética romântica, a qual estabelecia uma l<strong>in</strong>ha tênue entre a<br />

vida e a obra e “permitia, ao conceber a poesia como a expressão de uma<br />

vida, uma alma ou um gênio” (Roncari, 2002, p.318). É no encontro das<br />

águas volumosas de sua produção, essencialmente <strong>in</strong>dianista, que se recorta<br />

a obra Últimos cantos, considerada como “os últimos harpejos de uma lira,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 157<br />

cujas cordas foram estalando, muitas aos balanços ásperos da desventura, e<br />

outras, talvez a maior parte, com as dores de um espírito <strong>in</strong>fermo (sic), – fi ctícias,<br />

mas nem por isso menos agudas”, conforme o próprio autor a defi niu<br />

(Proença, 1959, p.351).<br />

A agudeza de seu transbordamento poético estampa o ideal literário,<br />

visto na concepção de Candido (1997, p.11) como “beleza na simplicidade,<br />

fuga ao adjetivo, procura da expressão de tal maneira justa que outra seria<br />

difícil”. Talvez fosse dispensável qualquer apresentação de sua temática,<br />

diante da efetiva crítica já produzida. No entanto, não o é pelo fato de se<br />

tratar de um dos autores de relevo neste trabalho, ao trazer para a fi cção o<br />

nativo como parte de um projeto de literatura nacional, e por ser decisivo na<br />

formação do pensamento local, o que, consequentemente, atuou de forma<br />

signifi cativa na direção do olhar estrangeiro em relação à literatura essencialmente<br />

brasileira.<br />

É preciso destacar que, em Gonçalves Dias, a natureza passa de um estágio<br />

de exotismo descrito, já representado anteriormente por outros autores,<br />

para signifi car algo mais profundo, como elemento portador de cor local,<br />

tal qual se imprime nos objetivos do período. Isso requer pensar que a cor<br />

local abriga em seu <strong>in</strong>terior um conjunto ideológico que passa pela <strong>in</strong>serção<br />

do índio como “busca do específi co brasileiro”, conforme aponta Candido<br />

(1997, p.18). Como embrião de uma nacionalidade e “excluído o português,<br />

contra o qual se voltava aquele extremado nativismo, só o índio servia como<br />

fundamento para uma temática rica e agressiva” (Sodré, 1969, p.278), além<br />

de não empregar o negro que fora colocado “na mais baixa camada”. Há, no<br />

entanto, um apontamento importante em relação à fi guração efetuada pelos<br />

românticos, segundo Bosi (2004), que contradiz o que se esperava de um<br />

nativo versus <strong>in</strong>vasor, “no imag<strong>in</strong>ário pós-colonial”. Estaria ele ocupando o<br />

lugar de “rebelde” e não de “íntima comunhão com o colonizador” (ibidem,<br />

p.177), como revelado nas personagens de Alencar.<br />

Por esse viés, pode-se notar que o poema I-Juca Pirama, tomado aqui<br />

como referência da poesia <strong>in</strong>dianista gonçalv<strong>in</strong>a, estampa uma visão mais<br />

alargada do <strong>in</strong>dígena, prestes a sucumbir enquanto formação tribal, uma<br />

vez que fora contam<strong>in</strong>ado pelos males do <strong>in</strong>vasor. Aqui o autor fi gurativiza<br />

o nativo por uma lente panorâmica, que não o particulariza como personagem,<br />

mas dá-lhe uma identidade padrão, uniforme. É colorido com as cores<br />

de seus costumes e ligado à tradição de sua cultura, nem rebelde nem preso


158 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

ao colonizador, antes, resultado da ação desse. Não é o mesmo emblema<br />

do olhar ocidentalizado, do destemido cavaleiro, reduzido aos padrões da<br />

Cavalaria, considerado pela crítica que afi nou “o <strong>in</strong>dianismo brasileiro pelo<br />

diapasão europeu da romantização das origens nacionais”, segundo Bosi<br />

(2004, p.176).<br />

Em I-Juca Pirama prevalecem muito mais as fi guras apocalípticas que<br />

sugerem o desabamento da cultura, que propriamente um nativo afi nado<br />

ao arquétipo medieval. Na leitura de Bosi (2004, p.185-6), existe, também,<br />

uma afi nidade com os agouros dos cantos mexicas, dos quais deriva “um<br />

sentimento comum de terror expresso por uma rede de s<strong>in</strong>ais apocalípticos<br />

no sentido amplo e trans-cultural de imagens prenunciadoras de um cataclismo<br />

a um só tempo social e cósmico. O fi m de um povo é descrito como<br />

o fi m do mundo”.<br />

As nuanças apocalípticas que anunciam a morte do universo cultural<br />

nativo são reconhecidas, no poema, por meio das vozes que edifi cam, em<br />

plena América livre, um ritual <strong>in</strong>dígena anunciador não somente da morte,<br />

como fi m, mas revelador de um desejo de reapreender o caráter exemplar<br />

da realidade primeva. Tendo em seu seio o teor profético da ext<strong>in</strong>ção, não<br />

há no poema um índio rebelde, antagonista do seu algoz colonizador, mas o<br />

representante de uma nação conduzido à atualização do sacrifício.<br />

O que se canonizou como “o mito do bom selvagem”, de Rousseau,<br />

desdobra seu signifi cado em Gonçalves Dias, <strong>in</strong>do além da docilidade do<br />

nativo, de sua religiosidade e de sua ligação íntima com a natureza. O que<br />

é novo em sua poesia ultrapassa a baliza de tomar o índio e seus costumes<br />

como assunto, pois assim o fi zeram outros autores, anteriormente. A forma<br />

como estabeleceu as relações com o passado dos árcades e com a necessidade<br />

de elaborar uma poesia diferenciada da europeia, resultou na abertura<br />

de uma poética, segundo Roncari (2002, p.377), “feita da perspectiva dos<br />

índios, já que ética e culturalmente estariam mais aptos a julgar o branco<br />

europeu do que este a eles”.<br />

Independentemente de qualquer aspecto mais ou menos relevante dentro<br />

de sua obra, o selvagem ocupa tal espaço justamente porque é autêntico<br />

no sentido de expressar o seu potencial poético. Ligado ao mito do bom<br />

selvagem ou não, isso dependerá da leitura que se faça, porém, é marcante<br />

a propriedade com que torna poético um ritual recolhido, anteriormente,<br />

por Montaigne e atualizado em Santa Rita Durão, por exemplo, no epi-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 159<br />

sódio do canto do prisioneiro. Gonçalves Dias “quis provar a nobreza de<br />

uma das raças de que descendíamos”, aponta Pereira (1992, p.146), sem<br />

apoiar-se unicamente no passado, como ocorreu com o romantismo europeu.<br />

Na construção dos alicerces da nacionalidade brasileira pela literatura,<br />

conforme acrescenta Pereira, “não foi para criar uma espécie de Idade Média<br />

americana – servil imitação europeia – que nossos escritores se voltaram<br />

para os índios, mas para se certifi carem de que podiam ter confi ança no<br />

futuro”.<br />

Embora se tenha conhecimento, pela crítica, do consagrado jargão dado<br />

a Gonçalves Dias como poeta que conciliou a fi gura do autóctone com o<br />

colono cristão, dono de terras e coberto de brasões, é necessário reconhecer<br />

um acréscimo nesse perfi l: as vozes <strong>in</strong>tercaladas que del<strong>in</strong>eiam os limites<br />

da estatura heroica do índio. No poema em questão, não há uma voz que<br />

ressoe o que é e o que faz o índio como persona construída. O que se elevam<br />

são manifestações coletivas de um ritual que nutre o último fi o de vida de<br />

uma etnia em vias de desaparecimento. Tal imagem só é possível com o andamento<br />

das cenas que se vão compondo à medida que as vozes <strong>in</strong>tercaladas<br />

tecem ritmo e sentido, como a fundir num só canto vida – morte – vida,<br />

pelo mito.<br />

Construído em dez cantos, o poema I-Juca Pirama dramatiza um conjunto<br />

de dizeres que compõem um eu não harmônico com sua natureza cultural,<br />

pois, ao negar a convenção universalista, redescobre o próprio lugar<br />

do homem americano e redireciona a relação entre homem e natureza, o que<br />

sugere um descompasso entre o herói e a legitimidade de sua referência enquanto<br />

<strong>in</strong>dígena guerreiro. Diante disso, os cantos fornecem o ângulo pelo<br />

qual se pode visualizar, de modo geral, o esmagamento dos <strong>in</strong>dígenas, não<br />

pelo ritual antropofágico, em que o prisioneiro é devorado como símbolo da<br />

preservação da força e da coragem daquele que aprisiona, mas pela destruição<br />

da coletividade e da sua organização tribal, marg<strong>in</strong>alizada pelo choque<br />

com o colonizador.<br />

É sensível a desarmonia cultural, uma vez que o poema demarca o refúgio<br />

dos <strong>in</strong>dígenas nas fronteiras da expansão, subord<strong>in</strong>ados à exploração da<br />

terra e dom<strong>in</strong>ados pela natureza coercitiva do <strong>in</strong>vasor, resultando na redefi<br />

nição do corpo mítico antes consistente no grupo homogêneo, agora vociferado<br />

em tom de lamento e morte. Ante a degradação e o enfraquecimento<br />

do grupo do prisioneiro, ele é referenciado no próprio título I-Juca Pirama,


160 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

que signifi ca “aquele que é digno de ser morto”. Dentro de seu signifi cado<br />

<strong>in</strong>clui-se a questão da honra, pois morre em nome dos seus ancestrais, que<br />

também morreram para construir a corrente de bravura que perpassaria gerações<br />

e tribos, perpetuando o mito da antropofagia, tão mal <strong>in</strong>terpretado<br />

pelos primeiros colonizadores, que não lhe atribuíram o verdadeiro sentido,<br />

acusando-os de canibalismo apenas, sem auscultar seu fundamento.<br />

Demarcadas as l<strong>in</strong>has gerais que se visualizam no poema, destacam-se,<br />

da tessitura, os quadros que emolduram as cenas de acordo com a voz que<br />

a sustenta. Assim, em tom solene, há o narrador que apresenta o cenário,<br />

juntamente aos seus valentes guerreiros:<br />

No meio das tabas de amenos verdores,<br />

Cercados de troncos – cobertos de fl ores,<br />

Alteiam-se os tetos d’altiva nação;<br />

São muitos seus fi lhos, nos ânimos fortes,<br />

Temíveis na guerra, que em densas coortes<br />

Assombram das matas a imensa extensão. (Canto I, p.358)<br />

Nesse <strong>in</strong>tróito, a grandeza da nação Timbira é sobrelevada, enquanto<br />

se reduz à prisão e à humilhação um dos remanescentes da etnia tupi, em<br />

cenário <strong>in</strong>terno:<br />

No centro da taba se estende um terreiro,<br />

Onde ora se aduna o concílio guerreiro<br />

Da tribo senhora, das tribos servis;<br />

Os velhos sentados praticam d’outrora,<br />

E os moços <strong>in</strong>quietos, que a festa enamora,<br />

Derramam-se em torno dum índio <strong>in</strong>feliz.<br />

Quem é? – n<strong>in</strong>guém sabe: seu nome é ignoto,<br />

Sua tribo não diz; - de um povo remoto<br />

Descende por certo – dum povo gentil;<br />

[...] (Canto I, p.359)<br />

É, a<strong>in</strong>da, no mesmo tom solene que o narrador revela as imagens de outro<br />

cenário: o que compõe o ritual de apresentação do prisioneiro e da manutenção<br />

dos gestos, no ritmo gradativo das células dramáticas:


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 161<br />

Em tanto as mulheres com leda trigança, 1<br />

Afeitas ao rito da bárbara usança,<br />

O índio já querem cativo acabar:<br />

A coma2 lhe cortam, os membros lhe t<strong>in</strong>gem,<br />

Brilhante enduape3 no corpo lhe c<strong>in</strong>gem,<br />

Sombreiam-lhe a fronte gentil canitar. 4 (Canto I, p.359)<br />

A voz do narrador, que serve de lente em relação aos passos do ritual,<br />

cede lugar a do cacique, escolhido para matar o prisioneiro:<br />

“Eis-me aqui, diz ao índio prisioneiro;<br />

“Pois que fraco, e sem tribo, e sem família,<br />

“As nossas matas devastaste ousado,<br />

“Morrerás morte vil da mão de um forte.” (Canto III, p.361)<br />

Como convém ao herói épico, deveria cantar a grandeza de suas lutas<br />

à tribo que o aprisionou. Comparado o metro utilizado em relação aos demais<br />

cantos, observa-se a mudança dos hendecassílabos para a redondilha<br />

menor. De acordo com Bandeira (1959, p.67), o “anapesto é em Gonçalves<br />

Dias a célula rítmica de toda a sua poesia de <strong>in</strong>spiração <strong>in</strong>dianista”. Ao<br />

analisar a variação, aponta que esta “obedece sempre a uma necessidade de<br />

expressão” notada, de maneira especial, “onde há movimento belicoso ou<br />

sentimento de orgulho, <strong>in</strong>dignação, revolta”. De fato, o Canto IV, um dos<br />

mais presentes nos manuais de literatura, aponta para a dramaticidade épica,<br />

fusionada à sonoridade da batida do tambor que se eleva do andamento<br />

rítmico estabelecido pela mudança métrica:<br />

Meu canto de morte,<br />

Guerreiros ouvi:<br />

Sou fi lho das selvas,<br />

Nas selvas cresci;<br />

Guerreiros, descendo<br />

Da tribo tupi.<br />

1 Pressa.<br />

2 Cabeleira.<br />

3 Fraldão de penas de que se serviam os guerreiros.<br />

4 Cocar; adorno que os índios usavam em solenidades ou marcha para a guerra.


162 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

[...]<br />

Já vi cruas brigas,<br />

de tribos imigas,<br />

E as duras fadigas<br />

Da guerra provei;<br />

Nas ondas mendaces<br />

Senti pelas faces<br />

Os silvos fugaces<br />

Dos ventos que amei. (Canto IV, p.361-2)<br />

Da condição de herói épico, em que os feitos são valorizados, torna-se<br />

humano ao aceitar a humilhação que lhe será imposta, diante da fraqueza<br />

revelada por meio do choro, ao renunciar “a morte digna” pelo amor fi lial:<br />

Meu pai a meu lado<br />

Já cego e quebrado<br />

De penas ralado,<br />

Firmava-se em mi:<br />

Nós ambos, mesqu<strong>in</strong>hos,<br />

Por ínvios cam<strong>in</strong>hos,<br />

Cobertos d’esp<strong>in</strong>hos<br />

Chegamos aqui!<br />

[...]<br />

Ao velho coitado<br />

De penas ralado,<br />

Já cego e quebrado,<br />

Que resta? – Morrer.<br />

Em quanto descreve<br />

O giro tão breve<br />

Da vida que teve,<br />

Deixai-me viver!<br />

Não vil, não ignavo,<br />

Mas forte, mas bravo,<br />

Serei vosso escravo:


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 163<br />

Aqui virei ter.<br />

Guerreiros, não coro<br />

Do pranto que choro;<br />

Se a vida deploro,<br />

Também sei morrer. (Canto IV, p.362-3)<br />

Por meio desse excerto, é possível perceber a medula da poesia <strong>in</strong>dianista<br />

de Gonçalves Dias, no que compete à humanidade de seu <strong>in</strong>dígena. Ele<br />

não somente o apresenta pela voz do narrador, que dá a imagem panorâmica<br />

do cenário, como o torna voz pela justifi cação de sua humanidade, ao<br />

aceitar o sofrimento da humilhação como um afastamento da norma.<br />

Assim, eximir-se do canto de bravura, para chorar e implorar pela vida<br />

do pai, não se torna um ato desprovido de sentido. Constitui-se, antes de<br />

tudo, um s<strong>in</strong>al de que o aparente fracasso tornar-se-ia motivo de uma experiência<br />

posterior. A amplitude do aparente fracasso do prisioneiro <strong>in</strong>staurase<br />

a partir da decisão do cacique, entrelaçada ao diálogo comovente com o<br />

prisioneiro:<br />

Soltai-o! – diz o chefe. Pasma a turba;<br />

[...]<br />

– És livre; parte.<br />

– E voltarei.<br />

– Debalde.<br />

– Sim, voltarei, morto meu pai.<br />

– Não voltes!<br />

[...]<br />

– Ora não partirei; quero provar-te<br />

Que um fi lho dos Tupis vive com honra,<br />

E com honra maior, se acaso o vencem,<br />

Da morte o passo glorioso afronta.<br />

Mentiste, que um Tupi não chora nunca,<br />

E tu choraste!... parte; não queremos<br />

Com carne vil enfraquecer os fortes. (Canto V, p.364)


164 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Conforme foi dito anteriormente, os quadros do cenário vão mudando à<br />

medida que mudam as vozes: do narrador ao cacique e, posteriormente, ao<br />

prisioneiro. O Canto VI segue a mesma característica ao dar a voz ao ancião<br />

tupi, em presença do fi lho. Pelo cheiro da t<strong>in</strong>ta e pelo toque, é reconhecido<br />

em condição de prisioneiro:<br />

E com mão trêmula, <strong>in</strong>certa<br />

Procura o fi lho, tateando as trevas<br />

Da sua noite lúgrube e medonha.<br />

Sent<strong>in</strong>do o acre odor das frescas t<strong>in</strong>tas,<br />

Uma idéia fatal correu-lhe à mente...<br />

Do fi lho os membros gélidos apalpa,<br />

E a dolorosa maciez das plumas<br />

Conhece estremecendo: – foge, volta,<br />

Encontra sob as mãos o duro crânio,<br />

Despido então do natural ornato!...<br />

[...]<br />

– Tu prisioneiro, tu? (Canto VI, p.365-6)<br />

A partir desse episódio, fi ca evidente que a morte do prisioneiro é refém<br />

da morte do pai. Porém, a atitude do ancião, em não aceitar a cortesia<br />

timbira e devolver o prisioneiro, obedece ao sistema particular de sua ancestralidade<br />

de não se eximir do dest<strong>in</strong>o mítico. Por mais <strong>in</strong>justa, trágica ou<br />

caótica que possa parecer a atitude, é a possibilidade de manter, mesmo na<br />

degregação, a honra por meio do ritual:<br />

“Eu porém nunca vencido,<br />

Nem nos combates por armas,<br />

Nem por nobreza nos atos;<br />

Aqui venho, e o fi lho trago.<br />

Vós o dizeis prisioneiro,<br />

Seja assim como dizeis;<br />

Mandai vir a lenha, o fogo,<br />

A maça do sacrifício<br />

E a musurana ligeira:<br />

Em tudo o rito se cumpra!<br />

[...]” (Canto VII, p. 367)


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 165<br />

É no Canto VIII, no entanto, que se dá uma das dimensões mais provocantes<br />

do poema: a maldição do pai em relação ao fracasso do fi lho. Pela sua<br />

grandeza expressiva é que se rompe com o cânone na escolha dos cantosreferência<br />

VIII e IX, contrariando a preferência pelo Canto IV, repetido nos<br />

manuais. O tema da maldição é visto, então, como recusa à história do prisioneiro,<br />

que, preso às convenções de sua cultura, deveria aceitar a morte<br />

como uma norma específi ca para perpetuação do paradigma.<br />

A abertura do canto é a mais elevada forma de desprover o prisioneiro de sua<br />

própria identidade. Na voz vertical do ancião, os rigores da tradição ressoam:<br />

“Tu choraste em presença da morte?<br />

Na presença de estranhos choraste?<br />

Não descende o cobarde do forte;<br />

Pois choraste, meu fi lho não és!<br />

Possas tu, descendente maldito<br />

De uma tribo de nobres guerreiros,<br />

Implorando cruéis forasteiros,<br />

Seres presa de vis Aimorés.<br />

[...]” (Canto VIII, p. 368)<br />

Diante da negação do fi lho como <strong>in</strong>tegrante da honraria túpica, desencadeia-se<br />

a maldição. Isso se dá em razão de a morte não ser gratuita nem<br />

arbitrária no contexto em que se <strong>in</strong>sere o poema. Torna-se perturbadora<br />

porque a causa é conhecida, e, diante disso, rompe com o sentimento de<br />

solidariedade que os poemas <strong>in</strong>dianistas de Gonçalves Dias suscitaram no<br />

público. Instala-se um campo abrangente de outros sentimentos, como a<br />

piedade, por exemplo, despertados pela <strong>in</strong>cômoda maldição de um pai ao<br />

seu único fi lho. Assim, de honrado, aos olhos do velho guerreiro, passa a<br />

“descendente maldito”, sujeito à prisão dos “vis Aimorés”, <strong>in</strong>imigos mais<br />

ferozes de sua tribo. Roga-lhe o pai o isolamento na terra, a execração pelos<br />

homens e a falta de amigos e do amor das mulheres. Confi nado em seu<br />

tormento, na sombra da noite, com fome e sede, haveria de sofrer o terror e<br />

conhecer a miséria.<br />

Após todo o apocalíptico conjunto de imagens que encerram o <strong>in</strong>ferno<br />

do prisioneiro, <strong>in</strong>juriado diante do sofrimento que a maldição lhe impõe, o<br />

episódio é marcado pela sentença fi nal e reiterante:


166 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Sê maldito, e soz<strong>in</strong>ho na terra;<br />

Pois que a tanta vileza chegaste,<br />

Que em presença da morte choraste,<br />

Tu, cobarde, meu fi lho não és. (Canto VIII, p.369)<br />

A importância desse canto está no papel que desempenha dentro do<br />

conjunto das articulações do poema. Na hipótese de não existir, poder-se-ia<br />

visualizar a devolução do prisioneiro aos timbiras e sua consequente execução<br />

dentro da normalidade da ação ritualística. Nesse movimento, de uma<br />

cena a outra, é que o episódio da maldição concentra um poder simbólico<br />

dos mais signifi cativos. Ele é o pr<strong>in</strong>cípio desencadeador da reação do prisioneiro,<br />

descerrada no Canto IX, após a saída de seu pai. Sem a presença<br />

da maldição, o tupi sofreria a morte em nome de seus valores, como forma<br />

de recuperar o que t<strong>in</strong>ha perdido, ou seja, a herança da nação guerreira,<br />

pela qual morrer signifi ca dar cont<strong>in</strong>uidade ao mito. A presença da maldição<br />

assume o poder de um elixir, que revigora, mesmo diante da morte, que<br />

será honrosa por dois motivos: como repetição de um arquétipo e, muito<br />

mais, como prova de que a maldição perderia seu efeito sob a manifestação<br />

da bravura. Além disso, o fi o condutor dessa mobilidade adensa-se porque<br />

um aspecto <strong>in</strong>sólito irrompe no poema e restabelece os valores tradicionais:<br />

Vai com trêmulo pé, com as mãos já frias<br />

Da sua noite escura as densas trevas<br />

Palpando. – Alarma! alarma! – O velho pára!<br />

O grito que escutou é voz do fi lho,<br />

Voz de guerra que ouviu já tantas vezes<br />

Noutra quadra melhor. – Alarma! alarma!<br />

– Esse momento só vale apagar-lhe<br />

Os tão compridos trances, as angústias,<br />

Que o frio coração lhe atormentaram<br />

Ele que em tanta dor se contivera,<br />

Tomado pelo súbito contraste,<br />

Desfaz-se agora em pranto copioso,<br />

Que o exaurido coração remoça.<br />

[...]


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 167<br />

Era ele, o Tupi; nem fora justo<br />

Que a fama dos Tupis – o nome, a glória,<br />

Aturado labor de tantos anos,<br />

Derradeiro brasão da raça ext<strong>in</strong>ta,<br />

De um jacto e por um só aniquilasse.<br />

– Basta! Clama o chefe dos Timbiras,<br />

– Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste,<br />

E para o sacrifício é mister forças. – (Canto IX, p.369-70)<br />

Reúnem-se, portanto, no segundo excerto, os elementos que reconstituem<br />

os valores para a execução do sacrifício: o nome, a glória e as lutas do<br />

povo tupi. As duas vertentes da catarse encontram-se no coração do ancião,<br />

que remoça pelo alarido da taba, e chora diante do feito, e na luta <strong>in</strong>cessante<br />

do guerreiro, que, provocado pela maldição, reacende o vigor como “derradeiro<br />

brasão da raça ext<strong>in</strong>ta”. Não faria jus, então, diante do histórico<br />

da nação túpica, que um de seus guerreiros fosse aniquilado com tamanha<br />

humilhação. É ele quem redime seu povo da vergonha e do fracasso diante<br />

da força timbira, para traçar o retorno ao mito ancestral.<br />

No Canto IX, os momentos fi nais da cena duplicam as do canto IV em<br />

dissonância de fi m apenas, mas resguardam em comum a imagem do choro.<br />

Enquanto o prisioneiro chora para livrar-se da morte e fi car ao lado do pai<br />

(Canto IV), o ancião chora com o fi lho nos braços porque “estas lágrimas,<br />

sim, que não desonram” (Canto IX). O fi lho luta para morrer com dignidade,<br />

tal qual aponta o título I-Juca Pirama. No entanto, o que parecia novo ou surpreendente,<br />

ao dessacralizar o herói, fazendo-o chorar, amaldiçoado pelo pai<br />

e, posteriormente, morto em glória, a<strong>in</strong>da não fecha o número de estratégias<br />

que Gonçalves Dias impetra no seu modo particular de fi gurar o <strong>in</strong>dígena.<br />

O Canto X, e último na ordem, é o que irá expor a relativização do clássico<br />

herói. Mesmo subjugado pela morte e pelo sacrifício, sobreviverá no relato:<br />

Um velho Timbira, coberto de glória,<br />

Guardou a memória<br />

Do moço guerreiro, do velho Tupi!<br />

E à noite, nas tabas, se alguém duvidava<br />

Do que ele contava,<br />

Dizia prudente: – “Men<strong>in</strong>os, eu vi!” (Canto X, p.370)


168 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Na expressão: “Men<strong>in</strong>os, eu vi!”, a verdade do mito consolida-se porque<br />

está além das palavras e das imagens. Encontra-se no universo da experiência<br />

do velho timbira que conheceu o mistério <strong>in</strong>trínseco da cultura.<br />

É sua voz que outorga veracidade à história que cont<strong>in</strong>uará viva entre as<br />

futuras gerações. Por meio dele, chega-se à aproximação de um aspecto relevante<br />

do arcabouço do poema, no que se refere ao cunho apocalíptico,<br />

que se entretece em meio aos personagens e suas ações. No Apocalipse do<br />

evangelista João, em seu Epílogo (22,8), também há o testemunho ocular<br />

do vivido, que agora é relatado: “Fui eu, João, que vi e ouvi estas coisas”.<br />

Existem outras margens de <strong>in</strong>tertexto que se poderiam estabelecer com o<br />

curso do poema. É, no entanto, no Capítulo V, do texto bíblico, em que alguns<br />

elementos se encontram no desaguadouro da imagem, como se pode ver na<br />

fi gura do cacique relacionada ao que ocupa o trono, <strong>in</strong>stituído de autoridade,<br />

que tem “as chaves da morte”, e que comanda o ritual, com as devidas acusações,<br />

como a destruição da mata e o julgamento da fraqueza do prisioneiro.<br />

Ligadas à fi gura central do cacique, a quem pertence o dest<strong>in</strong>o do jovem<br />

tupi, a voz é outro importante elo. Em ambos os textos, sua manifestação<br />

dá-se em elevado tom, tal como os anjos apocalípticos, o canto do guerreiro<br />

e de seu pai e a do condutor do ritual timbira. Todo o ritual é marcado pela<br />

presença de um concílio, em que anciãos tomam as decisões, diante do choro,<br />

do lamento ou da maldição, conforme se vê no texto bíblico.<br />

Dentre tantas conjunções possíveis, que auxiliam na compreensão da riqueza<br />

de I-Juca Pirama, está a fi gura do cordeiro, em pé, a ser imolado, pela<br />

dignidade, pois seu sangue resgata os homens da tribo, a língua, o povo <strong>in</strong>dígena<br />

e seu ethos. Reviver o sacrifício é ler as m<strong>in</strong>úcias reiterantes do mito,<br />

que evoca personagens exemplares para se tornar contemporâneo, e para<br />

deixar o cotidiano em direção ao transfi gurado, como no tempo primordial.<br />

O ritual trágico, atualizado nas imagens apocalípticas, estabelece a abertura<br />

para outra dimensão de leitura, se levada em consideração a questão<br />

da identidade tribal. Nesse sentido, “a identidade étnica agrupa, agrega,<br />

unifi ca, [...] revela uma d<strong>in</strong>âmica nas relações sociais que aponta para o fortalecimento<br />

de elos étnicos, identitários, de forma a assegurar mecanismos<br />

autodefensivos em situações de confl ito <strong>in</strong>terétnico latente ou manifesto”<br />

(Oliveira, 2006, p.37). S<strong>in</strong>gularmente, o poema recorta, na primeira metade<br />

do século XIX, um evento simbólico que, concomitantemente, é estampado<br />

na história ofi cial do país. Demonstra, em versão poética, o desastroso


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 169<br />

cam<strong>in</strong>ho que as etnias <strong>in</strong>dígenas at<strong>in</strong>giriam dado o seu encurralamento nos<br />

becos do <strong>in</strong>terior e sua dissipação enquanto povo organizado. A dignidade<br />

e a honra tupi vilipendiadas são, de certa forma, o presságio de que o apagamento<br />

da cultura <strong>in</strong>dígena, via colonizador, é im<strong>in</strong>ente, restando-lhe, como<br />

forma de vida, o relato pelo mito.<br />

Os povos timbira, segundo dados de Ribeiro (1996, p.72), “constituíam<br />

orig<strong>in</strong>ariamente 15 tribos das quais somente quatro alcançaram o século<br />

XX”, nas camp<strong>in</strong>as ao sul do Maranhão, região não <strong>in</strong>diferente a Gonçalves<br />

Dias, que soube transfi gurar em poesia a realidade degradante, permit<strong>in</strong>dolhe<br />

feição enquanto povo participante da nacionalidade. Sua população foi<br />

dizimada por não ter, em seu modo de vida, afi nidades com os criadores de<br />

gado que lhe <strong>in</strong>vadiram as terras nos quarenta anos <strong>in</strong>iciais do século XIX e<br />

“se prolongaram por quarenta anos de lutas <strong>in</strong><strong>in</strong>terruptas, seguidas de um<br />

modus vivendi precário que, até os primeiros anos deste século [refere-se ao<br />

XX], a<strong>in</strong>da explodia periodicamente em confl itos sangrentos” (ibidem, p.72).<br />

No poema, o autor não confi gura a nação Timbira como a desfi gurada<br />

em sua identidade, pois lhe dá a posição da resistência, como aquela que<br />

a<strong>in</strong>da aprisiona. Atribui-se ao fato de ser uma etnia que oferecia sérias difi -<br />

culdades ao convívio pacífi co com o <strong>in</strong>vasor, procurando confraternizar-se<br />

espontaneamente, após o <strong>in</strong>teresse do governo na “pacifi cação”, portanto<br />

mais resistente e combativa. À nação Tupi coube o papel de nação vencida,<br />

e, como mostram os dados de Ribeiro (1996, p.256-63), não poderia ser<br />

transfi gurada no poema de forma diferente, uma vez que sua história aponta<br />

para uma ext<strong>in</strong>ção veloz, com 35 grupos isolados da sociedade nacional<br />

em 1900, restando apenas seis em 1957. Nesse ínterim, 18 grupos foram<br />

totalmente ext<strong>in</strong>tos entre os povos considerados isolados, sem adicionar os<br />

de contato <strong>in</strong>termitente, os de contato permanente e os <strong>in</strong>tegrados. As imagens<br />

apocalípticas fazem jus à criação poética que legitima a efi cácia do rito<br />

e da cerimônia, pois num grupo quase ext<strong>in</strong>to como o tupi, o tema já não<br />

corresponderia à sua vida social como exemplo. O que está em relevo, antes<br />

de tudo, não é a explicação racional do mundo <strong>in</strong>dígena em decadência, mas<br />

a coerência do ritual com a vida social do grupo que se mantém no relato<br />

atualizado.<br />

Observadas as posições das vozes no poema e a realidade a que o poeta vislumbrou,<br />

é possível polarizar, então, os universos representados, em essência,<br />

por duas mentalidades, conforme o entendimento de Ribeiro (1996, p.148-9):


170 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

um abismo entre a mentalidade das cidades e a dos sertões. Enquanto, para os<br />

primeiros, o índio era o personagem idílico de romances no estilo de José de<br />

Alencar ou dos poemas ao gosto de Gonçalves Dias, ou a<strong>in</strong>da o ancestral generoso<br />

e longínquo, que afastava toda suspeita de negritude; para o sertão, o índio<br />

era a fera <strong>in</strong>domada que det<strong>in</strong>ha a terra virgem, era o <strong>in</strong>imigo imediato que o<br />

pioneiro precisava imag<strong>in</strong>ar feroz e <strong>in</strong>umano, a fi m de justifi car, a seus próprios<br />

olhos, a própria ferocidade.<br />

Há que considerar que a visão de Darcy Ribeiro, nesse sentido, é a tomada<br />

geral da produção fi ccional de Gonçalves Dias e Alencar, no tocante<br />

à alteridade real ou fi ctícia que se construiu. O que é <strong>in</strong>teressante ressaltar,<br />

ante os polos estabelecidos, é que há em I-Juca Pirama uma quebra dessa<br />

l<strong>in</strong>ha condutora que permeou o romantismo. Não se trata de <strong>in</strong>verter o que<br />

foi dito até aqui, de retirar-lhe a marca impressa pela crítica como texto<br />

romântico. É uma <strong>in</strong>stância de ruptura porque, como dito anteriormente,<br />

emerge a fi gura humana do índio, e isso é possível ser articulado pelo entrelaçamento<br />

do universo <strong>in</strong>dígena pelo poeta e sua expressão por meio da<br />

arte, que não se atrelou especifi camente ao bom selvagem, ou aquele que<br />

vivia e morria caçado nas matas. Nas palavras de Roncari (2002), acerca da<br />

importância dada ao poeta, no romantismo, em detrimento à obra, poderse-ia<br />

dizer que Gonçalves Dias “aqui se apresenta como um demiurgo ou<br />

um <strong>in</strong>termediário, alguém capaz de sentir o mundo, a natureza, a div<strong>in</strong>dade<br />

e expressá-los de forma <strong>in</strong>tegral, reun<strong>in</strong>do pensamento e sentimento, coração<br />

e entendimento, paixão e ideia” (ibidem, p.318). Chamado a se <strong>in</strong>tegrar<br />

na mentalidade <strong>in</strong>scrita da tradição, reage pelo corpus mítico, para dele tirar,<br />

mesmo que recordada, a remota origem tribal.<br />

Cantos-referência<br />

Canto VIII<br />

“Tu choraste em presença da morte?<br />

Na presença de estranhos choraste?<br />

Não descende o cobarde do forte;<br />

Pois choraste, meu fi lho não és!


Possas tu, descendente maldito<br />

De uma tribo de nobres guerreiros,<br />

Implorando cruéis forasteiros,<br />

Seres presa de vis Aimorés.<br />

“Possas tu, isolado na terra,<br />

Sem arrimo e sem pátria vagando,<br />

Rejeitado da morte na guerra,<br />

Rejeitado dos homens na paz,<br />

Ser das gentes o espectro execrado;<br />

Não encontres amor nas mulheres,<br />

Teus amigos, se amigos tiveres,<br />

Tenham alma <strong>in</strong>constante e falaz!<br />

O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 171<br />

“Não encontres doçura no dia,<br />

Nem as cores da aurora te ameiguem,<br />

E entre as larvas da noite sombria<br />

Nunca possas descanso gozar:<br />

Não encontres um tronco, uma pedra,<br />

Posta ao sol, posta às chuvas e aos ventos,<br />

Padecendo os maiores tormentos,<br />

Onde possas a fronte pousar.<br />

“Que a teus passos a relva se torre;<br />

Murchem prados, a fl or desfaleça,<br />

E o regato que límpido corre,<br />

Mais te acenda o vesano furor;<br />

Suas águas depressa se tornem,<br />

Ao contacto dos lábios sedentos,<br />

Lago impuro de vermes nojentos,<br />

Donde fujas como asco e terror!<br />

“Sempre o céu, como um teto <strong>in</strong>cendido.<br />

Creste e punja teus membros malditos<br />

E o oceano de pó denegrido<br />

Seja a terra ao ignavo tupi!


172 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Miserável, fam<strong>in</strong>to, sedento,<br />

Manitôs lhe não falem nos sonhos,<br />

E do horror os espectros medonhos<br />

Traga sempre o cobarde após si.<br />

“Um amigo não tenhas piedoso<br />

Que o teu corpo na terra embalsame,<br />

Pondo em vaso d’argila cuidoso<br />

Arco e frecha e tacape a teus pés!<br />

Sê maldito, e soz<strong>in</strong>ho na terra;<br />

Pois que a tanta vileza chegaste,<br />

Que em presença as morte choraste,<br />

Tu, cobarde, meu fi lho não és.”<br />

Canto IX<br />

Isto dizendo, o miserando velho<br />

A quem Tupã tamanha dor, tal fado<br />

Já nos confi ns da vida reservara,<br />

Vai com trêmulo pé, com mãos já frias<br />

Da sua noite escura as densas trevas<br />

Palpando. – Alarma! alarma! – O velho pára!<br />

O grito que escutou é voz do fi lho,<br />

Voz de guerra que ouviu já tantas vezes<br />

Noutra quadra melhor. – Alarma! alarma!<br />

– esse momento só vale apagar-lhe<br />

os tão compridos trances, as angústias,<br />

que o frio coração lhe atormentaram<br />

de guerreiro e de pai: – vale, e de sobra.<br />

Ele que em tanta dor se contivera,<br />

Tomado pelo súbito contraste,<br />

Desfaz-se agora em pranto copioso,<br />

Que o exaurido coração remoça.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 173<br />

A taba lhe alborota, os golpes descem,<br />

Gritos, imprecações profundas soam,<br />

Emaranhada a multidão braveja,<br />

Revolve-se, enovela-se confusa,<br />

E mais revolta em mor furor se acende.<br />

E os sons dos golpes que <strong>in</strong>cessantes fervem.<br />

Vozes, gemidos, estertor de morte<br />

Vão longe pelas ermas serranias<br />

Da humana tempestade propagando<br />

Quantas vagas de povo enfurecido<br />

Contra um rochedo vivo se quebravam.<br />

Era ele, o Tupi; nem fora<br />

Que a fama dos Tupis – o nome, a glória,<br />

Aturado labor de tantos anos,<br />

Derradeiro brasão da raça ext<strong>in</strong>ta,<br />

De um jacto e por um só aniquilasse.<br />

– Basta! Clama o chefe dos Timbiras,<br />

– Basta, guerreiro ilustre! Assaz lutaste,<br />

E para o sacrifício é mister forças. –<br />

O guerreiro parou, caiu nos braços<br />

Do velho pai, que o c<strong>in</strong>ge contra o peito,<br />

Com lágrimas de júbilo bradando:<br />

“Este, sim, que é meu fi lho muito amado!<br />

“E pois que o acho em fi m, qual sempre o tive,<br />

“Corram livres as lágrimas que choro,<br />

“Estas lágrimas, sim, que não desonram.” (p.368-70)


2<br />

A TRÍADE ALENCARIANA:<br />

HISTÓRIA, LENDA E MITO NO DESAGUADOURO<br />

ROMÂNTICO DOS ARES NACIONAIS<br />

(JOSÉ DE ALENCAR)<br />

O povo que chupa o caju, a manga, o cambucá e a<br />

jabuticaba, pode falar uma língua com igual pronúncia e o<br />

mesmo espírito do povo que sorve o fi go, a pêra, o damasco<br />

e a nêspera?<br />

José de Alencar (Sênio),<br />

Prefácio de Sonhos d’Ouro, 23 de julho 1872<br />

O objetivo de trazer as três obras de Alencar para um mesmo espaço de<br />

refl exão é o de permear-lhes o que têm em comum no tocante ao tema do<br />

<strong>in</strong>dianismo, uma vez que, conforme Candido (1997, p. 201) afi rmara, “a<br />

variedade da obra de Alencar é de natureza a difi cultar a comparação dos<br />

livros uns com os outros”. A metáfora dos três alencares, construída por<br />

Candido, toma aqui outra direção, ao voltar-se aos três textos que se arquitetam,<br />

cada um a seu modo, em torno do elemento <strong>in</strong>dígena. Esse percurso<br />

de leitura recorta um dos quadros das vias tomadas pelo trifásico escritor<br />

que se desdobrou entre os cenários da graciosidade da mulher urbana e de<br />

seus galantes apreciadores, entre heróis fi rmados nos eventos históricos e<br />

entre os homens, nativos ou estrangeiros, que desaguaram suas ações nas<br />

corredeiras do mito. Nesse último espaço, mais “coerente de liberdade”,<br />

segundo Haroldo de Campos (1992, p.129), no qual se abriu “a l<strong>in</strong>ha de<br />

menor resistência do ideológico”, Alencar operou “o recuo arqueográfi co<br />

para a pré-história do romance burguês, para aquém da épica, para o fundo<br />

ritual do mito e da lenda, a pré-história folclórica do romanesco”.


176 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Assim, no arcabouço das convenções, que faziam emergir pelas letras o<br />

herói nacional, Alencar teceu o índio ideal. Enalteceu-o, deu-lhe forma e o<br />

ajustou tão livremente em seus textos, que foi motivo de questionamento<br />

frente às suas características. Foi revestido de um verniz impermeável, que<br />

o faz, até hoje, merecer a atenção dos leitores, sem que se lhe conspurquem<br />

a <strong>in</strong>genuidade, a benevolência e a placidez.<br />

Em relação ao confronto de imagens suscitadas nos textos de Gonçalves<br />

Dias, de Bernardo Guimarães e as de Alencar, é possível perceber, segundo<br />

Bosi (1992, p.185), que esse retrocede “para épocas remotas passando<br />

por um decidido processo de atenuação e sublimação”, enquanto o confl ito<br />

entre o nativo e o colonizador em Gonçalves Dias “é trabalhado pelo poeta<br />

em sua dimensão de tragédia” (ibidem, p.184). Em Guimarães, como se<br />

poderá ver adiante em Jupira, é retirado o tapume colocado por Alencar<br />

para que o olhar <strong>in</strong>cida sobre nuanças objetivas da constituição da imagem<br />

do índio, que não só se faz idealizado, mas desliza em direção às circunstâncias<br />

de aculturação e de confl ito com o não índio. Enquanto Gonçalves<br />

Dias e Guimarães alcançam uma representação mais próxima da profética<br />

ou apocalíptica, enquanto jugo da cultura autóctone, Alencar volta-se<br />

“para a construção ideal de uma nova nacionalidade: o Brasil que emerge<br />

do contexto colonial” (Bosi, 1992, p.186).<br />

Diacronicamente, as obras escolhidas para este excurso de leitura partem<br />

de O Guarani, 1857; Iracema, 1865, e Ubirajara, de 1874. Para fi ns<br />

puramente didáticos, facilitadores dos mecanismos de refl exão, será feito<br />

um percurso <strong>in</strong>verso, dadas as estratégias de construção da imagem do <strong>in</strong>dígena.<br />

Dessa forma, nesse escalonamento mais conceitual que cronológico,<br />

Ubirajara fornece os paradigmas do índio pré-cabral<strong>in</strong>o, mais próximo da<br />

história e das confi gurações dos cronistas revisitados pelo autor; Iracema<br />

consolida, em sua l<strong>in</strong>guagem poética, o caráter da lenda que, na evolução<br />

dos gêneros, é v<strong>in</strong>culada, também, à história; e O Guarani, mesmo conservando<br />

o aspecto histórico no enredo, chega à <strong>in</strong>questionável realidade do<br />

mito, o que o coloca no topo da tríade por “controlar o ritmo romanesco da<br />

narrativa, enredando os traços históricos e medievais do <strong>in</strong>ício no substrato<br />

poético da mitologia <strong>in</strong>dígena” (Motta, 2006, p. 113).<br />

Iniciar por Ubirajara é, antes de tudo, reler o próprio Alencar na <strong>in</strong>timidade<br />

de leituras que fez dos cronistas, voltando à origem, após um percurso signifi<br />

cativo de produção literária. Pensar uma fi gura <strong>in</strong>dígena, formulada pós


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 177<br />

Iracema e Peri, seria imag<strong>in</strong>á-la com plenos traços <strong>in</strong>augurados com a presença<br />

do colonizador, acentuando o que as duas obras anteriores <strong>in</strong>iciaram. O<br />

que ocorre, no entanto, é uma fi gura voltada ao mito de origem, no seu mais<br />

próximo frescor de confi guração. O eterno retorno às origens, multiplicado<br />

na literatura brasileira com o <strong>in</strong>tuito de se entender como nação, vem ass<strong>in</strong>alado<br />

na “Advertência” que o autor faz ao leitor. Não há dúvida de que o texto<br />

de abertura é um <strong>in</strong>citamento ao signifi cado da narrativa, mas contém, também,<br />

em suas entrel<strong>in</strong>has, “os valores propriamente reacionários da sociedade<br />

escravocrata e patriarcal do Segundo re<strong>in</strong>ado” (Santiago, 2003, p.6-7).<br />

É em sua Advertência que o autor aproxima o livro como “irmão de Iracema”<br />

e dá-lhe o cunho de “lenda”. Fornece ao leitor o relevo da obra em<br />

relação aos estereótipos construídos pelos primeiros <strong>in</strong>vasores, “historiadores,<br />

cronistas e viajantes”, que imprimiram o índio sob <strong>in</strong>s<strong>in</strong>uação de “uma<br />

tolerância ríspida”: “não se lembravam, ou não sabiam que eles mesmos<br />

prov<strong>in</strong>ham de bárbaros a<strong>in</strong>da mais ferozes e grosseiros do que os selvagens<br />

americanos” (ibidem, p.12). Diante disso, acusa os que escreveram<br />

a história do novo mundo sob seu ponto de vista fi losófi co, nos quais “as<br />

coisas mais poéticas”, os “traços mais generosos e cavaleirescos” e “os sentimentos<br />

mais nobres” foram “deturpados por uma l<strong>in</strong>guagem imprópria”,<br />

lançando aos <strong>in</strong>dígenas “as extravagâncias de uma imag<strong>in</strong>ação desbragada”<br />

(ibidem). Nomeia, então, as duas classes responsáveis pelas <strong>in</strong>formações: os<br />

missionários e os aventureiros. Aos missionários <strong>in</strong>teressava “a importância<br />

da sua catequese”, e aos aventureiros, “buscavam justifi car-se da crueldade<br />

com que tratavam os índios” (ibidem, p.13).<br />

Segundo Alencar, o objetivo de sua Advertência é alertar o leitor para as<br />

notas de rodapé, que não se deixe “impressionar por suas apreciações muitas<br />

vezes ridículas” (ibidem, p.13). Sugere, além disso, que “é <strong>in</strong>dispensável<br />

escoimar o fato dos comentos de que vem acompanhado, para fazer uma<br />

ideia exata dos costumes e índole dos selvagens” (ibidem). Nesse pr<strong>in</strong>cípio<br />

norteador de leitura, o autor antecipa uma das respostas às <strong>in</strong>quietações<br />

ante o modelo de narrativa criada, após a constituição de dois outros textos<br />

que diferem no contexto transfi gurado. A presença constante das notas faz<br />

emergir no texto, segundo Abreu (2002), “duas vozes que se complementam:<br />

a primeira é a do ‘narrador contemplativo’, que apresenta os episódios;<br />

a segunda, do ‘narrador histórico’”. Na <strong>in</strong>terpretação da pesquisadora de<br />

Alencar, “o ‘narrador contemplativo’ posiciona-se a fi m de construir a face


178 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

mais d<strong>in</strong>âmica da obra. É ele quem dá vida à personagem e às suas ações.<br />

O ‘narrador histórico’, por sua vez, enfeixa os elementos levantados pelo<br />

anterior, organiza-os a fi m de que compreenda a gênese da narrativa”. As<br />

notas assumem, portanto, uma fi sionomia de guia, sem que o leitor se deixe<br />

impressionar, como adiantou Alencar. Mesmo assim, são elas que revelam<br />

a <strong>in</strong>timidade do conhecimento dos cronistas e missionários, responsáveis<br />

pelas primeiras manifestações escritas do nativo. Sendo a narrativa de Ubirajara<br />

uma lenda, faz jus à proximidade com os textos históricos a que remete,<br />

como os de Hans Staden, Gabriel Soares, Ives d’Evreux, Orbigny,<br />

Thevet, Southey e Ferd<strong>in</strong>and Denis, entre outros.<br />

Segundo Santiago (2003, p.4-5), “Alencar nos dá uma lição precisa de<br />

compreensão de uma civilização não-ocidental”, mesmo não sendo um etnólogo<br />

por excelência. Ao reler os cronistas, “prenuncia já a técnica de composição<br />

dos textos da poesia Pau-brasil, pelo mesmo tipo de apropriação<br />

crítica”, o que o faz resgatar a imagem da terra e de sua gente, “apagada de<br />

maneira s<strong>in</strong>tomática desde o texto da Carta de Cam<strong>in</strong>ha”. Em meio às escavações<br />

dos textos dos cronistas, Alencar retira da camufl agem os valores<br />

<strong>in</strong>dígenas tecidos sem “qualquer codifi cação religiosa (mítica, no sentido<br />

mais preciso)”, pois foram escritos por “tripulantes de Cabral acostumados<br />

a uma única forma de religião, onde eram signifi cativos os s<strong>in</strong>ais exteriores<br />

(ídolos e templos), e portanto era-lhes duplamente impossível reconhecer<br />

qualquer <strong>in</strong>dício de sagrado entre os <strong>in</strong>dígenas”. Assim afi rma Alencar<br />

(2003b, p.78) em nota:<br />

não achando entre os aboríg<strong>in</strong>es, templos e ídolos, a<strong>in</strong>da que alguns cronistas<br />

atestam a existência dos últimos, foram os colonizadores peremptoriamente declarando<br />

ateus a esses povos. Mas logo, com <strong>in</strong>coerência fl agrante, reconheciam<br />

a existência de uma superstição, que outra coisa não é a religião na <strong>in</strong>fância da<br />

humanidade.<br />

Mesmo diante do alcance aos textos <strong>in</strong>iciais e sua leitura antropofágica,<br />

pela qual Alencar chega ao universo primitivo em sua essência, o texto de<br />

Ubirajara carrega consigo algumas marcas <strong>in</strong>deléveis da sociedade escravocrata<br />

e patriarcal, como se pode ver nas imagens que “não cedem em galanteria<br />

aos torneios de cavalaria” (ibidem, p.92, nota 60), quando narra a<br />

disputa dos <strong>in</strong>dígenas na conquista da noiva Araci.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 179<br />

A<strong>in</strong>da que impregnadas as marcas na narrativa, a personagem Ubirajara<br />

conserva os contornos de nativo não tocado pelo colonizador. Um desses<br />

traços peculiares lhe é mantido no percurso de herói, tal qual nas epopeias,<br />

no qual passa pelas provas para alcançar a glória. Assim, no ritual <strong>in</strong>dígena,<br />

o nome é um quesito importante na demarcação do escalonamento de suas<br />

ações: “pela margem do grande rio cam<strong>in</strong>ha Jaguarê, o jovem caçador” (ibidem,<br />

p.15). A partir do surgimento do herói, já em fase adulta, como caçador,<br />

<strong>in</strong>icia-se, segundo Santiago (2003, p.7), “um processo de metamorfose<br />

social”. Jaguarê é o que venceu a todos os animais, daí sua proximidade<br />

com o jaguar, do qual deriva seu nome: “ele chama-se Jaguarê, o mais feroz<br />

jaguar da fl oresta; os outros fogem quando espavoridos quando de longe o<br />

pressentem” (ibidem, p.15).<br />

Vencidos os animais, “troca a fama de caçador pela glória do guerreiro”<br />

(ibidem, p.15), o que o impele a realizar a grande façanha que o elevará à<br />

condição. A primeira etapa de sua constituição enquanto guerreiro araguaia<br />

é vencer Pojucã, líder tocantim:<br />

quando o corpo robusto de Pojucã tombava, cravado pelo dardo, Jaguarê d’um<br />

salto calcou a mão direita sobre o ombro esquerdo do vencido, e brand<strong>in</strong>do a<br />

arma sangrenta, soltou o grito do triunfo:<br />

– Eu sou Ubirajara, o senhor da lança, o guerreiro <strong>in</strong>vencível que tem por<br />

arma a serpente. Reconhece o teu vencedor, Pojucã, e proclama o primeiro dos<br />

guerreiros, pois te venceu a ti, o maior guerreiro que existiu antes dele. (Alencar,<br />

2003b, p.20)<br />

De posse do atributo de “senhor da lança”, sua biografi a desliza em direção<br />

a outro aspecto que o tornará completo: a constituição de sua família.<br />

Para isso, é-lhe concedida Jandira, uma das mais belas jovens de sua<br />

aldeia. Derivam desse aspecto os confl itos <strong>in</strong>terétnicos que fazem emergir<br />

a necessidade de nomear o herói de acordo com o signifi cado assumido na<br />

narrativa, dadas as ramifi cações que os traços da personagem alcançam gradativamente.<br />

Assim, de Jaguarê, caçador, a Ubirajara, “senhor da lança”,<br />

um estágio de seus valores é solidifi cado dentro de uma das l<strong>in</strong>has do enredo<br />

que o molduram em sua força guerreira. Na <strong>in</strong>termitência de suas ações,<br />

será nomeado Jurandir, em razão de um complexo conjunto de rituais entre<br />

os povos tocant<strong>in</strong>s, que requerem a formalização de um aspecto físico


180 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

representativo para tal ação: “Itaquê, aprovando as palavras prudentes do<br />

ancião, perguntou a Ubirajara que nome escolhia; este lhe respondeu: – Eu<br />

sou aquele que veio trazido pela luz do céu. Chama-me Jurandir” (ibidem,<br />

p.37). O signifi cado que se espraia sobre Jurandir abarca todo o percurso<br />

que o herói faz entre os enfrentamentos com as tribos <strong>in</strong>imigas. É ele o que<br />

salva os tocant<strong>in</strong>s da derrota, como se repetisse o arquétipo bíblico do Messias,<br />

enviado do céu para salvar a humanidade.<br />

Como se pode notar, o percurso do herói obedece a uma ordem natural<br />

que confi gura seu caráter ágil e guerreiro. Assim, o nome Jurandir durará<br />

o tempo em que toma Araci como esposa, e enquanto realiza todas as<br />

ações dest<strong>in</strong>adas à sua função, entre os tocant<strong>in</strong>s, dentre elas a pesca e a<br />

caça. Após a conquista da esposa, assume novamente o nome Ubirajara,<br />

em razão do desenvolvimento das demais ações que desembocam no mito<br />

ancestral, fornecendo ao leitor as imagens edênicas de uma nação de curta<br />

história. É o nativo araguaia, somado aos rituais dos tocant<strong>in</strong>s, que, segundo<br />

Abreu (2002), dá o perfi l “do que se desejava para os homens que formavam<br />

a nação, pois ele não é senão o amálgama magistral dos caracteres de<br />

um povo, que o elaborou na sua <strong>in</strong>exaurível força criadora”.<br />

Era necessário, no entanto, enfatizar um aspecto que fi zesse com que<br />

Ubirajara se diferenciasse das demais personagens elaboradas por Alencar,<br />

dado o perfi l e o objetivo da obra. Fazê-lo apenas um guerreiro, harmônico e<br />

bom servo, cumpriria uma das noções já vistas anteriormente em Peri e Iracema.<br />

Coube-lhe, então, o papel de fundador, que “permite Alencar criar<br />

para o país um passado lendário, transformando a história brasileira num<br />

mito edênico” (Abreu, 2002). Imprime-lhe, como nativo dos primórdios,<br />

a feição do que há de mais leal, como um evento sagrado que servirá de padrão<br />

à formação da identidade nacional. Tece, no entorno da personagem,<br />

os eventos históricos colhidos nos textos dos cronistas, geradores do elemento<br />

épico, mas assegura-lhe a índole autêntica, que a <strong>in</strong>screve no rol das<br />

personagens de cunho <strong>in</strong>dianista. Dessa forma, sua constituição é evidenciada<br />

pelo olhar contemplativo e histórico dos dois narradores, que se colocam<br />

em paralelo à <strong>in</strong>terpretação de Alencar no que diz respeito ao heroísmo<br />

reservado ao passado, como forma de corrigir as distorções feitas em relação<br />

ao homem natural pelos primeiros observadores de seu comportamento.<br />

Ubirajara, como personagem <strong>in</strong>dianista, cumpre seu papel de articulador<br />

dos quadros que se movem entre os vários conjuntos étnicos. Insere-se


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 181<br />

no enredo não apenas como uma personagem <strong>in</strong>dividual, portadora de um<br />

arquétipo, seja ela dest<strong>in</strong>ada a qualquer descrição, mas dotada de uma mobilidade<br />

e conduta que ampliam a dimensão de sua arquitetura, transitando<br />

entre os dados históricos e confi gurando-se na d<strong>in</strong>amicidade do enredo<br />

lendário, permit<strong>in</strong>do “expandir-se numa <strong>in</strong>fi nita proliferação de façanhas<br />

heróicas”, tal como Scholes & Kellogg (1977, p.146) consideram os heróis<br />

das epopeias romanceadas. Esses assumem a função de unidade que “liga<br />

os eventos cronologicamente movendo-se no tempo de um para outro e tematicamente<br />

pelos elementos contínuos em seu caráter e as situações semelhantes<br />

que <strong>in</strong>evitavelmente precipitam” (ibidem).<br />

O percurso do herói lendário não exime o perfi l de homem primordial,<br />

o Adão, que possui o domínio sobre a terra, o mar e os animais, como se<br />

construído de matéria div<strong>in</strong>a, mas ambientado nas circunstâncias nacionais,<br />

conforme os padrões do mito que se transplantam nas feições<br />

locais.<br />

Para assegurar esse caráter de adaptação ao universo lendário e mítico,<br />

em que o homem edênico assume a função de gerador de uma nacionalidade,<br />

Alencar imprime rituais, crenças e hábitos <strong>in</strong>dígenas em Ubirajara, que<br />

cumulam o testemunho da “idade de ouro” do passado nacional. Assim, o<br />

aspecto virg<strong>in</strong>al das mulheres do herói, que se unem no fi nal da narrativa,<br />

sacraliza um dos fi os elementares em sua constituição. A pureza do primeiro<br />

homem imprime, alegoricamente, o fator da pureza da etnia formadora,<br />

que, segundo as tradições, só poderia ser alterada com as virgens, também<br />

<strong>in</strong>tocadas. A fusão expressa na poligamia coerente dos primeiros habitantes<br />

também se refl ete na imagem da formação de uma nova nação, sob a fi gura<br />

dos arcos, como se nota num dos episódios fi nais da narrativa:<br />

Ubirajara largou o arco de Itaquê para tomar o arco de camacã. A fl echa<br />

araguaia também partiu e foi atravessar nos ares a outra que tornava à terra.<br />

As duas setas desceram trespassadas uma pela outra como os braços do<br />

guerreiro quando se cruzam ao peito para exprimir a amizade.<br />

Ubirajara apanhou-as no ar.<br />

– Este é o emblema da união. Ubirajara fará a nação tocantim tão poderosa<br />

como a nação Araguaia. Ambas serão irmãs na glória e formarão uma só, que há<br />

de ser a grande nação de Ubirajara, senhora dos rios, montes e fl orestas. (Alencar,<br />

2003b, p.68)


182 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Assim é restaurado o caráter do homem lendário que funda uma nação.<br />

A metamorfose social anunciada no <strong>in</strong>icio do texto chega ao seu ápice “com<br />

glamoroso happy end: as nações tornam-se amigas; as rivais, esposas complementares;<br />

e Ubirajara, dentro dos pr<strong>in</strong>cípios da ‘poligamia patriarcal’,<br />

casado com as duas jovens e senhor supremo” (Santiago, 2003, p.8). Há,<br />

entre seu Gênesis e Apocalipse, um conjunto de rituais que fazem alcançar<br />

o plano ideal, prolongando a cosmogonia <strong>in</strong>dígena na constituição de uma<br />

nova nação: Ubirajara, “que dom<strong>in</strong>ou o deserto” (Alencar, 2003b, p.70),<br />

num tempo que serve de modelo exemplar, atua sobre um futuro em que a<br />

mesma civilização se vê num espaço atópico: “mais tarde, quando vieram os<br />

caramurus, guerreiros do mar, ela campeava a<strong>in</strong>da nas margens do grande<br />

rio” (ibidem). Entre os polos da l<strong>in</strong>ha biográfi ca de Ubirajara encontramse,<br />

de forma cíclica, os elementos que expressam o nascimento, morte e<br />

júbilo do herói. Assim, para ser fundador de uma nação, simbolicamente,<br />

deverá morrer o guerreiro araguaia, como também deverá desaparecer a<br />

nação tocantim, para que renasça, pela lenda, a história do nascimento de<br />

um povo com expressão autônoma. A referência ao passado cosmogônico<br />

é que assegura a legitimidade de sua constituição, pois, ao projetar o futuro<br />

da nova aliança concebida, o tempo é <strong>in</strong>certo, desligado de qualquer referência.<br />

Daí, “ela campeava a<strong>in</strong>da” (grifo nosso), como que preanunciando o<br />

<strong>in</strong>exorável encontro das civilizações, como se verá em Iracema.<br />

Ligada ao aspecto da lenda, a narrativa de Iracema também faz “o arco<br />

do retorno” às origens por duas <strong>in</strong>stâncias, segundo Campos (1992, p.129).<br />

A primeira objetiva, na prática literária, “criar uma nova expressão”, o que<br />

acarretaria “criar liberdade”, de modo a cotejar uma língua essencialmente<br />

brasileira, livre do “terror pânico do galicismo”. Com essa atitude de “estranhamento”,<br />

segundo o mesmo crítico, Alencar “proclama a <strong>in</strong>fl uência<br />

dos escritores na transformação do código da língua, recusando-se a ver na<br />

gramática um cânon imutável”.<br />

Ao lado da “revolução fi lológica”, encontra-se a segunda <strong>in</strong>stância, que,<br />

para a crítica, suscita uma questão “simetricamente oposta”: “o maior poeta<br />

<strong>in</strong>dianista (o único legível hoje, se não pensarmos no <strong>in</strong>dianismo às avessas<br />

de Sousândrade) foi um prosador: José de Alencar” (Campos, 1992, p.145).<br />

Dentro dessa simetria, pode-se alcançar a dimensão do “hibridismo e da<br />

tradução” que Campos (1992) e Reis (2004) consideram como elementos<br />

primordiais na confl uência entre o lírico e o épico, na tessitura do material


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 183<br />

histórico, oriundo da ideologia do progresso, com o escopo oral, alicerçado<br />

nas tradições do povo cearense, do qual emergem as histórias da <strong>in</strong>fância<br />

nacional. Por esse viés, Iracema liga-se ao mito de origem, em sua estrutura,<br />

por resgatar aspectos “idílico-pastorais”, descrita, segundo o “cronotopo<br />

fabular” de Bakht<strong>in</strong>, como obra “monológica”. Para Campos (1992, p.131),<br />

é no plano do signifi cante, no entanto, que “o texto da ‘lenda’ alencariana<br />

se deixa atravessar pelo ‘polifonismo’, na acepção bakht<strong>in</strong>iana”. A ruptura<br />

com o monologismo épico impulsiona o fazer poético a <strong>in</strong>augurar as imagens<br />

em estado selvagem, das quais derivam não apenas o desligamento de<br />

certos modelos <strong>in</strong>stituídos do passado estético, mas, sobretudo, a recuperação<br />

de um tema que <strong>in</strong>stiga a <strong>in</strong>fância da cultura local. Considerada como<br />

uma hipótese de leitura, Campos (1992, p.132) aponta que<br />

Alencar se comporta como um tradutor que aspirasse à radicalidade, “estranhando”<br />

o português canônico e “verocêntrico”, língua da dom<strong>in</strong>ação da exmetrópole<br />

ao <strong>in</strong>fl uxo do paradigma tupi, por ele idealizado como uma língua<br />

edênica, de nomeação adâmica, em estado de primeiridade icônica, auroral.<br />

Em sua experiência em prosa, Alencar recapitula, poeticamente, nas<br />

“<strong>in</strong>formações dos cronistas e trabalhada pela mão do poeta-romancista,<br />

as contraditórias relações, ao mesmo tempo de amor e crueldade, ‘vínculo<br />

e violência’ entre colonizador e colônia” (Reis, 2004, p.3). É em meio à<br />

luta pela colonização do Ceará e de outras regiões do nordeste brasileiro do<br />

<strong>in</strong>ício do século XVII, que Alencar (2004b) colheu o tema para dar vida à<br />

“poesia <strong>in</strong>teiramente brasileira”, como declarou em Carta ao Dr. Jaguaribe.<br />

O núcleo histórico da fundação do estado, em confronto com os índios<br />

potiguaras, habitantes do litoral nordest<strong>in</strong>o, dá ao texto o material lendário<br />

que se entrelaçará ao romanesco. Assim, a trajetória de Soares Moreno<br />

desemboca na fábula da bela tabajara Iracema, que o seduz não somente<br />

do ponto de vista do romance romântico, mas, acima de tudo, como fi gura<br />

representante de uma etnia capaz de seduzir o estrangeiro e, por meio da<br />

fusão de sangue, dar <strong>in</strong>ício ao povo brasileiro.<br />

Como tradutor desse universo fabuloso, seria impresc<strong>in</strong>dível a construção<br />

de uma imponente imagem do selvagem ante o colonizador, que se<br />

acultura, à medida que se sente embebido pelas fontes aurorais de uma civilização<br />

vista como bárbara. Assim, o tema, já ocupado por poetas anterio-


184 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

res, não t<strong>in</strong>ha “certa rudez <strong>in</strong>gênua de pensamento e expressão, que devia<br />

ser a l<strong>in</strong>guagem dos <strong>in</strong>dígenas” (ibidem, p.84), segundo Alencar, na Carta<br />

citada. Para o poeta-romancista, Gonçalves Dias “é o poeta nacional por<br />

excelência [...] no conhecimento da natureza brasileira e dos costumes selvagens”,<br />

mas “os selvagens de seu poema falam uma l<strong>in</strong>guagem clássica”.<br />

No exercício de tradução, sugerido na Carta, estaria o mérito do verdadeiro<br />

programa <strong>in</strong>dianista, impresso em sua obra:<br />

sem dúvida que o poeta brasileiro tem de traduzir em sua língua as idéias, embora<br />

rudes e grosseiras, dos índios; mas nessa tradução está a grande difi culdade;<br />

é preciso que a língua civilizada se molde quanto possa à s<strong>in</strong>geleza primitiva<br />

da língua bárbara; e não represente as imagens e pensamentos <strong>in</strong>dígenas senão<br />

por termos e frases que ao leitor pareçam naturais na boca do selvagem. (ibidem,<br />

p.84)<br />

De posse, então, do universo l<strong>in</strong>guístico tupi, com suas onomatopeias<br />

abundantes, como também das frases simples e concisas, Alencar traduz o<br />

que o clássico o fi zera nos seus longos períodos subord<strong>in</strong>ados. Dessa forma,<br />

baliza o que pretendia com a tradução em sua poética em prosa, “moldando”<br />

a língua civilizada “à s<strong>in</strong>geleza primitiva”, uma atitude de “transgressão<br />

hibridizante do português canônico”, segundo Campos (1992), que<br />

alcança “a etapa mais radical desse projeto heteroglóssico” em Meu tio o<br />

Iauaretê, de Guimarães Rosa, “verdadeira ultimação da ‘revolução fi lológica<br />

de Iracema’”.<br />

Feitas as considerações suc<strong>in</strong>tas no entorno desses aspectos, também<br />

importantes neste excurso de leitura, faz mister, agora, um olhar mais próximo<br />

da confi guração da personagem representante do nativo. Iracema<br />

traz, em sua construção enquanto personagem, a beleza e a naturalidade<br />

romântica dos nativos, mas não lhe é eximido o contato com o colonizador,<br />

que possui, segundo Bosi (1992, p.181), “um poder <strong>in</strong>fuso de atraí-los e<br />

<strong>in</strong>corporá-los”.<br />

Se em Ubirajara circunscreve-se a geografi a de aldeia, em Iracema expandem-se<br />

as fronteiras para que o nativo seja alcançado pela presença do<br />

outro, em que as biografi as se <strong>in</strong>terseccionam de modo a permitir uma profundidade<br />

na temática <strong>in</strong>dígena, entrelaçada ao convívio harmônico com<br />

o colonizador. A circularidade biográfi ca de Ubirajara, del<strong>in</strong>eada nos ar-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 185<br />

redores de sua etnia, conserva seu poder fi gurativo orig<strong>in</strong>al, enquanto a de<br />

Iracema c<strong>in</strong>tila uma isotopia plural em relação à temática proposta, uma<br />

vez que as ações se encam<strong>in</strong>ham para a realização do projeto de mão dupla,<br />

estabelecido por Alencar, de renovar, pela visão orgânica da literatura<br />

brasileira, a realidade sensível da nacionalidade, utilizando-se de termos da<br />

língua nativa para “des-realizar”, ou tup<strong>in</strong>izar, um conjunto ideológico e<br />

político, impregnado em outros discursos, que o condenou pela europeização<br />

do índio.<br />

Iracema, essa sim, cantada em verso e prosa, literalmente, assume o posto<br />

da “virgem dos lábios de mel” (Alencar, 2004a, p.16), de cabelos negros,<br />

“talhe de palmeira”, sorriso doce, como “favo de jati”, ágil como a ema,<br />

fi lha de nação tabajara. É a matriz da qual derivará Jupira, de Bernardo<br />

Guimarães, resguardadas as artimanhas que esse lhe concedeu em razão<br />

do contato com o não índio. É uma fi gura-matriz em vários sentidos, que<br />

se desenha desde a vertente exemplar da personagem fem<strong>in</strong><strong>in</strong>a romântica,<br />

presa aos fascínios de um guerreiro e ao estatuto de sua etnia, ao modelo de<br />

mulher forte, frente às atitudes de defesa de seu povo e da maternidade. Esses<br />

aspectos desembocam na fi gura geradora do embrião de uma nacionalidade,<br />

que se forma a partir de experiências e de características impressas<br />

em seu perfi l.<br />

Em seu entorno é formado um conjunto de metáforas que a fazem mais<br />

expressiva dentre as fi guras fem<strong>in</strong><strong>in</strong>as desenhadas por Alencar. Embora<br />

esse aspecto a eleve à condição de heroína, dadas as virtudes de coragem,<br />

prudência e fecundidade, Iracema é posta entre a aparente harmonia do homem<br />

com a natureza e a fragilidade e submissão. O jogo que se estabelece<br />

ante esses fatores, produto das imagens que se chocam, não lhe retira a doçura<br />

que predom<strong>in</strong>a, de modo especial, na constituição da personagem em<br />

sua primeira fase, no encontro com o colonizador Martim: “levava os lábios<br />

em riso, os olhos em júbilo” (ibidem, p.36).<br />

No andamento da composição de sua estrutura, é possível identifi car,<br />

por meio da fusão com a natureza, a presença constante de elementos que<br />

determ<strong>in</strong>am o lastro de oposição subscritos em sua biografi a. Assim, notase,<br />

por exemplo, a placidez no encontro entre o conquistador e a nativa:<br />

“seus olhos negros e fúlgidos, ternos olhos de sabiá, buscam o estrangeiro e<br />

lhe entram n’alma. O cristão sorri; a virgem palpita; como o saí, fasc<strong>in</strong>ado<br />

pela serpente, vai decl<strong>in</strong>ando o lascivo talhe, que se debruça enfi m sobre o


186 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

peito do guerreiro” (ibidem, p.44). Duas imagens concorrem, no episódio,<br />

para a biografi a de Iracema: o saí e a serpente. A fragilidade metafórica do<br />

pássaro, diante do poder sedutor da serpente que a atrai para si, prenuncia<br />

a quebra da consagração da virgem a Tupã, “o segredo da jurema” (ibidem,<br />

p.20), o que desencadeará uma face dist<strong>in</strong>ta da personagem, até a culm<strong>in</strong>ância<br />

da morte. Neste ínterim, Iracema é “a cerva solitária” (ibidem, p.49),<br />

que se transfi gura à medida que suas ações <strong>in</strong>terferem em sua essência: “o<br />

mel dos lábios de Iracema é como o favo que a abelha fabrica no tronco da<br />

andiroba: tem na doçura o veneno” (ibidem, p.29). Nota-se, nas imagens,<br />

a <strong>in</strong>serção de um elemento de oposição, que aos poucos desfi gura a beleza<br />

e a valentia da personagem. O que se revelava doce passa a se constituir o<br />

ponto de desequilíbrio entre as duas culturas, tal qual o mel é alterado pelo<br />

sabor amargo da andiroba.<br />

Dentre os componentes da l<strong>in</strong>ha de fi guração, que compõem Iracema,<br />

pode-se perceber na concepção de Moacir o ponto culm<strong>in</strong>ante do encontro<br />

cultural. À primeira vista pode parecer espontâneo o ato de unir-se ao<br />

colonizador, mas há que considerar que a prosa lírica de Alencar consegue<br />

colorir uma realidade espessamente diversa da impressa nas crônicas históricas.<br />

O ato de entrega do “v<strong>in</strong>ho de Tupã” (ibidem, p.45) a Martim não foi<br />

um gesto gratuito por parte da personagem, e sim fruto do convencimento<br />

do português que, sabedor do segredo da jurema, a <strong>in</strong>duz à realização de<br />

seu desejo:<br />

– O sono é o descanso do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria d’alma.<br />

O estrangeiro não quer levar consigo a tristeza da terra hospedeira, nem deixála<br />

no coração de Iracema!<br />

A virgem fi cou imóvel.<br />

– Vai, e torna com o v<strong>in</strong>ho de Tupã. (ibidem, p.45)<br />

Está impresso, nesse jogo sedutor, o poder de atração do colonizador<br />

sobre o nativo. Iracema não prepara o momento; é conduzida pelo discurso<br />

do outro a se entregar. A estratégia utilizada perpassa valores nos quais o<br />

conquistador se projeta como o guerreiro que honra seus feitos: “ele não<br />

deixará o rasto da desgraça na cabana hospedeira” (ibidem, p.44). Por outro<br />

lado, a narrativa exime o estrangeiro da culpa de violação, pois “desce-lhe<br />

do céu ao atribulado pensamento uma <strong>in</strong>spiração” (ibidem). Assim, <strong>in</strong>spi-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 187<br />

rado muito mais pela “sombra de seu pensamento” que pelos deuses, concretiza<br />

seu objetivo e marca o momento relevante no percurso da personagem<br />

nativa:<br />

– Virgem formosa do sertão, esta é a última noite que teu hóspede dorme na<br />

cabana de Araquém, onde nunca viera, para teu bem e seu. Faze que seu sono<br />

seja alegre e feliz.<br />

– Manda; Iracema te obedece. Que pode ela para tua alegria?<br />

O cristão falou submisso, para que não o ouvisse o velho Pajé:<br />

– A virgem de Tupã guarda os sonhos da jurema que são doces e saborosos!<br />

(ibidem)<br />

A ação de convencimento dá-se no entorno do elemento mítico, “o v<strong>in</strong>ho<br />

da jurema, que transporta ao céu o valente tabajara” (ibidem), fazendoo<br />

entrar em estado de transe e realizar o grande feito de fornecer o elemento<br />

vital na constituição do primeiro brasileiro híbrido:<br />

– Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ela será mãe de teu fi lho.<br />

– Filho, dizes tu? exclamou o cristão em júbilo.<br />

[...]<br />

Martim uniu o peito ao peito de Poti:<br />

– O coração do esposo e do amigo falou por tua boca. O guerreiro branco é<br />

feliz, chefe dos pitiguaras, senhores das praias do mar; a felicidade nasceu para<br />

ele na terra das palmeiras, onde recende a baunilha; e foi gerada no sangue de<br />

tua raça, que tem no rosto a cor do sol. O guerreiro branco não quer mais outra<br />

pátria, senão a pátria de seu fi lho e de seu coração. (p.62-3)<br />

Constitui-se, assim, o amálgama cultural, que a<strong>in</strong>da reconhece no estrangeiro<br />

o poder de atração do velho mundo sobre as terras recém-descobertas e<br />

seus povos. Era necessário, no entanto, legitimar, na obra, o caráter edênico<br />

das terras americanas, e, para isso, impresc<strong>in</strong>dível a ação do nativo como<br />

sopro ampliador da imagem de Cam<strong>in</strong>ha “dar-se-á nela tudo”, até mesmo o<br />

poder de unifi car as etnias. Por esse viés de <strong>in</strong>terpretação, Alencar recolhe o<br />

tom lendário e o transporta à narrativa para opor, além dos ideais europeus,<br />

a imagem do litoral e do oceano, que trazem “ideias e hábitos, <strong>in</strong>quietações<br />

e futilidades, ignorando o sertão”, segundo Proença (1959, p.47).


188 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Para a edifi cação do povo, oriundo desse universo fabuloso, a personagem<br />

“tudo sofre por seu guerreiro e senhor” (ibidem, p.54), até o limite da<br />

dor física, e em favor de Moacir, o fi lho do sofrimento, para dar vazão à vida<br />

<strong>in</strong>augural de uma feição típica brasileira: “Iracema curte dor, como nunca<br />

sentiu; parece que lhe exaurem a vida; mas os seios vão-se <strong>in</strong>tumescendo;<br />

apojaram afi nal, e o leite, a<strong>in</strong>da rubro do sangue de que se formou, esguicha.<br />

A feliz mãe arroja os cachorr<strong>in</strong>hos, e cheia de júbilo mata a fome ao<br />

fi lho” (Alencar, 2004a, p.78).<br />

Para tornar Iracema índio-ícone, contrário aos preconceitos e <strong>in</strong>tolerâncias<br />

dos cronistas e viajantes, Alencar a reveste não apenas do sentido<br />

fi losófi co, a exemplo das confi gurações de Montaigne, mas dá-lhe estatura<br />

política e a consagra no contexto da lenda. O ambiente hostil criado a<br />

Portugal, com a <strong>in</strong>dependência, impulsiona esteticamente o alto grau de<br />

verossimilhança <strong>in</strong>terna atribuída à personagem. Embora possua a valentia<br />

de guerreira, capaz de proteger seu amado com arco e fl echa em punho, e a<br />

<strong>in</strong>tegração total com a natureza, Iracema morre para que fosse <strong>in</strong>corporado<br />

à arte o sentimento mais autêntico e traduzível da cultura nacional. Pela<br />

morte da personagem, “pousando a criança nos braços paternos, a desventurada<br />

mãe desfaleceu, como a jetica, se lhe arrancaram o bulbo” (ibidem,<br />

p.80), sobrevive a lenda para autenticar a gênese: “o primeiro cearense, a<strong>in</strong>da<br />

no berço, emigrava da terra da pátria. Havia aí a predest<strong>in</strong>ação de uma<br />

raça?” (ibidem, p.81).<br />

Com esse it<strong>in</strong>erário, Alencar faz o cam<strong>in</strong>ho de volta ao mundo selvagem,<br />

como que tecendo “vida e poesia”, perturbando uma estabilidade eurocêntrica<br />

pautada pela superioridade étnica. Iracema recebeu, no conjunto<br />

obra/estilo/época, o contorno heroico com t<strong>in</strong>turas de jenipapo, e será,<br />

como afi rmado anteriormente, a fi gura-matriz, geradora não só do primeiro<br />

homem brasileiro, mas portadora do embrião da nacionalidade. Se em Ubirajara<br />

surge uma nação sob o encontro dos arcos, em Iracema irrompe o<br />

projeto de formação de um povo a partir do <strong>in</strong>dígena, transfi gurado pelo<br />

autor, mas imponente diante da natureza que o compõe. Observada a l<strong>in</strong>ha<br />

biográfi ca de Iracema, nota-se que o percurso se <strong>in</strong>icia com as virtudes<br />

edênicas, pontuadas pela beleza e doçura, capazes apenas de concorrer com<br />

a natureza que a cerca, passa, em seguida, aos aspectos guerreiros entre as<br />

etnias com as quais se defronta e deságua nos confl itos humanos mais íntimos<br />

ao aproximar-se do colonizador. A partir da fecundação, há um declí-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 189<br />

nio em sua l<strong>in</strong>ha, que passa a apresentar as ações opositoras, levando-a ao<br />

sofrimento. O nascimento de Moacir eleva a personagem à célula mater da<br />

brasilidade e a moldura no âmbito maternal tanto no sentido de geradora<br />

do índio mais o colonizador, quanto da fi gura humana que se dá em sacrifício<br />

pelo fi lho. Ambas as características envolvem-na numa cort<strong>in</strong>a tecida<br />

de idealismo, com fi os mesclados de força e de sensibilidade poética que a<br />

estampam à altura das heroínas de beleza primitiva.<br />

Do elemento histórico, mais acentuado em Ubirajara, do lendário em<br />

Iracema, chega-se ao teor mítico em O Guarani. É preciso, pois, seguir as<br />

trilhas de Peri para compreender como sua biografi a avança em direção ao<br />

mito, comparada às duas personagens anteriores. Antes de mais nada, urge<br />

localizar a dimensão que Peri alcança na narrativa e quais os aspectos que<br />

tencionam o enredo no entorno de sua fi guração.<br />

O quadro <strong>in</strong>icial, segundo Bosi (2005, p.239), é “criado à imagem e semelhança<br />

da comunidade feudal europeia”, o que leva a visualizar um cenário<br />

edênico, em que o homem comparece para submetê-lo à servidão. Por<br />

esse viés, compreende-se a majestosa presença do solar de Antonio de Mariz,<br />

com o rio Paquequer aos seus pés, tal qual o poderio do senhor em relação<br />

à dom<strong>in</strong>ação de sua habitação e do grupo de aventureiros que o acompanham.<br />

Essa é a primeira imagem de que se tem ao ler os três primeiros<br />

capítulos, que fazem saltar aos olhos a envergadura de um castelo medieval,<br />

conjugado com a cor americana da fl oresta, das águas e dos animais. Ali<br />

reside, então, uma das facetas do aspecto histórico do romance, ao <strong>in</strong>staurar<br />

em meio às terras “virgens”, um modo de viver compatível com os ares<br />

medievais: um senhor, cercado pelos cuidados de sua senhora, uma fi lha e<br />

demais agregados, que o têm como regente das obras de conquista da terra.<br />

No quarto capítulo do romance, “A caçada”, surge, então, a personagem<br />

responsável pela desarticulação do cenário constituído. Peri, “um índio na<br />

fl or da idade” (Alencar, 2003a, p.27), vest<strong>in</strong>do “uma simples túnica de algodão,<br />

a que os <strong>in</strong>dígenas chamavam aimará, apertada à c<strong>in</strong>tura por uma<br />

faixa de penas escarlates, [...] desenhava o talhe delgado e esbelto como um<br />

junco selvagem” (ibidem, p.28). A descrição segue o mesmo estilo dos dois<br />

textos anteriores, nos quais Alencar busca, em seu exercício etnográfi co,<br />

imagens dos cronistas a respeito dos selvagens. As notas explicativas, também<br />

presentes em O Guarani, autenticam sua fi guração, muitas vezes condenada<br />

pela crítica, pela supremacia com que arquiteta o perfi l de suas per-


190 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

sonagens nativas. Porém, segundo Barbosa (2003, p.5), “se a ação de seus<br />

personagens faz surgir acontecimentos que parecem bordejar o <strong>in</strong>verossímil,<br />

isto se dá por um momento fugaz, e o leitor term<strong>in</strong>a pacifi cado”, pelo<br />

acordo que estabelece no que diz respeito “às experiências do imag<strong>in</strong>ário<br />

concretizadas pela narrativa”. Assim, ao reconstruir a imagem do nativo, a<br />

partir das descrições feitas pelos cronistas, o autor declara em nota:<br />

um índio: o tipo que descrevemos é <strong>in</strong>teiramente copiado das observações que<br />

se encontram em todos os cronistas. Em um ponto porém variam os escritores;<br />

uns dão aos nossos selvagens uma estatura abaixo da regular; outros uma estatura<br />

alta. Neste ponto preferi guiar-me por Gabriel Soares que escreveu em<br />

1580, e que nesse tempo devia conhecer a raça <strong>in</strong>dígena em todo o seu vigor, e<br />

não degenerada como se tornou depois. (Alencar, 2003a, p.27)<br />

Pela <strong>in</strong>serção do “junco selvagem” dá-se a aproximação dos polos “Natureza/Cultura”,<br />

em que o nativo entra em comunhão com o colonizador,<br />

uma “simbiose luso-tupi”, aponta Bosi (1992, p.181), armada “solidamente<br />

nos romances coloniais, nos quais o dest<strong>in</strong>o do nativo era tratado como<br />

sacrifício espontâneo e sublime”. Nessa perspectiva, a dom<strong>in</strong>ação, mesmo<br />

“espontânea”, segundo Alencar, efetua-se tanto pela condição a que Peri<br />

será submetido, em relação a Dom Antônio, servo dócil e fi el, como também<br />

pela submissão à Cecília:<br />

De repente, entre o dossel de verdura que cobria esta cena, ouviu-se um<br />

grito vibrante e uma palavra de língua estranha:<br />

– Iara!<br />

É um vocábulo guarani: signifi ca a senhora. (Alencar, 2003a, p.93)<br />

Instalam-se, assim, duas vertentes: a do trabalho escravo, algo <strong>in</strong>compatível<br />

com a cultura <strong>in</strong>dígena, mas verossímil no âmbito da arte, e a do sentimento<br />

de veneração, que o torna, além de escravo, um doador: “em Peri o<br />

sentimento era um culto, espécie de idolatria fanática, na qual não entrava<br />

um só pensamento de egoísmo; amava Cecília não para sentir um prazer ou<br />

ter uma satisfação, mas para evitar que a moça tivesse um pensamento que<br />

não fosse imediatamente uma realidade” (ibidem, p.52). Nessa segunda,<br />

em que o domínio se dá pelo sentimento, fi xa-se um dos núcleos de confl ito


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 191<br />

da narrativa que consiste na disputa, mesmo velada, pelo amor de Ceci.<br />

Dentro dos limites circulares dessa célula, aparecem, como opositores ao<br />

selvagem, outros dois servos de Dom Antonio: Loredano, herdeiro da cultura<br />

italiana e assass<strong>in</strong>o, e Álvaro, que recebeu “todos os pr<strong>in</strong>cípios daquela<br />

antiga lealdade cavalheiresca do século XV” (ibidem, p.116). Compõe-se<br />

um quadro perturbador, pois <strong>in</strong>terfere na <strong>in</strong>stauração do elemento romanesco,<br />

o mal, responsável pela ruína do solar. Frente à composição biográfi<br />

ca de cada um dos três candidatos ao amor de Cecília, é estabelecido, pela<br />

observação do narrador, o grau de <strong>in</strong>teresse: “Loredano desejava; Álvaro<br />

amava; Peri adorava. O aventureiro daria a vida para gozar; o cavalheiro<br />

arrostaria a morte para merecer um olhar; o selvagem se mataria, se preciso<br />

fosse, só para fazer Cecília sorrir” (ibidem, p.52). S<strong>in</strong>tetizam, então, “três<br />

sentimentos bem dist<strong>in</strong>tos; um era uma loucura, o outro uma paixão, o último<br />

uma religião” (ibidem). É visível, na delimitação das características,<br />

a supremacia com que o índio é destacado, pelo teor de sua devoção, superando<br />

os demais.<br />

Esses aspectos vão fazendo transparecer, gradativamente, que sua biografi<br />

a se constitui, essencialmente, de caracteres que o elevam à condição<br />

de um herói completo. Inicialmente, a força, um dos pr<strong>in</strong>cipais elementos,<br />

desponta na cena em que salva a fi lha de Dom Antonio de um acidente<br />

com uma pedra nas encostas, ao lado do Paquequer: “quanto ao sentimento<br />

que ditara esse proceder, D. Antônio não se admirava; conhecia o caráter<br />

dos nossos selvagens, tão <strong>in</strong>justamente caluniados pelos historiadores; sabia<br />

que fora da guerra e da v<strong>in</strong>gança eram generosos, capazes de uma ação<br />

grande, e de um estímulo nobre” (ibidem, p.94). Destacam-se, no excerto,<br />

valores como o caráter, a generosidade e a nobreza, contrariando a perspectiva<br />

histórica que os apresentaram ferozes e ameaçadores. Além do elemento<br />

de transfi guração visto antes, é notório o sistema de abordagem entre o<br />

colonizador e o selvagem, num ritual ornado e possível somente no <strong>in</strong>terior<br />

de um texto em que o fi dalgo europeu e o nativo são postos em grau de<br />

igualdade, e “se cruzam na posse das virtudes propriamente senhoriais: coragem<br />

e altivez, abnegação e lealdade” (Bosi, 2005, p.241):<br />

Por fi m D. Antônio passando o braço esquerdo pela c<strong>in</strong>tura de sua fi lha, cam<strong>in</strong>hou<br />

para o selvagem e estendeu-lhe a mão com gesto nobre e afável; o índio<br />

curvou-se e beijou a mão do fi dalgo.


192 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

– De que nação és? Perguntou-lhe o cavalheiro em guarani.<br />

– Goitacá, respondeu o selvagem erguendo a cabeça com altivez.<br />

– Como te chamas?<br />

– Peri, fi lho de Ararê, primeiro de sua tribo.<br />

– Eu sou um fi dalgo português, um branco <strong>in</strong>imigo de tua raça, conquistador<br />

de tua terra; mas tu salvaste m<strong>in</strong>ha fi lha; ofereço-te m<strong>in</strong>ha amizade. (Alencar,<br />

2003a, p.94-5)<br />

Tendo em vista a biografi a de D. Antônio, pontuada pelas aventuras e<br />

desafi os na ocupação de sesmaria no <strong>in</strong>terior da colônia, são perceptíveis,<br />

no ato de abordagem, as marcas do senhorio feudal, como a honra e a lealdade,<br />

que o sustentam “como um dos pilares da construção do país e da<br />

nacionalidade. Ele seria um dos ‘troncos’ formadores das grandes famílias<br />

patriarcais que ocuparam e fi zeram da antiga colônia selvagem um grande<br />

país cheio de futuro” (Roncari, 2002, p.601). Com o poder absoluto de<br />

governar e de construir, dá a dimensão do arquétipo do patriarcado e, com<br />

isso, estabelece o elo entre a cultura <strong>in</strong>vasora e a submetida, embora Peri<br />

represente uma presença harmônica em meio à diferença. A <strong>in</strong>tegridade da<br />

personagem nativa deságua no universo da crença, al<strong>in</strong>havado pelo narrador,<br />

que não permite nenhum ponto sem uma explicação plausível. Assim,<br />

no excerto, o encontro, segundo os critérios de gratidão, assegura ao senhor<br />

uma das realizações possíveis, justifi cada na aceitação de um <strong>in</strong>dígena em<br />

seu rol de amizades. O exercício de sensibilidade em relevo no fragmento<br />

terá um percurso l<strong>in</strong>ear e uniforme na narrativa, em que o relacionamento<br />

se dará pela via da troca: enquanto Peri é fi el e leal ao seu senhor, este o defende<br />

diante do desdém de Dona Lauriana e seu fi lho Diogo, personagens<br />

constitutivas do desequilíbrio entre os “iguais”, como pretendia Alencar,<br />

ao imprimir na conduta selvagem de Peri ares de fi dalguia.<br />

Mesmo diante da exaltação à família patriarcal, metáfora da sociedade<br />

da época, e tema recorrente em Alencar, a narrativa concentra no nativo<br />

um conjunto de ações exemplares que o elevam ao posto de elemento impulsionador<br />

“durante o processo ritualístico da passagem do domínio da<br />

mitologia cristã, representada pela cultura de Ceci, para a <strong>in</strong>stauração da<br />

mitologia pagã de Peri” (Motta, 2006, p.156). Para que tal ritual se realize<br />

plenamente, o herói, tecido nos liames do ideal, desempenha diferentes papéis,<br />

de acordo com as situações a que é submetido, no confronto entre os


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 193<br />

costumes locais e a <strong>in</strong>serção de valores oriundos do cabedal de valores eurocêntricos.<br />

A amplitude de sua formação <strong>in</strong>icia-se pelo papel de salvador, ao<br />

livrar Ceci da morte, retendo a pedra que rolaria pela encosta, em que revela<br />

sua “força e heroísmo” (Alencar, 2003a, p.94), além de representar gratidão<br />

ao seu senhor por ter-lhe salvado a mãe anteriormente.<br />

Não apenas o cuidado como proteção contra os elementos trágicos naturais<br />

manifesta-se nas ações de Peri. O papel de vigilante ultrapassa os<br />

limites do servilismo, e se <strong>in</strong>stala no campo da devoção, na qual desempenha<br />

funções próximas às imagens surreais, tal como no episódio em que<br />

desarticula os planos de Loredano em obter Ceci: “a mão que se adiantava<br />

e ia tocar o corpo de Cecília estacou no meio do movimento, e subitamente<br />

impelida foi bater de encontro à parede” (ibidem, p.180). A perspicácia do<br />

nativo, guiada pela seiva da natureza, faz que se projete um cenário sem<br />

transgressões à ordem patriarcal, efetuando as ações <strong>in</strong>dividualmente, levando-as<br />

a cabo sem que os obstáculos o impeçam de realizá-las em favor<br />

da tranquilidade da família, por mais que sejam difíceis de serem compreendidas<br />

pelo leitor. Dessa forma, “agarrando-se à ombreira saltou dentro<br />

do aposento com uma agitação extraord<strong>in</strong>ária; a luz dando em cheio sobre<br />

ele desenhou o seu corpo fl exível e as suas formas esbeltas. Era Peri”<br />

(ibidem, p.181). Além de constituir uma atitude de fi delidade para com o<br />

senhorio, afi na-se com a temática do amor aceitável, pois não se realiza no<br />

plano humano. Com isso, torna-se hierarquicamente concebível, enquanto<br />

personagem retirado do universo selvagem que se enamora de sua senhora<br />

“Iara”, pois a consumação física é abolida, uma vez que o recuo temporal<br />

impresso no enredo impede que tal situação seja realizada.<br />

Além disso, evita que Álvaro seja vítima de assass<strong>in</strong>ato: “com a mão<br />

esquerda segura à nuca de Loredano, curvava-o sob a pressão violenta, e<br />

obrigava-o a joelhar” (ibidem, p.113), “mostrando nos movimentos toda<br />

a força muscular de sua organização de aço”. Livra-o, também, em campo<br />

de batalha, quando “o índio tomou Álvaro nos seus ombros, e abr<strong>in</strong>do<br />

cam<strong>in</strong>ho com a sua arma temível, lançou-se pela fl oresta e desapareceu”<br />

(ibidem, p.258). Como se pode notar nos excertos, a envergadura da personagem<br />

alcança o padrão de excelência em grau de heroísmo, se considerado<br />

o tempo a que Alencar remete a história. No século XIX, tempo do autor,<br />

as famílias contavam com a presença de um serviçal fi el e prestativo, mas<br />

Peri situa-se no século XVII, contornado de obstáculos que exigiriam outra


194 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

confi guração. No entanto, a galeria representativa de suas ações outorgalhe<br />

um quadro na <strong>in</strong>stância do mito, que realiza a mediação entre o tempo<br />

histórico e o tempo fabular, e o faz visto à luz do herói compatível com o<br />

desejo nacional.<br />

No rol dos atributos, dest<strong>in</strong>ados ao herói matizado pelas cores locais,<br />

encontram-se, além dos expostos nos excertos acima, o domínio sobre os<br />

animais ferozes, a relação íntima com a natureza e com a água. Entendese<br />

que seja esta l<strong>in</strong>ha de raciocínio que <strong>in</strong>stiga a visualização de Peri como<br />

o nativo mais bem elaborado na tríade aqui recortada, por transitar com<br />

maior <strong>in</strong>tensidade entre os polos cristão/pagão, além de ligar os conceitos<br />

da cultura europeia à nativa, elementos responsáveis pelo desaguadouro no<br />

mito.<br />

Um dos exemplos que atrai a atenção para o primeiro elemento é retirado<br />

do episódio em que resgata do precipício “uma bolsa de malha de retrós,<br />

dentro da qual havia uma caix<strong>in</strong>ha de veludo escarlate” (ibidem, p.126),<br />

presente de Álvaro a Ceci:<br />

O que Cecília viu, debruçando-se à janela, gelou-a de espanto e horror.<br />

De todos os lados surgiam répteis enormes que, fug<strong>in</strong>do pelos alcantis, lançavam-se<br />

na fl oresta; as víboras escapavam das fendas dos rochedos, e aranhas<br />

venenosas suspendiam-se aos ramos das árvores pelos fi os da teia.<br />

No meio do concerto horrível que formava o sibilar das cobras e o estrídulo<br />

dos grilos, ouvia-se o canto monótono e tristonho da cauã no fundo do abismo.<br />

(ibidem, p.125)<br />

A referência feita à ave cauã eleva Peri à grandeza épica, mas é resultante,<br />

também, do aprendizado étnico, <strong>in</strong>corporado pelo autor em sua confi guração.<br />

A ave, que devora cobras, é imitada pela personagem em seu canto,<br />

na certeza de se livrar dos “monstros de mil formas”. Assim, o domínio sobre<br />

os animais não responde somente à necessidade de desobedecer à ordem<br />

da senhora, “uma fatalidade para ele” (ibidem, p.124), como também, à<br />

questão de ordem <strong>in</strong>terna de verossimilhança, bonifi cada na efi cácia do ato<br />

traduzido pela experiência vivida na selva. A ele cabe pertencer ao quadro<br />

de heróis que se utilizam da aprendizagem para sustentar sua arquitetura:<br />

“– Peri é um selvagem, fi lho das fl orestas; nasceu no deserto, no meio das<br />

cobras; elas conhecem Peri e o respeitam” (ibidem, p.126).


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 195<br />

A relação íntima com a natureza é pontuada no decorrer de toda a narrativa<br />

e se faz visível em alguns episódios merecedores de destaque, como<br />

o envenenamento da água e do v<strong>in</strong>ho dos aventureiros e de seu corpo, que<br />

serviria de banquete aos aimorés, quando o fariam prisioneiro: “dois frutos<br />

bastaram; um serviu para envenenar a água e as bebidas dos aventureiros<br />

revoltados; e outro acompanhou-o até o momento do suplício, em que<br />

passou de suas mãos para seus lábios” (ibidem, p.245). Como se nota, a<br />

estratégia volta-se unicamente para a satisfação do desejo de servir, neste<br />

caso, à sua amada, pois “a vida de Cecília o exigia” (ibidem, p.245). Com a<br />

destruição dos aimorés, garantiria a salvação de seu senhor e de sua família,<br />

respeitando “as leis tradicionais do povo bárbaro”, segundo as quais “toda<br />

a tribo devia tomar parte no festim” (ibidem, p.245). A profundidade de<br />

sua experiência com as leis da natureza exige-lhe, no entanto, uma reorganização<br />

de conduta, uma vez que a estratégia é <strong>in</strong>terrompida pela presença<br />

de Álvaro, que impede sua morte frente aos <strong>in</strong>imigos étnicos. Diante do<br />

desespero de Ceci, impulsionado pela promessa de viver, Peri funde homem<br />

e natureza pelo conhecimento do antídoto responsável por devolverlhe<br />

a vida. A presença do legado cultural, oriundo do segredo revelado pela<br />

mãe, “devia salvá-lo de uma morte certa no caso de ser ferido por alguma<br />

seta ervada” (ibidem, p.256). O cenário propício à ação é apresentado pelo<br />

narrador com <strong>in</strong>dicações de que o mistério em torno da cena fi ca codifi cado<br />

apenas no universo da personagem:<br />

Peri entranhou-se no mais basto e sombrio da fl oresta, e aí, na sombra e no<br />

silêncio passou-se entre ele e a natureza uma cena da vida selvagem, dessa vida<br />

primitiva, cuja imagem nos chegou tão <strong>in</strong>completa e desfi gurada. O dia decl<strong>in</strong>ou:<br />

veio a tarde, depois a noite, e sob essa abóbada espessa em que Peri dormia<br />

como em um santuário, nem um rumor revelara o que aí se passou. (ibidem,<br />

p.256)<br />

Há que considerar, no excerto, que o narrador não omite a emissão de seu<br />

juízo avaliativo em relação à <strong>in</strong>serção do nativo na cultura do colonizador,<br />

visto a expressão “cuja imagem nos chegou tão <strong>in</strong>completa e desfi gurada”,<br />

<strong>in</strong>dicadora de que a vida primitiva resguardava segredos somente reveláveis<br />

pelos que estabeleceram a comunhão com o “santuário”. Por isso é <strong>in</strong>capaz<br />

de descrever, do seu ponto de vista histórico e cultural, o que ocorrera no


196 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

ínterim “sob a abóbada”, e que cont<strong>in</strong>ua <strong>in</strong>completa pela ausência de conhecimento<br />

em relação ao complexo cultural <strong>in</strong>dígena.<br />

Os recursos de construção da fi gura de Peri cristalizam, então, “o guerreiro<br />

<strong>in</strong>vencível, ele, o selvagem livre, o senhor das fl orestas, o rei dessa terra<br />

virgem, o chefe da mais valente nação dos Guaranis” (ibidem, p.222), mas<br />

<strong>in</strong>stituem, também, uma tensão <strong>in</strong>evitável, como no envenenamento de seu<br />

próprio corpo, que o expõe à fragilidade humana, mesmo diante da <strong>in</strong>timidade<br />

com que se relaciona com a natureza. A condição de herói humano não<br />

se nivela ao índio de I-Juca Pirama, desvestido de sua estatura heroico-clássica,<br />

mas lhe é tecida uma parcela oscilante de heroísmo, que faz pulsar o<br />

elemento de fraqueza, logo resolvido pelas explicações elucidativas do narrador,<br />

que não as deixa pender ao campo da dúvida. Peri torna-se prisioneiro,<br />

por exemplo, dos aimorés, que “o conduziram a uma distância à sombra<br />

de uma árvore, e aí o prenderam com uma corda de algodão matizada de<br />

várias cores a que os Guaranis chamavam de muçurana” (ibidem, p.223).<br />

Mesmo privado de liberdade, o amálgama homem/natureza não se desfaz,<br />

pois ser prisioneiro não o distancia dos atos heroicos pert<strong>in</strong>entes à sua biografi<br />

a, pautada no ideal de lealdade à sua cultura, primeiramente, como se<br />

percebe no trato com as questões naturais, como também, à casta a que se<br />

<strong>in</strong>seriu como servo. A natureza aponta, frequentemente, para soluções aos<br />

problemas geradores de fraqueza heroica, como se estivesse espalhando em<br />

torno do selvagem um elixir mágico, capaz de conduzi-lo às escolhas certas.<br />

A poção regeneradora exalada pela natureza traduz-se em coragem,<br />

mesmo quando a cena sugere um possível deslize por parte do herói:<br />

– Sou teu matador! Disse em guarani.<br />

[...]<br />

– Peri não teme!<br />

– És Goitacá?<br />

– Sou teu <strong>in</strong>imigo!<br />

– Defende-te!<br />

O índio sorriu:<br />

– Tu não mereces. (ibidem, p.235)<br />

A pr<strong>in</strong>cípio, a morte, que se aproxima do herói como <strong>in</strong>evitável, acentua<br />

a tensão estabelecida desde a presença de Loredano e Álvaro, no <strong>in</strong>ício da


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 197<br />

narrativa, pelos quais se <strong>in</strong>serem os valores de cobiça e de v<strong>in</strong>gança. Consumada<br />

tal ação, Peri deixaria uma fenda aberta no enredo passível de ser<br />

preenchida apenas com a vitória dos aimorés ou pela tomada do solar pelos<br />

aventureiros. A natureza, em consonância com o signifi cado da narrativa e<br />

com a fi guração do selvagem, faz-se substância catalisadora, presente nas<br />

duas faces de atuação. No excerto que segue, impõe-se como estratégia de<br />

guerra efetuada por Peri, ao utilizar o fruto como recurso para afastar seu<br />

<strong>in</strong>imigo:<br />

Nesse momento Peri levando as duas mãos aos olhos cobriu o rosto, e curvando<br />

a cabeça fi cou algum tempo nessa posição sem fazer um movimento que<br />

revelasse a menor perturbação.<br />

O velho sorriu.<br />

– Tens medo!<br />

Ouv<strong>in</strong>do estas palavras, Peri ergueu a cabeça com ar senhoril. Uma expressão<br />

de júbilo e serenidade irradiava no seu rosto; dir-se-ia o êxtase dos mártires<br />

da religião que na última hora, através do túmulo, entrevêem a felicidade suprema.<br />

(ibidem, p.236)<br />

Assim, em diferentes situações, seja no veneno que lhe provocaria a<br />

morte, seja no antídoto que o livrou dela, a natureza age, sobretudo, em<br />

favor de Peri, como extensão de sua própria humanidade. Sua relação com<br />

a natureza e os animais, como se tem apresentado até aqui, <strong>in</strong>tensifi ca-se<br />

à medida que a l<strong>in</strong>ha biográfi ca alcança seu cume. Integram-se, concomitantemente,<br />

outros elementos, como a água e a palmeira, conjugando, mais<br />

uma vez, natureza e homem para que o enredo desemboque no mito.<br />

A palmeira, cantada em verso por Gonçalves Dias, alcança uma dimensão<br />

alegórica ao enlevo da arca de Noé, símbolo cristão da preservação<br />

da espécie diante do dilúvio. Aliada à fi gura da água, assume o poder<br />

de dar vazão aos lagos que transbordaram durante o enredo e culm<strong>in</strong>a no<br />

amálgama pagão/cristão, impresso no mito. A água, como na simbologia<br />

cristã, enfeixa na biografi a de Peri o renascimento, como ocorre quando<br />

se exila na fl oresta em busca do antídoto, e recobre suas forças ao contato<br />

com as águas do rio. Pelo batismo m<strong>in</strong>istrado por Dom Antônio, em que a<br />

água é componente, a feição pagã do selvagem é convertida em cristã, para<br />

que seja digno de salvar Ceci do ataque dos <strong>in</strong>imigos. Ao trazê-lo para o


198 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

universo cristão, a narrativa recupera o traço europeizante da catequese,<br />

que reforça o sentido da igualdade entre as culturas pela mesma profi ssão<br />

de fé:<br />

O índio caiu aos pés do velho cavalheiro, que impôs-lhe as mãos sobre a<br />

cabeça.<br />

– Sê cristão! Dou-te o meu nome.<br />

Peri beijou a cruz da espada que o fi dalgo lhe apresentou, e ergueu-se altivo<br />

e sobranceiro, pronto a afrontar todos os perigos para salvar sua senhora. (ibidem,<br />

p.270)<br />

Assim, a jovem loira, de olhos azuis, pode ser salva somente por um dos<br />

seus, e isso signifi ca ser cristão. Não cabe a um pagão o gesto nobre de articular<br />

uma saída ante o caos <strong>in</strong>stalado no solar, mesmo que fosse visto pelo<br />

seu senhor como um fi dalgo de “alma nobre” e de “sublime dedicação”.<br />

Feita a travessia da cosmogonia <strong>in</strong>dígena para a cristã, Peri desempenha o<br />

papel mítico de Noé, no enfrentamento dos fenômenos naturais, responsável<br />

pelo polimento fi nal de sua fi gura e pela cont<strong>in</strong>uidade da história fecundada<br />

no encontro das duas esferas culturais.<br />

A <strong>in</strong>tersecção dos elementos da natureza garante ao selvagem o status<br />

de arquiteto de estratégias, como convém a um herói romântico, efi caz em<br />

sua conduta para alcançar o prêmio fi nal. Fica expressa, além dos apontados<br />

anteriormente, no episódio em que prepara a fuga do solar: “começara<br />

por cortar as duas palmeiras e trazê-las para o quarto de Cecília” (ibidem,<br />

p.264), como também, no decorrer das cenas que o conduz à <strong>in</strong>tegração total,<br />

em que “desesperado c<strong>in</strong>g<strong>in</strong>do o tronco da palmeira nos seus braços<br />

hirtos, abalou-os até as raízes” (ibidem, p.295). Desde o projeto <strong>in</strong>icial, del<strong>in</strong>eado<br />

por Peri sem que os demais tivessem acesso, espera-se, enquanto<br />

leitor, que suas ações desemboquem no fi nal feliz, ao gosto dos romances<br />

habituais que marcaram época. No entanto, a expectativa de fechamento é<br />

quebrada, pois a imagem <strong>in</strong>icial do solar, que se impunha soberana à natureza,<br />

cede um espaço contrastante, em que narrativa e personagens congregam<br />

o mesmo dest<strong>in</strong>o, ou seja, não se fecham num único sentido, ao qual<br />

o leitor lhes atribuiria um fi nal. A direção do olhar, <strong>in</strong>icialmente elevada<br />

ao cume, fonte da cultura eurocêntrica, volta-se ao baixo, onde as águas se<br />

unem, tal como os sobreviventes de ambas as etnias.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 199<br />

Não se trata, no entanto, da união física, e sim, de uma união muito mais<br />

etnocêntrica e fraterna, pois ao receber o batismo, Peri torna-se irmão, enquanto<br />

fi lho da mesma fé professada, assim como Cecília torna-se sua irmã<br />

por compreender os mistérios da natureza que contribuem com o entendimento<br />

da natureza humana:<br />

– Peri nunca teve irmã.<br />

– Mas tens agora, respondeu ela sorr<strong>in</strong>do.<br />

E como uma fi lha das fl orestas, uma verdadeira americana, a gentil men<strong>in</strong>a<br />

fez sua refeição, partilhando-a com seu companheiro, e acompanhando-a dos<br />

gestos <strong>in</strong>ocentes e faceiros que só ela sabia ter. (ibidem, p.286)<br />

Como se pôde notar, Peri nasce <strong>in</strong>dígena, livre e portador de um conhecimento<br />

específi co, próprio de sua etnia, passa pelo processo de convencimento,<br />

ditado pelo estatuto do <strong>in</strong>vasor, que lhe impõe o batismo como<br />

condição última de igualdade e deságua na esfera transcendente por meio<br />

do arquétipo do salvador da espécie, o Noé cristão, ou Tamandaré, de origem<br />

tupi. É a tramitação por esse universo cultural que a fi gura do selvagem<br />

se constitui como revelação de um corpo mítico, reun<strong>in</strong>do ao mesmo<br />

tempo as qualidades físicas de um herói <strong>in</strong>vencível, a <strong>in</strong>teligência e os bons<br />

sentimentos, como convém a um verdadeiro rei das fl orestas americanas,<br />

dotado aos moldes da nobreza portuguesa: “enquanto falava, um assomo<br />

de orgulho selvagem da força e da coragem lhe brilhava nos olhos negros, e<br />

dava certa nobreza ao seu gesto. Embora ignorante, fi lho das fl orestas, era<br />

um rei; t<strong>in</strong>ha a realeza da força” (ibidem, p.97).<br />

Com a mesma estampa que a narrativa lhe dest<strong>in</strong>ou, chega ao fi nal como<br />

“um rei”, com a função de salvar a mulher, tal como no mito do dilúvio,<br />

em que o poder se manifesta por uma entidade superior. Inspirado, então,<br />

“pelo seu amor ardente”, a quem “o Senhor do céu manda às vezes àqueles<br />

a quem ama um bom pensamento” (ibidem, p.294), Peri reconstrói o mito.<br />

Dessa forma, por meio do tom solene do selvagem, manifesta-se o arquétipo<br />

ancestral:<br />

foi longe, bem longe dos tempos de agora. As águas caíram, e começaram a cobrir<br />

toda a terra. Os homens subiram ao alto dos montes; um só fi cou na várzea<br />

com sua esposa.


200 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Era Tamandaré; forte entre os fortes; sabia mais que todos. O Senhor falava-<br />

lhe de noite; e de dia ele ens<strong>in</strong>ava aos fi lhos da tribo o que aprendia do céu.<br />

[...]<br />

A corrente cavou a terra; cavando a terra, arrancou a palmeira; arrancando a<br />

palmeira, subiu com ela; subiu acima do vale, acima da árvore, acima da montanha.<br />

(ibidem, p.294)<br />

É o mito que fornece à personagem um exemplo de ação, e, por meio<br />

dela, será confi gurado o fi nal da narrativa: “a palmeira arrastada pela torrente<br />

impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte” (ibidem, p.296). Com<br />

a abertura deixada para ser preenchida pelo leitor, a partir da história do<br />

mito, a narrativa faz supor que o mesmo acontecera a Peri e Ceci, recriados<br />

nas imagens de Tamandaré e sua esposa, sobreviventes do dilúvio, elevados<br />

sobre as águas por uma palmeira.<br />

Para compreender essa estrutura, depois de presenciar uma série de episódios<br />

que rompem com os limites do mundo real, é necessário, antes de<br />

tudo, perceber que o esforço imag<strong>in</strong>ativo que compôs Peri é ambíguo. Ao<br />

mesmo tempo são realizadas ações que vão desde a luta com uma onça à<br />

descida à gruta cheia de serpentes, ao envenenamento de seu corpo e a sua<br />

cura e, por último, chega ao extremo da proeza, ao arrancar uma palmeira<br />

do chão para salvar a “irmã” da enchente. O herói atlético, conhecedor dos<br />

segredos da natureza, ágil, valente e impetuoso não consegue afrontar os<br />

brancos, representantes do bem. Por isso, é submisso, fi el e dócil, reduz<strong>in</strong>do-se,<br />

como a natureza exuberante, a um elemento exótico, sedutor aos<br />

olhos dos leitores. Segundo Bosi (2005, p.242),<br />

cancelam-se aqui os limites históricos, desfazem-se os contornos da vida em<br />

sociedade; e a narração volta-se para as fontes arcanas do romance histórico: a<br />

lenda. O homem e a natureza e, entre ambos, a natureza mais humana, a humanidade<br />

mais natural, a mulher. O homem deve livrar a mulher da morte pela<br />

mediação da natureza protetora.<br />

Com a epifania do mito do dilúvio, Alencar desata um nó dado durante<br />

a construção da personagem. Ao atualizar o mito cristão/pagão, além de<br />

elevar Peri à categoria dos grandes heróis, resolve a problemática de aculturação<br />

que sofre no decorrer de sua permanência entre os colonizadores.<br />

Qual outro dest<strong>in</strong>o seria viável e verossímil, senão o poder que vem do alto,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 201<br />

que o conduz a um espaço <strong>in</strong>determ<strong>in</strong>ado? A solução para o embate entre<br />

a cultura dita “superior” e a selvagem dá-se pelo olhar poético-idealizante,<br />

pelo qual são afastadas as possibilidades de casar Peri com Cecília, aspecto<br />

não condizente com o século XVII a que a obra remete, ou de deixá-los solitários<br />

pela fl oresta até que alcançassem a etnia goitacá, da qual era chefe.<br />

Diante do quadro fi nal do enredo, é possível <strong>in</strong>ferir que Peri foi desvestido<br />

de sua condição natural de <strong>in</strong>dígena. Gradativamente, foi-lhe retirado<br />

o matiz próprio para <strong>in</strong>serir em seu comportamento nuances que o desviam<br />

da fi guração de Ubirajara, por exemplo. Visto por esse viés, Alencar não o<br />

“despiu” apenas “da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas”,<br />

como declarou, mas o despiu também de suas cores orig<strong>in</strong>ais, ao comb<strong>in</strong>ar<br />

elementos da tradição europeia aos dos nativos, como o batismo cristão, a<br />

relação fraterna com Cecília, dentre outros. Ante essas evidências, houve<br />

quem acusasse o escritor de “ofender a história, a verdade, a arte e as leis<br />

da composição literária”, como o fez Nabuco, a quem o romance deveria<br />

manter-se nos limites do mundo extraliterário.<br />

Tomado como fi gura de romance romântico, compreende-se que, no<br />

projeto de Alencar, caberia ao índio um lugar hiperbólico e, assim, romperia<br />

com o universo plausível, da realidade fragilizada, a que o nativo se<br />

submetera nos trezentos anos de contato. Como representante da época<br />

remota, embrião de um povo, foi colocado em meio a seu habitat e não no<br />

círculo das cidades, onde a aculturação não garantiria um selvagem modelo.<br />

Fazendo esse percurso de leitura, fi cam nítidas as duas faces da composição:<br />

uma que empresta certo ar documental ao texto, ao <strong>in</strong>serir algumas<br />

notas explicativas da cultura <strong>in</strong>dígena e a fi gura histórica de Dom Antônio<br />

de Mariz, e a outra, que realça o feito fabuloso do índio Peri. Mesmo na<br />

tentativa de mitifi car o <strong>in</strong>dígena como ancestral de nossa cultura, ambas as<br />

faces se articulam de forma harmoniosa, em função de não traduzir rejeição<br />

à cultura europeia, o que explica a arquitetura de domesticação de Peri,<br />

visto como servo “voluntário” e “obediente” à Ceci e a Dom Antônio. Para<br />

contrapor a benevolência de ancestral, estampada na personagem, somente<br />

o canibalismo feroz dos aimorés, que simbolizam uma <strong>in</strong>subord<strong>in</strong>ação <strong>in</strong>aceitável,<br />

uma forma de se exagerar o traço radicalmente selvagem.<br />

Feito o percurso de leitura das três obras, fi cam consolidadas em cada<br />

perfi l as vertentes próprias do romantismo, ligadas à causa patriótica, responsável<br />

por uma literatura caracterizada pela descrição da natureza, por


202 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

meio de <strong>in</strong>tensa adjetivação, que empresta o colorido às paisagens e personagens,<br />

com abundantes metáforas e comparações, fontes propulsoras do<br />

tom fantasioso e exagerado de Alencar no projeto de registrar, pela l<strong>in</strong>guagem,<br />

o espírito brasileiro e a <strong>in</strong>dependência da jovem nação.<br />

Episódios – referência<br />

Capítulo IX – Ubirajara<br />

Ubirajara largou o arco de Itaquê para tomar o arco de Camacã. A fl echa<br />

araguaia também partiu e foi atravessar nos ares a outra que tornava à terra.<br />

As duas setas desceram trespassadas uma pela outra como os braços do<br />

guerreiro quando se cruzam ao peito para exprimir a amizade.<br />

Ubirajara apanhou-as no ar.<br />

– Este é o emblema da união. Ubirajara fará a nação tocantim tão poderosa<br />

como a nação araguaia. Ambas serão irmãs na glória e formarão uma<br />

só, que há de ser a grande nação de Ubirajara, senhora dos rios, montes e<br />

fl orestas.<br />

O chefe dos chefes ordenou que três guerreiros araguaias e três guerreiros<br />

tocant<strong>in</strong>s ligassem com o fi o do crautá as hastes dos dois arcos.<br />

Quando o arco de Camacã e o arco de Itaquê não fi zeram mais que um,<br />

Ubirajara o empunhou na mão possante e mostrou-o às nações:<br />

– Abarés, chefes, moacaras e guerreiros de m<strong>in</strong>has nações, aqui está<br />

o arco de Ubirajara, o chefe dos grandes chefes. Suas fl echas são gêmeas,<br />

como as duas nações, e voam juntas.<br />

Ambas as cordas brandiram a um tempo. A seta Araguaia e a seta tocantim<br />

partiram de novo como duas águias que par a par remontaram às nuvens.<br />

Quando calou-se a pocema do triunfo, Ubirajara cam<strong>in</strong>hou para a fi lha<br />

de Itaquê:<br />

– Araci, estrela do dia, tu pertences a Ubirajara, que te conquistou pela<br />

força de seu braço. Agora que é senhor, ele espera a tua vontade.<br />

A formosa virgem rompeu a liga vermelha que lhe c<strong>in</strong>gia a perna e atoua<br />

ao pulso de seu guerreiro.<br />

Ubirajara tomou a esposa aos ombros e levou-a à cabana do casamento.<br />

O jasm<strong>in</strong>eiro semeava de fl ores perfumadas a rede do amor. (p.68-9)


Capítulo XXX – Iracema<br />

O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 203<br />

Iracema, sent<strong>in</strong>do que se lhe rompia o seio, buscou a margem do rio,<br />

onde crescia o coqueiro.<br />

Estreitou-se com a haste da palmeira. A dor lacerou suas entranhas; porém<br />

logo o choro <strong>in</strong>fantil <strong>in</strong>undou sua alma de júbilo.<br />

A jovem mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro fi lho nos braços<br />

e com ele arrojou-se às águas límpidas do rio. Depois suspendeu-o à teta<br />

mimosa; seus olhos então o envolviam de tristeza e amor.<br />

– Tu és Moacir, o nascido de meu sofrimento.<br />

A ará, pousada no olho do coqueiro, repetiu Moacir; e desde então a ave<br />

amiga unia em seu canto ao nome da mãe e do fi lho.<br />

O <strong>in</strong>ocente dormia; Iracema suspirava:<br />

– A jati fabrica o mel no tronco cheiroso do sassafrás; toda a lua das fl ores<br />

voa de ramo em ramo, colhendo o suco para encher os favos; mas ela não prova<br />

sua doçura, porque a irara devora em uma noite toda a colmeia. Tua mãe<br />

também, fi lho de m<strong>in</strong>ha angústia, não beberá em teus lábios o mel do teu<br />

sorriso. A jovem mãe passou aos ombros a larga faixa de macio algodão, que<br />

fabricava para trazer o fi lho sempre unido ao fl anco; e seguiu pela areia o rasto<br />

do esposo, que há três sóis se partira. Ela cam<strong>in</strong>hava docemente para não<br />

despertar a crianc<strong>in</strong>ha, adormecida como o passar<strong>in</strong>ho sob a asa materna.<br />

Quando chegou junto ao grande morro das areias, viu que o rasto de<br />

Martim e Poti seguia ao longo da praia; e adiv<strong>in</strong>hou que eles eram partidos<br />

para a guerra. Seu coração suspirou; mas seus olhos secos buscaram o semblante<br />

do fi lho.<br />

Volve o rosto para o Mocoripe:<br />

– Tu és o morro da alegria; mas para Iracema não tens senão tristeza.<br />

Tornando, a recente mãe pousou a criança adormecida na rede de seu<br />

pai, viúva e solitária em meio da cabana; deitou-se ao chão, na esteira onde<br />

repousava, desde que os braços do esposo se não t<strong>in</strong>ham mais aberto para<br />

recebê-la (p.74-5).<br />

Capítulo II – O Guarani<br />

“Guerreiro branco, Peri, primeiro de sua tribo, fi lho de Ararê, da nação<br />

Goitacá, forte na guerra, te oferece o seu arco; tu és amigo.”


204 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

O índio term<strong>in</strong>ou aqui a sua narração.<br />

Enquanto falava, um assombro de orgulho selvagem da força e da coragem<br />

lhe brilhava nos olhos negros, e dava certa nobreza ao seu gesto. Embora<br />

ignorante, fi lho das fl orestas, era um rei; t<strong>in</strong>ha a realeza da força.<br />

Apenas concluiu, a altivez do guerreiro desapareceu; fi cou tímido e modesto;<br />

já não era mais do que um bárbaro em face de criaturas civilizadas,<br />

cuja superioridade de educação o seu <strong>in</strong>st<strong>in</strong>to reconhecia.<br />

D. Antônio o ouvia sorr<strong>in</strong>do-se do seu estilo ora fi gurado, ora tão s<strong>in</strong>gelo<br />

como as primeiras frases que balbucia a criança no seio materno. O fi dalgo<br />

traduzia da melhor maneira que podia essa l<strong>in</strong>guagem poética a Cecília, a<br />

qual já livre do susto queria por força, apesar do medo que lhe causava o<br />

selvagem, saber o que ele dizia.<br />

Compreenderam da história de Peri, que uma índia salva dois dias por<br />

D. Antônio das mãos dos aventureiros e a quem Cecília enchera de presentes<br />

de velórios azuis e escarlates, era a mãe do selvagem.<br />

– Peri, disse o fi dalgo, quando dois homens se encontram e fi cam amigos,<br />

o que está na casa do outro recebe a hospitalidade.<br />

– É o costume que os velhos transmitiram aos moços da tribo, e os pais<br />

aos fi lhos.<br />

– Tu cearás conosco.<br />

– Peri te obedece.<br />

A tarde decl<strong>in</strong>ava; as primeiras estrelas luziam. A família, acompanhada<br />

por Peri, dirigiu-se a casa, e subiu a esplanada.<br />

D. Antônio entrou um momento e voltou trazendo uma l<strong>in</strong>da clav<strong>in</strong>a<br />

tauxiada com o brasão de armas do fi dalgo, a mesma que já vimos nas mãos<br />

do índio.<br />

– É a m<strong>in</strong>ha companheira fi el, a m<strong>in</strong>ha arma de guerra; nunca mentiu<br />

fogo, nunca errou o alvo: a sua bala é como a seta de teu arco. Peri, tu me<br />

deste m<strong>in</strong>ha fi lha; m<strong>in</strong>ha fi lha te dá a arma de guerra de seu pai.<br />

O índio recebeu o presente com uma efusão de profundo reconhecimento.<br />

– Esta arma que vem da senhora, e Peri, farão um só corpo.<br />

A campa do terreiro tocou anunciando a ceia.<br />

O índio, vexado no meio dos usos estranhos, tomado de um santo respeito,<br />

não sabia como se ater.<br />

Apesar de todos os esforços do fi dalgo, que sentia um prazer <strong>in</strong>dizível<br />

em mostra-lhe quanto apreciava a sua ação e remoçara com a alegria de ver<br />

sua fi lha viva, o selvagem não tocou em um só manjar.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 205<br />

Por fi m D. Antônio de Mariz conhecendo que toda a <strong>in</strong>sistência era <strong>in</strong>útil,<br />

encheu duas taças de v<strong>in</strong>ho das Canárias.<br />

– Peri, disse o fi dalgo, há um costume entre os brancos, de um homem<br />

beber por aquele que é amigo. O v<strong>in</strong>ho é o licor que dá a força, a coragem,<br />

a alegria. Beber por um amigo é uma maneira de dizer que o amigo é e será<br />

forte, corajoso e feliz. Eu bebo pelo fi lho de Ararê.<br />

– E Peri bebe por ti, porque és pai da senhora; bebe por ti, porque salvaste<br />

sua mãe; bebe por ti, porque és guerreiro.<br />

A cada palavra do índio tocou a taça e bebeu um trago de v<strong>in</strong>ho, sem fazer<br />

o menor gesto de desgosto; ele beberia veneno à saúde do pai de Cecília.<br />

(p.97-8)


3<br />

JUPIRA: IDEALISMO E TRANSIÇÃO<br />

NO VÉRTICE DA CULTURA INDÍGENA<br />

(BERNARDO GUIMARÃES)<br />

Os seus índios não são retóricos quando falam, nem<br />

se parecem com heróis de fábula. Jupira, a índia que tem<br />

orgulho da sua tribo e coragem dos seus próprios sentimentos,<br />

o autor a representa com uma humanidade que é a que está<br />

no nosso sangue e na nossa carne.<br />

D<strong>in</strong>o F. Fontana<br />

Listado entre os escritores românticos, Bernardo Guimarães ocupa relevância<br />

no que a crítica imprimiu como fi cção sertanista ou regionalista.<br />

Mesmo com as convenções nom<strong>in</strong>ais do que seria uma literatura voltada ao<br />

<strong>in</strong>terior do país, Guimarães soube explorar um dos fi lões do romantismo,<br />

que al<strong>in</strong>havou o olhar culto do escritor com a vida do sertanejo. Disso resultaram<br />

obras formatadas em torno de <strong>in</strong>úmeros aspectos, que se confi guram<br />

desde o histórico, da época colonial (Maurício), ao celibato clerical (O sem<strong>in</strong>arista),<br />

aos usos e costumes regionais do garimpo (O garimpeiro), como<br />

também à escravidão, um dos assuntos caros ao romantismo, revelado em<br />

duas obras de cunho expressivo: A escrava Isaura e Rosaura, a enjeitada.<br />

A<strong>in</strong>da presente no rol de aspectos de sua obra, encontra-se o fi o <strong>in</strong>dianista<br />

com O ermitão de Muquém, O índio Afonso e Jupira, uma novela publicada<br />

em História e tradições da província de M<strong>in</strong>as-Geraes, tomada neste livro<br />

como objeto de leitura.<br />

Com a multiplicidade de fatores presentes, o autor compôs, segundo<br />

Bosi (2004, p.142), uma mistura de “elementos tomados à narrativa oral,<br />

os ‘causos’ e as ‘estórias’ de M<strong>in</strong>as Gerais, com uma boa dose de idealiza-


208 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

ção”. Com tendência a descrever os quadros com fi delidade, é considerado<br />

“um contador de histórias”, diante da habilidade com que se aproxima dos<br />

detalhes da natureza e da objetividade com que narra os acontecimentos.<br />

Essa peculiaridade fez que fosse <strong>in</strong>serido, por alguns críticos, no grupo dos<br />

naturalistas. Sodré (1969, p.324) lembra que houve uma confusão, certamente,<br />

pois “estava em pleno campo do romantismo esse contraste. Existiu<br />

em todos, ou quase todos, os fi ccionistas da escola. E Bernardo Guimarães<br />

apresenta o contraste em seu estado de pureza, [...], assume uma importância<br />

que não parecia ter”.<br />

No título História e tradições da província de M<strong>in</strong>as-Geraes há uma das<br />

características mais fortes do autor, um viajante e admirador do sertão de<br />

Mato Grosso, Goiás e M<strong>in</strong>as Gerais. Candido (1997, p.212) afi rma que “os<br />

romances deste juiz, Bernardo Joaquim da Silva Guimarães, parecem boa<br />

prosa de roça, cadenciada pelo fumo de rolo que vai ca<strong>in</strong>do no côncavo da<br />

mão ou pela marcha das bestas de viagem, sem outro ritmo além do que lhes<br />

imprime a disposição de narrar sadiamente, com simplicidade”.<br />

Nesse ritmo, a obra constitui-se de três textos: A cabeça do Tira-Dentes,<br />

A fi lha do fazendeiro e Jupira. A confi guração que possuem aproxima-os<br />

muito mais da novela, dada sua extensão e sua organização em capítulos,<br />

do que do conto, considerada sua brevidade. Parte de um motivo histórico,<br />

o <strong>in</strong>confi dente, passa pelo tema do <strong>in</strong>terior, da fazenda, tão ao gosto de<br />

Guimarães e chega ao elemento <strong>in</strong>dígena, a<strong>in</strong>da cultuado, por estar <strong>in</strong>tr<strong>in</strong>secamente<br />

ligado à formação de novos vilarejos, onde se deu o encontro das<br />

etnias e o surgimento do caboclo.<br />

Da obra, destacou-se um texto para conjugar sua confi guração com I-<br />

Juca Pirama, de Gonçalves Dias e a tríade alencariana. Jupira desponta no<br />

cenário romântico de Guimarães como um texto que mescla uma temática<br />

sui generis. Na horizontalidade de seus temas podem ser lidos dois percursos:<br />

no primeiro, as relações entre <strong>in</strong>dígenas e não índios, pautadas pelas<br />

diferenças entre os costumes do colonizador, notadas nos hábitos impostos<br />

pelo Sem<strong>in</strong>ário de Nossa Senhora Mãe dos Homens; no segundo, a fi gura<br />

do índio destribalizado, que, des<strong>in</strong>tegrado de sua natureza, passa a ser<br />

atraído pelos valores surgidos nas situações de contato, nas quais ocorre a<br />

negação de seus próprios valores. Na verticalidade de seus temas é possível<br />

encontrar o fi o condutor que o <strong>in</strong>tegra ao conjunto de obras românticas,<br />

em seu extrato estilístico-estrutural e temático, como o aspecto passional,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 209<br />

desencadeado pela protagonista, a índia Jupira. Conservando o perfi l do índio,<br />

como já <strong>in</strong>stituído em Alencar, com atributos idealizados, Guimarães<br />

tonaliza a protagonista ao mérito de grau de Iracema, mas, ao colocá-la na<br />

l<strong>in</strong>ha de frente nas relações de contato, desvia o índio heroicizado e personagem<br />

representante de uma nação que se defi ne como povo para uma<br />

fi gura mais próxima ao mundo exterior e em crise.<br />

Na articulação do enredo em torno desses aspectos, a narrativa se mostra<br />

de forma l<strong>in</strong>ear, com um narrador atento aos detalhes, porém, externo<br />

ao que observa, dando-se ao direito de apresentar os fatos conforme seus<br />

olhos alcançam. A organização do texto dá-se em dez capítulos, <strong>in</strong>terligados<br />

em termos de sucessão de fatos. O primeiro capítulo, apenas, foi deslocado<br />

do andamento, o qual <strong>in</strong>sere, <strong>in</strong> media res, a cena em que Baguary,<br />

índio Gua<strong>in</strong>ares, tenta obter Jupira como esposa, perante sua mãe. A partir<br />

do segundo capítulo, a narrativa desenvolve uma estrutura convencional,<br />

ao molde romântico, colocando o leitor diante da localização geográfi ca e<br />

temporal, como também da apresentação das personagens para, posteriormente,<br />

acentuar suas ações. Como bom contador de casos, a localização<br />

geográfi ca possui uma precisão, como se vê no trecho segu<strong>in</strong>te: “em seu<br />

lado sudoeste a província de M<strong>in</strong>as term<strong>in</strong>a em um ângulo agudo, em uma<br />

vasta nesga de terra encravada entre as províncias de Goiás e de São Paulo,<br />

das quais a separam os dois grandes rios Parnaíba e Rio Grande” 1 (Guimarães,<br />

s. d., p.191).<br />

Nessa l<strong>in</strong>earidade explícita, é possível perceber o senso geográfi co, próprio<br />

do autor em relação à fi guração do sertanejo, que o quer situado num<br />

espaço <strong>in</strong>termediário entre o homem do litoral e o <strong>in</strong>dígena em seu habitat.<br />

A abertura do ângulo pelo qual se alargam as possibilidades de <strong>in</strong>teração do<br />

índio com o colonizador se dá por meio da <strong>in</strong>stituição mediadora entre as<br />

duas culturas: “acima da confl uência dos dois rios está situado o Sem<strong>in</strong>ário<br />

de Nossa Senhora Mãe dos Homens, fundado há cerca de c<strong>in</strong>quenta anos<br />

pelos padres da Congregação da Missão de S. Vicente de Paula em uma vasta<br />

e rica fazenda, que lhes deixou em legado um opulento fazendeiro daquelas<br />

paragens” (idem, ibidem).<br />

1 Tomou-se a liberdade de fazer a atualização ortográfi ca do texto orig<strong>in</strong>al com o objetivo de<br />

facilitar a leitura.


210 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

A localização estratégica do Sem<strong>in</strong>ário impõe o ponto de <strong>in</strong>tersecção na<br />

tessitura do enredo, a partir do qual se abrem as diversas biografi as que vão<br />

se encontrando no decorrer das ações. Os fi os que dão sustentação à trama,<br />

dentre eles o do <strong>in</strong>dígena, são abrigados sob a providência do Sem<strong>in</strong>ário,<br />

como o próprio epíteto anuncia, “Mãe dos Homens”: “por aqueles sertões<br />

vagavam por esse tempo alguns restos de tribos selvagens v<strong>in</strong>das de Goiás<br />

e Mato Grosso, já algum tanto familiarizadas com a sociedade dos brancos,<br />

mas conservando a<strong>in</strong>da os hábitos selváticos e a <strong>in</strong>dependência da vida errante”<br />

(ibidem, p.192). Note-se, em pr<strong>in</strong>cípio, que o senso social presente<br />

na narrativa marca dist<strong>in</strong>tamente o projeto em que Guimarães se <strong>in</strong>sere:<br />

de um lado o selvagem que se familiariza com o não índio; de outro, conserva<br />

seus hábitos, destacando a vida errante como aspecto mais relevante.<br />

Não se trata, então, de fi gurar o nativo em seu estado de natureza pura, em<br />

harmonia com a natureza e com o homem. Há algo que atravessa a cultura<br />

selvática e chega à cultura do colonizador, fazendo-os <strong>in</strong>teragir, seja pela<br />

diferença dos hábitos ou impulsionados pelas mesmas paixões.<br />

No deslocamento dos olhares e das ações, é possível perceber o enfrentamento<br />

que se dá entre a Igreja e o nativo:<br />

os missionários de S. Vicente, porém, parece que não são dotados daquele t<strong>in</strong>o e<br />

habilidade, de que dispunham os discípulos de Ignácio de Loyola para catequizar<br />

os <strong>in</strong>dígenas. Por vezes conseguiram reunir na fazenda alguns bandos; mas<br />

nunca alcançaram que se sujeitassem por muito tempo a um trabalho cont<strong>in</strong>uo<br />

e regular. (ibidem, p.192-3)<br />

À medida que se impõe o peso da cultura <strong>in</strong>vasora, o nativo recorre a<br />

estratégias de evasão, para manter-se ligado ao seu ethos:<br />

atraídos pelo desejo de obterem algumas roupas, ferramentas, armas e enfeites,<br />

acudiam de quando em quando ao sem<strong>in</strong>ário; mas no fi m de um a dois meses<br />

quando muito aborreciam-se do trabalho, entregavam-se a sua natural <strong>in</strong>dolência<br />

e, se apertavam com eles, desapareciam, e <strong>in</strong>ternavam-se de novo pelas<br />

matas do Rio Grande, cont<strong>in</strong>uando sua vida nômade e selvática. (ibidem)<br />

Mesmo com nuanças do estilo romântico de fi gurar o <strong>in</strong>dígena, há resquícios<br />

de um olhar que se prende à troca de objetos, por exemplo, como


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 211<br />

ocorrera desde os primeiros colonizadores, passando por Marechal Rondon<br />

e se perpetuando na narrativa que os vê com “natural <strong>in</strong>dolência” e com<br />

vida “nômade e selvática”, alud<strong>in</strong>do à preguiça, à ociosidade que os primeiros<br />

textos dos cronistas imprimiram como estereótipo.<br />

Se considerados esses fatores isoladamente na narrativa, corre-se o risco<br />

de não compreender o lugar em que o texto de Guimarães ocupa no cenário<br />

romântico brasileiro, no que lhe diz respeito ao teor <strong>in</strong>dianista, uma vez que<br />

há certo desvio dos alicerces. No entanto, é no vértice do ângulo em que se<br />

encontra o motivo pr<strong>in</strong>cipal, do qual se irradiam as demais l<strong>in</strong>has e que sustenta<br />

o status dessa confi guração. Jupira, personagem central, merece atenção,<br />

pelo perfi l que lhe é dado, fazendo-a ocupar relevância no percurso de<br />

leitura que se pretende desenvolver.<br />

Sua gênese como personagem de origem <strong>in</strong>dígena aponta para a mistura<br />

de mãe cabocla, Jurema, e de pai branco, José Luiz, dos quais herda, além<br />

do aspecto híbrido de sangue, o batismo católico, dado o emprego do pai no<br />

sem<strong>in</strong>ário de Campo Belo: “batizaram-se ao mesmo tempo a mãe e a fi lha,<br />

e no dia segu<strong>in</strong>te o pai e a mãe receberam-se em legítimo matrimônio. Jurema<br />

trocou o seu nome selvático pelo de Anna, e a fi lha, que a mãe chamava<br />

Jupira, pelo nome de Maria” (ibidem, p.193). Como se pode notar, os dois<br />

nomes que assumem após o batismo referem-se às entidades católicas, Ana,<br />

mãe de São José, e Maria, mãe de Jesus. Entende-se que a troca dos nomes,<br />

pelo batismo, acentua o que já havia ocorrido na narrativa de O Guarani,<br />

de Alencar, por exemplo, em que ocorre uma forma de concessão social.<br />

Só com o batismo e com o nome de seu senhor seria possível salvar Ceci<br />

da catástrofe. A comunhão com o universo do colonizador é mediada pela<br />

adm<strong>in</strong>istração de um s<strong>in</strong>al cristão que signifi ca <strong>in</strong>serção. Dessa maneira,<br />

Jupira e Jurema assumem feição cristã ao modelarem-se nomeadamente ao<br />

colonizador, “como se a sua atitude devota para com o branco representasse<br />

o cumprimento de um dest<strong>in</strong>o” (Bosi, 1992, p.178).<br />

A partir da fi liação explicitada, a narrativa se volta às ações nucleares de<br />

Jupira. Desse modo, a construção da personagem passa a ocupar um espaço<br />

signifi cativo em relação às demais. Em sua evolução biográfi ca, é possível<br />

visualizar uma gradação crescente de caracterização, <strong>in</strong>iciada pela vertente<br />

física, ao gosto romântico, com <strong>in</strong>úmeras passagens tomadas à semelhança<br />

de Iracema, de Alencar, que remetem à fi gura expressiva de uma nativa.<br />

Isso se pode notar, por exemplo, em: “nas selvas Jupira cresceu l<strong>in</strong>da e gar-


212 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

bosa como a palmeira das camp<strong>in</strong>as” (Guimarães, s. d., p.200); “era alta e<br />

bem feita. Os cabelos negros, corredios e luzentes como asa de anu, [...].<br />

Os olhos um pouco levantados nos cantos exteriores eram bem rasgados, e<br />

dardejavam das pupilas negras lampejos, que denunciavam o ardor de seu<br />

temperamento e uma alma enérgica e resoluta” (ibidem, p.216).<br />

A<strong>in</strong>da sob os holofotes românticos da descrição dos detalhes, a mestiça<br />

é desenhada pelo fi o encorpado de adjetivos que a estampam com uma placidez<br />

aparente, própria do homem do sertão:<br />

os lábios rubros, carnosos e úmidos eram como dois favos turgidos de mel da<br />

mais <strong>in</strong>efável voluptuosidade, e quando se fendiam em um sorriso mostravam<br />

duas l<strong>in</strong>has de alvíssimos dentes um pouco aguçados como os dos carnívoros, e<br />

seu sorriso t<strong>in</strong>ha s<strong>in</strong>gular e <strong>in</strong>defi nível expressão de <strong>in</strong>genuidade e de selvática<br />

fereza. A todos esses encantos, a todas essas l<strong>in</strong>has e voluptuosas formas servia<br />

como de brilhante <strong>in</strong>vólucro a tez de uma cor orig<strong>in</strong>al, um róseo acaboclado,<br />

como que dourado pelos raios do sol, que dava peregr<strong>in</strong>o relevo à sua l<strong>in</strong>da fi -<br />

gura. (ibidem, p.216)<br />

É possível perceber nos pormenores da descrição o peso do ardor romântico<br />

pelas tonalidades e uma oscilação entre a fi gura angelical, portadora<br />

de <strong>in</strong>genuidade que sua natureza fecundou, e a explosão da sensualidade,<br />

expressa na imagem de fera selvagem. Com isso, a personagem se constitui<br />

como um prolongamento do bom selvagem, com adereços não percebidos<br />

em Iracema, por exemplo, em que predom<strong>in</strong>a a fi gura “cheia de santidade e<br />

enlevo”, como o próprio Alencar lhe atribuiu no prefácio de Sonhos d’Ouro.<br />

Na composição do quadro da personagem, encontra-se a comparação<br />

reiterativa com os animais e com as plantas, que revela, aos poucos, sua<br />

personalidade, sa<strong>in</strong>do da condição de pureza para a de fera. Em sua beleza<br />

natural, Jupira encontra semelhanças com “a palmeira das camp<strong>in</strong>as”, “peregr<strong>in</strong>a<br />

fl or das selvas”, que foge do índio Baguary como “a lontra foge do<br />

jacaré, ou como a pomba se esconde do gavião”, tal qual a “caça acossada<br />

pelo jaguar” (ibidem, p.200). A<strong>in</strong>da na fase <strong>in</strong>fantil, “a men<strong>in</strong>a crescia l<strong>in</strong>da,<br />

engraçada e travessa como uma ariranha” (ibidem, p.195), “mas esquiva<br />

e soberba como a ema” (ibidem, p.200).<br />

Assim como o desabrochar da “fl or do ipê”, a que é comparada pela<br />

mãe, no momento de entregá-la ao pretendente Baguary, a personagem as-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 213<br />

sume outras características diante do alargamento do círculo de ações que<br />

pratica. Negando-se a se entregar, ela passa a ser “arisca e medrosa como<br />

a saracura do brejo” (ibidem, p. 207), e sem saída, “deixou-se fi car muda e<br />

queda, como uma corça, que sentiu no cangote a garra aguçada da sussuarana”<br />

(ibidem, p.210).<br />

Depois do assass<strong>in</strong>ato de Baguary, resultado da fl agrante mudança de<br />

temperamento e da agilidade de Jupira, desenvolve-se outro confl ito, que<br />

envolve, a partir dele, uma aproximação maior entre a cabocla e um jovem<br />

não índio, Carlito, adolescente, sobr<strong>in</strong>ho de José Luiz. Morador do<br />

sem<strong>in</strong>ário, desde cedo acompanhou sua prima em suas travessuras, até que<br />

“arrularam em segredo seus primeiros amores” (ibidem, p.222). Mesmo<br />

com a aversão aos homens, desde a morte do cacique, não tolerou que seu<br />

amor da <strong>in</strong>fância a tivesse trocado por uma fi lha da agregada ao sem<strong>in</strong>ário.<br />

Diante disso, a metamorfose <strong>in</strong>stala-se em situações que marcam a ruptura,<br />

como num ritual de passagem: “era a primeira vez que chorava em dias de<br />

sua vida, desde que deixara de ser criança” (ibidem, p.231) A comparação<br />

estende seu signifi cado de acordo com as características similares dos<br />

animais: “as lágrimas [...] bem depressa se estancaram, e os olhos da cabocla<br />

reluziram secos e c<strong>in</strong>tilantes como os da jararaca enfurecida” (ibidem,<br />

p.231, grifo nosso). O choro e o desejo de v<strong>in</strong>gança, <strong>in</strong>seridos no contexto,<br />

evidenciam, então, uma mudança de atitude da personagem, que passa a<br />

articular as estratégias que levariam Carlito à morte. Isso pode ser apreendido<br />

no ímpeto de estancar as lágrimas e ter os olhos secos e reluzentes, uma<br />

explosão do sentimento transformador que, mesmo dissimulado diante do<br />

amante, é arquitetado na expressão do olhar.<br />

Se no primeiro <strong>in</strong>stante de transformação aparece a fi gura da “jararaca<br />

enfurecida”, como a anunciar que a personagem <strong>in</strong>terromperia um ciclo,<br />

no segundo é notável a gradação entre o uso de animais e as ações que desencadeia:<br />

“Jupira, enfurecida como a boic<strong>in</strong><strong>in</strong>ga que foi pisada, agarra-lhe<br />

num braço, morde-o e enterra-lhe os agudos dentes com toda a força até<br />

esguichar sangue” (ibidem, p.236). Nota-se, portanto, que a presença da<br />

“boic<strong>in</strong><strong>in</strong>ga”, ou seja, da cobra cascavel, como é conhecida também no Brasil,<br />

e extremamente venenosa, acentua o caráter de violação das virtudes<br />

da cabocla até então. A agudeza do gesto da personagem é vista pelo próprio<br />

narrador como uma demonstração do que poderia vir posteriormente.<br />

Ele mesmo pré-anuncia ao leitor: “de feito, para um primeiro arrufo,


214 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

uma dentada daquelas não era má estreia, e fazia pressagiar para o segundo<br />

um braço quebrado, e para o terceiro uma punhalada” (ibidem, p.237). A<br />

presença do réptil também é encontrada em Alencar, no episódio em que<br />

“Iracema silvou como a boic<strong>in</strong><strong>in</strong>ga; e arrojou-se contra a fúria do guerreiro<br />

tabajara. A arma rígida tremeu na destra possante do chefe e o braço caiulhe<br />

desfalecido” (Alencar, 2004a, p.52). Como se nota, a fi gura ofídica nos<br />

dois excertos imprime o caráter de dom<strong>in</strong>ação de duas <strong>in</strong>dígenas guerreiras,<br />

dist<strong>in</strong>tas no combate, pois a primeira luta por um amor; a segunda, por seu<br />

povo. O olhar estendido e a metáfora do poder agregam em seu entorno a<br />

ambiguidade presente nas duas personagens, fusionada na imagem de doçura,<br />

primeiramente, e na expressão de mulher dom<strong>in</strong>adora e valente em<br />

outra fase.<br />

No roteiro de aproximações, a personagem a<strong>in</strong>da recebe atributos de<br />

perseguidora, como no excerto que segue: “já havia quatro ou c<strong>in</strong>co dias<br />

que Carlito não fazia uma visita a casa de Genoveva e não via Rosalia com<br />

medo de Jupira, que o espreitava lá de sua janel<strong>in</strong>ha, ou lhe seguia a pista<br />

sutil e sorrateira como a jaguatirica” (Guimarães, s. d., p.242, grifo nosso).<br />

Além do fel<strong>in</strong>o, que evoca a fi gura do ser ágil e traiçoeiro, é-lhe dest<strong>in</strong>ado o<br />

furor com que quer se v<strong>in</strong>gar do amante que a rejeita, tal qual “um javardo”<br />

batendo os dentes. A gradação, que se tem notado no decorrer da narrativa,<br />

estabelece um elo com as ações de menor ou maior gravidade realizadas pela<br />

personagem, que desliza das travessuras (como a ariranha), na <strong>in</strong>fância, em<br />

que apreciava caçar pássaros, subir em árvores como os macacos ou nadar<br />

“nos profundos remansos”, para culm<strong>in</strong>ar com a presença do jaguar, no<br />

qual são depositadas as características de estrategista hábil e dissimulado<br />

para alcançar sua presa, como ocorre na arquitetura da morte de Carlito,<br />

juntamente com Quir<strong>in</strong>o.<br />

Nesse <strong>in</strong>tricado jogo criativo, que a narrativa de Guimarães tece, há um<br />

elemento que se coloca paralelo à l<strong>in</strong>ha comparativa com plantas e animais.<br />

O olhar da protagonista é sempre tomado pelo narrador como um <strong>in</strong>dicativo<br />

de nova ação ou reação. É pelo olhar que a personagem se deixa ler em<br />

suas manifestações de sentimento, que o narrador capta e traduz em ação no<br />

enredo. Assim, <strong>in</strong>forma ao leitor a característica dos olhos da personagem,<br />

que “dardejavam das pupilas negras lampejos” e “denunciavam o ardor de<br />

seu temperamento e uma alma enérgica e resoluta”. Um aspecto relevante<br />

que a põe em situação de igualdade com o poder do olhar ofídico. Por outro


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 215<br />

lado, é o mesmo olhar que mergulha em seu <strong>in</strong>terior, revelando sua conduta,<br />

como se manifestasse o desejo que emerge. Diante dos agrados do cacique,<br />

emite o olhar de desdém, marcando a posição de recusa do pretendente:<br />

“Jupira contemplou o peixe por alguns <strong>in</strong>stantes com admiração, depois<br />

olhou para o índio, fez-lhe um ligeiro gesto de agradecimento, e cont<strong>in</strong>uou<br />

no seu serviço” (ibidem, p.188).<br />

É, no entanto, na manifestação da lágrima e de sua <strong>in</strong>terrupção <strong>in</strong>stantânea<br />

que se dá um dos pontos mais marcantes do “ardor de seu temperamento”.<br />

Estancar as lágrimas subitamente não só <strong>in</strong>terrompe a cena, mas também<br />

um ciclo, como já foi visto anteriormente, em relação à comparação<br />

aos animais. “Os olhos da cabocla reluziram secos e c<strong>in</strong>tilantes” (ibidem,<br />

p.231) na manifestação de um estado ansioso por v<strong>in</strong>gança, o que rompe<br />

com o estágio de aparente harmonia. É a metáfora da <strong>in</strong>tervenção no it<strong>in</strong>erário<br />

de ações da personagem oscilante entre o bom selvagem, de Rousseau,<br />

e o seu prolongamento, como constituição de uma natureza plural de<br />

comportamento, consequência da <strong>in</strong>tersecção na cultura dom<strong>in</strong>ante, que<br />

lhe impõe conceitos adversos aos seus.<br />

O olhar que desdenha o outro e o que delimita os estágios de confi guração<br />

da personagem, capturados pelo narrador, somam-se ao que produz<br />

medo em outra personagem: “Carlito fi cou assustado à vista dos lampejos<br />

torvos e s<strong>in</strong>istros, que viu luzirem nos olhos de Jupira num dia que a foi<br />

visitar em sua casa; pareciam relâmpagos, que se desprendiam do seio de<br />

uma nuvem negra e tempestuosa” (ibidem, p.235). Nota-se que o narrador,<br />

no excerto, moldura o olhar da protagonista pelo ângulo de Carlito, alvo da<br />

fúria, comparada à tempestade, o que impõe à narrativa um grau de suspense,<br />

uma vez que a imagem dos olhos anuncia o desfecho da biografi a do<br />

amante rebelado:<br />

– Eu com medo de ti?!... mas parece que estás zangada comigo?...<br />

– Se estou!... Carlito!... não zombes comigo assim, que me matas, ... ou eu<br />

te mato... (ibidem, p.235)<br />

O negro estampado como agouro e anúncio de morte consubstanciase<br />

ao vermelho: “os olhos fuzilavam revérberos cor de sangue” (ibidem,<br />

p.239), numa cena em que o narrador a imprime num quadro paradoxal:<br />

“Jupira em sua cólera era bela e sublime, mas bela e sublime para <strong>in</strong>spirar


216 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

um artista, e não para despertar o ardor e ameigar o coração do amante, que<br />

começa a arrefecer-se” (ibidem, p.239). O jogo presente na descrição do<br />

quadro, em que se embatem dois aspectos, cólera e sublimidade, reitera-se<br />

em relação à outra personagem, Quir<strong>in</strong>o, também pretendente de Jupira, ao<br />

qual lhe dest<strong>in</strong>ava desprezo. A partir da transformação, a protagonista dest<strong>in</strong>a<br />

ao rejeitado atenção especial, mesmo que dissimulada, como forma de<br />

al<strong>in</strong>havar o desfecho trágico para Carlito. No momento em que o narrador<br />

a compara ao jaguar, o olhar desliza do negrume e do sangue para “olhos<br />

em chama” (ibidem, p.243), ao presenciar o encontro de Carlito e Rosalia,<br />

e a<strong>in</strong>da, para “olhos macerados e <strong>in</strong>jetados de sangue [...], o olhar torvo e<br />

desvairado” na presença de Quir<strong>in</strong>o.<br />

Essa <strong>in</strong>tensidade de movimento do olhar e suas variações cromáticas<br />

deságuam no ato de v<strong>in</strong>gança planejado: “a cabocla fi tou em Quir<strong>in</strong>o um<br />

olhar fi rme e penetrante, como quem queira devassar-lhe o fundo da alma”<br />

(ibidem, p.245). Ao perceber o sentimento do suposto pretendente, a protagonista<br />

assume com frieza a condução dos atos e o <strong>in</strong>sere em sua trama,<br />

sem que ele o perceba, uma vez que usa a devoção que lhe dest<strong>in</strong>a em troca<br />

do assass<strong>in</strong>ato do amante que a rejeita. Dentro da canoa, onde ocorre o episódio,<br />

mais uma vez a imagem do olhar é tomada pelo narrador, em face da<br />

paradoxal situação: “Carlito com olhar tranquilo, que revelava a placidez<br />

de sua alma tão serena como a torrente mansa sobre que resvalava”, enquanto<br />

“Quir<strong>in</strong>o com olhos torvos e espantados olhava com <strong>in</strong>quietação<br />

ora para uma ora para outra margem; [...] fi tava olhar s<strong>in</strong>istro e desvairado<br />

sobre o adolescente que estava diante dele” (ibidem, p.253).<br />

Todo o percurso narrativo, gerado no movimento do olhar e na metáfora<br />

animalesca, encerra a ambivalência da construção da personagem protagonista,<br />

movida entre as cenas de acordo com as alterações do aspecto geográfi<br />

co e, sobretudo, do passional, que <strong>in</strong>terfere essencialmente no resultado<br />

das ações. Como é crescente o aspecto da metamorfose, lançando-a num estágio<br />

de extremo desequilíbrio, não lhe é concedido o arrependimento ou o<br />

cancelamento de suas estratégias. Assume, pelo olhar <strong>in</strong>cisivo do narrador,<br />

a posição de “fera”, como anunciara, sem qualquer evidência de sentimentos<br />

de culpa, por exemplo. Às margens, “lançou os olhos pelo rio acima,<br />

[...] Súbita vertigem cobriu-lhe os olhos de uma nuvem cor de sangue [...].<br />

Através de caligem que lhe turvava os olhos, Jupira viu aquela horrível cena<br />

como em um pesadelo [...] (ibidem, p.259).


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 217<br />

A profundidade alcançada pela posição do olhar é fi xada pelo narrador<br />

na palavra “caligem”, ou seja, a protagonista mergulha num nevoeiro <strong>in</strong>terior<br />

espesso diante da cena, e quebra e expectativa do leitor, ao mesmo tempo,<br />

pela manifestação paradoxal: “– Bravo! Bravo! ... muito bem! Gritou a<br />

cabocla com um sorriso de <strong>in</strong>fernal ironia. – Agora venha! Venha depressa<br />

receber o prêmio...” (ibidem, p.260). Um misto de obscuridade e de euforia<br />

marca a curvatura de fechamento da biografi a <strong>in</strong>dividual de Carlito, mas<br />

abre uma vertente com maior relevância no que se refere à <strong>in</strong>tensidade de<br />

construção da personagem. As reações de Jupira oscilam abruptamente, de<br />

modo que o olhar do leitor também é <strong>in</strong>stigado a perceber seus movimentos<br />

em direção ao que irá acontecer.<br />

Somente a v<strong>in</strong>gança bastaria aos olhos do leitor, que vê a protagonista<br />

contemplar o cadáver com “os olhos em brasa” (ibidem, p.261). No entanto,<br />

o olhar, que revelou ao longo do enredo o que poderia ser praticado por<br />

ela, ou as ações que poderiam ser realizadas por outros sob seu comando,<br />

oblitera uma característica do temperamento de Jupira, que só virá à tona<br />

com o cerramento da narrativa:<br />

Quando ela levantou-se com os lábios, as faces e o colo manchados no sangue<br />

de Carlito, estava hedionda!... Quir<strong>in</strong>o horrorizado estava quase a lançar-se<br />

ao rio. Mas ela imediatamente ameigando a voz, e abr<strong>in</strong>do-lhe os braços:<br />

– Agora sou tua, – disse, – abraça-me!<br />

Quir<strong>in</strong>o arrojou-se aos braços dela com o frenesi de uma paixão louca, que o<br />

levara a praticar o mais vil e hediondo assass<strong>in</strong>ato. Mas ao mesmo tempo que a<br />

ia apertando contra o peito, a faca de Jupira lhe ia atravessando o coração, e nas<br />

vascas da morte ele ouvia uma voz rouca e s<strong>in</strong>istra rosnar-lhe ao ouvido estas<br />

palavras:<br />

– Morre também, vil matador! Eu não te quero... (ibidem, p.262)<br />

Além da perspectiva <strong>in</strong>sólita revelada na cena, a narrativa reserva imagens<br />

grotescas, como a canoa “tripulada por uma multidão de urubus, que<br />

disputavam entre si os restos de dois cadáveres” (ibidem, p.262), e “o esqueleto<br />

de uma mulher pendurado a uma árvore por um cipó” (ibidem,<br />

p.263), atribuído à protagonista.<br />

Considerada a biografi a de Jupira um conjunto de ações pert<strong>in</strong>entes às<br />

dos animais, a que foi comparada, e ao movimento do olhar, que prenuncia


218 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

sua conduta temperamental, é possível perceber com acuidade os <strong>in</strong>tervalos<br />

da construção. Vê-se uma personagem transitória entre os atributos moldados<br />

ao estilo romântico, ao teor de Rousseau, e os <strong>in</strong>dícios de um “prolongamento<br />

do bom selvagem” (Bosi, 2004, p.143) em direção às circunstâncias<br />

agravantes do momento em que o nativo desprende-se do estereótipo<br />

histórico-nacional, como em Alencar, para abeirar uma fi sionomia carregada<br />

de traços <strong>in</strong>fl uenciados pelo colonizador. Essa caracterização, segundo<br />

Bosi (2004, p.143), vai ao encontro da “natural má índole”. É notório na<br />

novela o trânsito entre essas duas vias, o que não lhe retira, certamente, o<br />

status maior em relação à sua fi liação ao romantismo, quanto à perspectiva<br />

idealizante da natureza, do amor envolto na esfera fatal e da heroína. Insere,<br />

todavia, uma situação em crise, em que o mundo exterior e suas mazelas<br />

vão tomando um contorno regido pelas leis naturais, como notado nas ações<br />

culm<strong>in</strong>antes da protagonista.<br />

Considerou-se, anteriormente, que Jupira ocupa, na narrativa, uma posição<br />

privilegiada, no vértice do ângulo, do qual se irradiam as demais biografi<br />

as. Vista dessa forma, faz-se mister observar que sua fi guração encontra respaldo<br />

nas duas l<strong>in</strong>has descritas acima, e suscita outros aspectos que derivam<br />

das ações das demais personagens. A l<strong>in</strong>ha tangencial entre eles percorre o<br />

que se pode caracterizar como o <strong>in</strong>ício da realização dos presságios contidos<br />

nos Primeiros cantos, de Gonçalves Dias, nos quais se anunciava a destruição<br />

dos selvagens com a chegada do colonizador. Tanto no poeta quanto no romancista<br />

em análise prevalece, implicitamente, o esquema de representação<br />

de s<strong>in</strong>ais que congregam no seu entorno um lastro de signifi cados múltiplos,<br />

mas todos suspensos pela matriz da passagem do estado de natureza <strong>in</strong>tocada<br />

para a natureza e o homem nativo transformados pela ação do <strong>in</strong>vasor.<br />

É preciso lembrar que, em meio à multiplicidade dos signifi cados, traduzida<br />

na fi gura do índio, encontra-se a construção do ideal nacional. Em<br />

Jupira, projeta-se, além da particularidade do homem natural, própria da<br />

valorização romântica, o olhar que se desloca para o sertanejo, que em sua<br />

confi guração faz emergir outro espaço povoado por um povo híbrido, com<br />

perdas substanciais de seus hábitos e alteração em seu comportamento.<br />

Mesmo assim, a atenção do autor não se desprende do que Roncari (2002,<br />

p.295) considera como “mudança de palco”, em relação ao universo particular<br />

do Novo Mundo: “fosse no plano l<strong>in</strong>guístico, para a construção dos<br />

diálogos e na narração; fosse no plano dos costumes, para a caracterização


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 219<br />

das personagens; fosse na descrição dos locais, para a ambientação da história;<br />

ou a<strong>in</strong>da para apreender o sentido das mudanças em todos os planos”. A<br />

relevância maior desses aspectos na novela de Guimarães, que se v<strong>in</strong>culam<br />

ao romantismo, mas desprendem-se ao mesmo tempo, pela transitoriedade<br />

de enfoque, é apontar que a discussão em torno do nativo não mais se concentra<br />

no aspecto pitoresco, mas na forma de pensar a sua <strong>in</strong>serção e permanência<br />

na sociedade constituída. Mais que isso, fecunda o movimento de<br />

mergulho às origens, de forma a resgatar a fi gura da gênese do país, como se<br />

poderá perceber nas obras elencadas no capítulo segu<strong>in</strong>te, em que prevalece<br />

a escavação do subterrâneo em busca da l<strong>in</strong>guagem poética em suas raízes.<br />

Guimarães prefi gura, em Jupira, uma atitude que será s<strong>in</strong>tetizada em comum<br />

nas obras Macunaíma, Cobra Norato e Manuscrito holandês: a busca<br />

da unidade ante o paradoxal sentido que toma o homem nativo, desajustado<br />

em seu contexto social.<br />

Episódio-referência<br />

Capítulo V<br />

O cadáver de Baguary foi rolando longos dias à mercê da torrente do<br />

Paraná, serv<strong>in</strong>do de pasto aos peixes, e de banquete e batel a um tempo aos<br />

urubus, que sobre ele iam boiando rio abaixo, até que enfi m foi encalhar em<br />

uma praia arenosa justamente em um lugar, onde então achavam-se arranchados<br />

os seus companheiros. Dir-se-ia que a mão do dest<strong>in</strong>o para ali o tangera<br />

de propósito como para clamar v<strong>in</strong>gança. Posto que já meio devorado<br />

pelos peixes, foi logo reconhecido pelos seus. Baguary ao partir lhes havia<br />

prometido, que em menos de três luas havia de voltar com Jupira; que se até<br />

então não aparecesse é por que o teriam morto, e nesse caso deixava a cargo<br />

deles a sua v<strong>in</strong>gança. De feito voltou, mas sem vida e sem Jupira, e apenas<br />

trazendo a<strong>in</strong>da no dorso as fl echas que ela lhe havia cravado, como em vida<br />

havia trazido cravadas no peito as setas, com que os l<strong>in</strong>dos olhos de Jupira<br />

lhe havia atravessado o coração.<br />

Apenas os índios o reconheceram, soltaram grandes alaridos de dó, recolheram<br />

o cadáver em uma grande maca, teceram em torno dele danças<br />

fúnebres, e deram-lhe sepultura à sombra de uma velha sucupira.


220 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Feitas as honras fúnebres ao seu valente chefe, aqueles <strong>in</strong>dígenas trataram<br />

logo de marchar pela margem do Rio-Grande acima a fi m de lhe v<strong>in</strong>garem<br />

a morte. A horda de Baguary era muito mais numerosa e forte do que<br />

o bando desorganizado em que vivia Jupira, o qual constava de relíquias de<br />

hordas devastadas e dispersadas pelos brancos. De longo tempo em contato<br />

com os brancos t<strong>in</strong>ham perdido os hábitos belicosos, e grande parte de sua<br />

coragem e fereza selvática. Em breve chegou-lhes aos ouvidos a notícia de<br />

que a gente de Baguary marchava contra eles afi m de v<strong>in</strong>gar a morte de seu<br />

chefe. Fracos e pusilânimes, aqueles restos de família caiapó não podiam<br />

resistir aos robustos e aguerridos Guayanares, que sobre eles v<strong>in</strong>ham cheios<br />

de cólera e sede de v<strong>in</strong>gança, e seriam <strong>in</strong>falivelmente exterm<strong>in</strong>ados.<br />

Jupira não havia ocultado aos seus a morte do sanhado Baguary; pelo<br />

contrário, risonha e triunfante lhes narrou com toda a franqueza e <strong>in</strong>genuidade<br />

a astúcia de que se valera para livrar-se para sempre daquele feroz<br />

pretendente. Contando como certa sua ruína e possuídos de terror, seus<br />

covardes companheiros resolveram mandar um emissário ao encontro dos<br />

<strong>in</strong>imigos para dar-lhes satisfações e dizer-lhes que nenhuma parte t<strong>in</strong>ham<br />

tido na morte de seu chefe, que fora Jupira a única autora daquele atentado,<br />

e que para aplacar sua justa cólera estavam prontos a entregar-lhes viva ou<br />

morta a crim<strong>in</strong>osa. Este teria sido o dest<strong>in</strong>o da l<strong>in</strong>da cabocl<strong>in</strong>ha se um de<br />

seus pretendentes, esperando assim fazer jus à gratidão e ao amor da rapariga,<br />

não a tivesse avisado da bárbara e aleivosa <strong>in</strong>tenção dos seus.<br />

Jupira e sua mãe fugiram para Campo Belo e acolheram-se a fazenda<br />

dos padres, resolvidas a nunca mais voltarem para a companhia dos seus<br />

pérfi dos companheiros.<br />

Era já a quarta vez que Jupira desde que nascera trocava a selva pela<br />

casa paterna, e a casa pela selva alternativamente. Seu pai a recebeu com<br />

os braços abertos, e sentiu grande alegria em tornar a achar a fi lha, na qual<br />

já há muito havia perdido as esperanças de tornar a pôr os olhos em dias<br />

de sua vida. Recolheu-se para casa, e extasiado de sua formosura e do viço<br />

desenvolvimento de suas esbeltas formas deu-lhe l<strong>in</strong>dos vestidos e enfeites,<br />

que ela de bom grado trocou pelo curto saiote e pelo canitar de que usava<br />

nas selvas, e empregou todos os meios, todas as caricias e seduções possíveis<br />

para fi xá-la de uma vez para sempre no seio da sociedade civilizada.<br />

Se com os trajes selváticos Jupira por seu garbo e gentileza fazia lembrar<br />

uma Moema ou uma L<strong>in</strong>dóia, vestida à maneira de gente civilizada


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 221<br />

era uma rapariga sedutora, capaz de alvoroçar o coração e <strong>in</strong>fl amar o sangue<br />

de um anacoreta. Era alta e muito bem feita. Os cabelos negros, corredios e<br />

luzentes como asa de anu, eram tão bastos e compridos que a l<strong>in</strong>da cabocla<br />

a<strong>in</strong>da pouco adestrada na arte de toucar, via-se em apuros para acomodálos<br />

sobre sua pequena cabeça e muitas vezes rebelando-se contra as fi tas<br />

e prisões, as quebravam e tombando-lhe pelo colo se derramavam em liberdade<br />

pelos nédios e morenos ombros. Os olhos um pouco levantados<br />

nos cantos exteriores, eram bem rasgados, e dardejavam das pupilas negras<br />

lampejos, que denunciavam o ardor de seu temperamento e uma alma enérgica<br />

e resoluta. Os lábios rubros, carnosos e úmidos eram como dois favos<br />

túrgidos de mel da mais <strong>in</strong>efável voluptuosidade, e quando se fendiam em<br />

um sorriso mostravam duas l<strong>in</strong>has de alvíssimos dentes em pouco aguçados<br />

como os dos carnívoros, e seu sorriso t<strong>in</strong>ha s<strong>in</strong>gular e <strong>in</strong>defi nível expressão<br />

de <strong>in</strong>genuidade e de selvática fereza. A todos esses encantos, a todas essas<br />

l<strong>in</strong>has e voluptuosas formas, servia como brilhante <strong>in</strong>vólucro a tez de uma<br />

cor orig<strong>in</strong>al, um róseo acaboclado, como que dourado pelos raios do sol,<br />

que dava peregr<strong>in</strong>o relevo a sua l<strong>in</strong>da fi gura.<br />

Quando ia à missa aos dom<strong>in</strong>gos, na pequena capela do sem<strong>in</strong>ário, todos<br />

os olhos voltavam-se para a <strong>in</strong>teressante cabocla, todos a contemplavam sorr<strong>in</strong>do<br />

como mais curioso <strong>in</strong>teresse e complacência. Ate mesmo os seus gestos<br />

e ademanes um pouco estouvados, o ar desajeitado e constrangido, com que<br />

vergava as suas novas vestiduras, tudo nela parecia galante e encantador.<br />

Se bem que na pia batismal tivesse recebido o nome de Maria, os moradores<br />

de Campo Belo conservavam-lhe sempre o seu nome <strong>in</strong>dígena de Jupira,<br />

por acharem-no mais galante e entenderem que lhe assentava melhor.<br />

É escusado dizer que não faltaram apaixonados aquela tão sedutora quão<br />

peregr<strong>in</strong>a formosura. Mas como já corria pela aldeia a historia da morte do<br />

cacique que às mãos da frágil men<strong>in</strong>a pagara com a vida a sua audácia, os<br />

amantes de Jupira t<strong>in</strong>ham-lhe certo respeito, e não a requestavam senão<br />

com certa timidez e reserva, se bem que nenhum deles tivesse <strong>in</strong>tenção de<br />

lançar-lhe mãos violentas, mas aquele episódio de sua vida rodeando-a de<br />

um terrível prestigio servia-lhe de salva-guarda, e de broquel contra qualquer<br />

desacato ao seu pudor.<br />

Entre os amantes de Jupira o mais assíduo, ardente e apaixonado, e talvez<br />

também o mais guapo, o mais rico e considerado de todos, era um mancebo<br />

por nome Quir<strong>in</strong>o, fi lho de um abastado fazendeiro daqueles arredo-


222 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

res. Era um rapagão alto e bem disposto, de barba cerrada e negra, e pupila<br />

ardente e viva, em que transluzia todo o fogo de sua alma capaz de todos os<br />

extremos.<br />

Quir<strong>in</strong>o amava, não como se ama na cidade, onde se namora muito e<br />

ama-se quase nada, mas como se ama no sertão, em meio da solidão, debaixo<br />

daqueles céus ardentes, no seio daquela natureza esplêndida; amava<br />

com paixão, com fogo. Quir<strong>in</strong>o frequentava assiduamente a casa de José<br />

Luiz, onde cercava a rapariga de mil atenções, obséquios e adorações, sem<br />

que ela nem de leve e mostrasse sensível a tantas demonstrações de afeto,<br />

por mais que ele empregasse todos os meios ao seu alcance para ganhar-lhe<br />

o coração. A pr<strong>in</strong>cípio nem lhe passava pelo pensamento casar-se com uma<br />

pobre cabocla, fi lha de uma gentia e criada nos matos.<br />

Porém quanto maior era a <strong>in</strong>sensibilidade e esquivança de Jupira, mais<br />

ardente se tornava a paixão do rapaz, e mais se lhe atiçava o desejo de possuí-la;<br />

estava disposto a empregar todos os meios, a fazer todos os sacrifícios<br />

para esse fi m.<br />

Como Jupira tratava todos os outros amantes com a mesma <strong>in</strong>diferença<br />

e talvez pior do que a ele, Quir<strong>in</strong>o entendeu que toda aquela <strong>in</strong>sensível<br />

esquivança não era senão resultado dos poucos anos e da selvática timidez<br />

e acanhamento da rapariga, e esperava que de modo nenhum ela recusasse<br />

uma proposta de casamento com um moço como ele era, bem apessoado,<br />

rico e de boa família. Depois de ter lutado em vão por vencer a obst<strong>in</strong>ada<br />

<strong>in</strong>diferença da men<strong>in</strong>a, era aquele o seu último recurso. Uma vez casado<br />

mais fácil lhe seria catequizá-la e ganhar-lhe a vontade e o coração.<br />

Demais, já esse casamento não lhe parecia tão ridículo e desigual, pois<br />

Jupira era fi lha legítima de José Luiz, e José Luiz empregado do sem<strong>in</strong>ário,<br />

t<strong>in</strong>ha adquirido alguns bens de fortuna, e era homem que gozava de respeito<br />

e consideração no lugar. Quir<strong>in</strong>o pois, não hesitou mais um <strong>in</strong>stante, e foi<br />

pedir-lhe a mão de sua fi lha.<br />

José Luiz acolheu com <strong>in</strong>fi nita satisfação a proposta do mancebo; não<br />

podia desejar melhor partido nem maior ventura para sua fi lha, e foi logo<br />

comunicar-lhe a pretensão do moço.<br />

Ela porém com grande pasmo e desgosto de José Luiz recusou-se obst<strong>in</strong>adamente<br />

a semelhante casamento. Foi debalde que José Luiz por muitos<br />

dias lutou com ela empregando exortações, conselhos, súplicas e até por fi m<br />

repreensões e ameaças para <strong>in</strong>duzi-la a aceitar a mão do Quir<strong>in</strong>o.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 223<br />

– Meu pai, – disse ela afi nal com um sorriso, que fez arrepiarem-se as<br />

carnes a José Luiz, – n<strong>in</strong>guém será capaz de dar-me um marido contra a<br />

m<strong>in</strong>ha vontade; eu já sei como a gente se livra deles, quando nos querem<br />

levar à força.<br />

José Luiz assombrado com aquela resposta recolheu-se silencioso e desistiu<br />

do seu propósito. (p.213-20)


PARTE III<br />

RIO ACIMA, RIO ABAIXO:<br />

A ARQUEOLOGIA DA LINGUAGEM<br />

MITOPOÉTICA


Para justifi car a presença das obras nesta parte, toma-se de empréstimo<br />

a imagem usada por Cavalcanti Proença, da tradição popular, rio acima/<br />

rio abaixo, presente no título, com o <strong>in</strong>tuito de fazer visível o movimento<br />

das águas que se encontraram no desaguadouro do mito. Em meio aos<br />

canais que levam e trazem os sedimentos da cultura primitiva, os três textos<br />

aqui selecionados têm em comum a escavação do subterrâneo em busca<br />

do frescor da l<strong>in</strong>guagem poética, que os sustentam em sua arquitetura,<br />

bem como o encontro das raízes, para fazer um Brasil à sua semelhança,<br />

descoberto em seu espaço <strong>in</strong>terior, não apenas no litoral e nos centros<br />

urbanizados.<br />

Há, contudo, também, entre os autores, uma característica que os aproxima<br />

quando se trata de compreender a matéria constitutiva de suas obras:<br />

foram viajantes. Cada um, aliado aos seus ideais, palmilhou os horizontes<br />

das terras compridas e dos sertões povoados de seres imag<strong>in</strong>ários que foram<br />

tecidos à medida que os olhos captavam as imagens dilatadas de um mundo<br />

a ser visto e sentido. Das andanças nasceram Macunaíma (1928), de Mário<br />

de Andrade, Cobra Norato (1931), de Raul Bopp e Manuscrito holandês ou<br />

A peleja do caboclo Mitavaí com o Monstro Macobeba (1960), de Manuel<br />

Cavalcanti Proença.<br />

A presença das três obras marca-se pela relação <strong>in</strong>trínseca, verifi cada<br />

na análise, que busca a l<strong>in</strong>ha constitutiva da fi guração <strong>in</strong>dígena como um<br />

aspecto s<strong>in</strong>cronizante, e que confi rma, também, outros elementos de <strong>in</strong>formação<br />

externa. As características que ressaltam são as mesmas, com pequenas<br />

variações no que se estende do mítico e folclórico, matéria mais genérica


228 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

e comum entre elas, ao tema diretamente ligado ao aspecto socioeconômico<br />

e de desestruturação cultural, mais profundo em Manuscrito holandês.<br />

Mesmo com o distanciamento temporal de Cavalcanti Proença em relação<br />

aos dois outros autores, é necessário ressaltar que sua narrativa é <strong>in</strong>serida<br />

neste conjunto em razão dos traços paralelos ao projeto do qual Macunaíma<br />

e Cobra Norato emergiram. São obras que traduzem em seu bojo alguns<br />

dos mais importantes aspectos da evolução da literatura brasileira rumo à<br />

sua expressão autônoma, constante nas letras nacionais desde as primeiras<br />

manifestações, mas presente com maior vigor no modernismo, em que os<br />

anseios de um momento de vida coletiva fazem eclodir o empenho nacionalista<br />

na afi rmação dos traços de identidade.<br />

Esse período de consolidação das letras e das artes brasileiras teve como<br />

ápice a polêmica Semana de Arte Moderna, para a qual confl uíram as vibrações<br />

em torno da visão mais real do Brasil. Tornou-se, assim, porta-voz de<br />

uma geração de <strong>in</strong>telectuais com s<strong>in</strong>tomas de exaltação nacional, que determ<strong>in</strong>aria<br />

transformações não apenas no âmbito das artes, mas também, nos<br />

fatores sociais, econômicos e históricos. Se não modifi caram as consciências<br />

a<strong>in</strong>da arraigadas nos padrões arcaicos, fi zeram estremecer os pilares de um<br />

passado colonial, de cultura transplantada, para assumir o nacionalismo<br />

como projeto de emancipação política, cultural e econômica. Assim, manchados<br />

os costumes sociais e políticos, segundo Andrade (s. d., p.231), “o<br />

movimento modernista foi o prenunciador, o preparador e por muitas partes<br />

o criador de um estado de espírito nacional”, exig<strong>in</strong>do do escritor uma<br />

postura legítima ante o local, quer seja ele nacional, quer seja regional. Que<br />

não fosse de caráter programático e de tom passional como no romantismo,<br />

mas no sentido antropológico, voltado à expressão <strong>in</strong>terna do povo, com<br />

seu universo de mitos, lendas, danças, festas e falares, entrelaçados ao passado<br />

histórico, trazidos sob novo olhar, por códigos coerentes com o estado<br />

de lucidez exigido pelo movimento.<br />

Todos esses aspectos não poderiam fi gurar apenas como episódicos, <strong>in</strong>dividuais,<br />

pois o movimento, a<strong>in</strong>da segundo Andrade (s. d., p.235-6), “foi<br />

uma ruptura, foi um abandono de pr<strong>in</strong>cípios e de técnicas consequentes,<br />

foi uma revolta contra o que era a Inteligência nacional [..], em<strong>in</strong>entemente<br />

destruidor”. Dessa maneira, foi caracterizado como aristocrático “pelo<br />

seu caráter de jogo arriscado, pelo seu espírito aventureiro ao extremo<br />

[...]”, necessitando, portanto, de um esboço coletivo, no qual estivessem


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 229<br />

presentes os três pr<strong>in</strong>cípios fundamentais apontados por Mário de Andrade:<br />

“o direito permanente à pesquisa estética; a atualização da <strong>in</strong>teligência<br />

brasileira; e a estabilização de uma consciência criadora nacional”<br />

(ibidem, p.242).<br />

Se a realidade brasileira deveria ser exponencial nas produções da época,<br />

os <strong>in</strong>strumentos a representá-la deveriam, também, seguir a mesma ordem.<br />

Para isso, as <strong>in</strong>ovações passariam necessariamente pelas pesquisas do falar<br />

e escrever, uma forma de renovar a l<strong>in</strong>guagem pela representação do<br />

estado de consciência que rompia com a mentalidade conservadora a serviço<br />

da burguesia e do Estado. Assim, as diretrizes avançaram para o que<br />

o país possuía de mais orig<strong>in</strong>al, sua cultura primitiva, como um pr<strong>in</strong>cípio<br />

basilar de recomeço, para conhecer a origem e, dela, extrair o que lhe é de<br />

mais signifi cativo. Esse desejo de conhecimento, que perpassou sociedades<br />

dist<strong>in</strong>tas, fez o movimento de “voltar atrás”, como forma de “atualizar determ<strong>in</strong>ados<br />

eventos decisivos da primeira <strong>in</strong>fância”, como propõe Eliade<br />

(2006, p.74), ao <strong>in</strong>terpretar a ideia freudiana que ressalta a crença de que é<br />

possível reatualizar os eventos primordiais revelados nos mitos. Assim, o<br />

mito cosmogônico, perseguido nos ideais modernistas, cumpriria uma de<br />

suas funções, a criação poética, pela qual se reviveria o evento da constituição<br />

do brasileiro.<br />

Além do aspecto do retorno às origens, é necessário apontar que as obras<br />

em questão não são produções isoladas, mas frutos de um conjunto de fatores<br />

que abarcam, afora o contexto já mencionado, raízes v<strong>in</strong>culadas a momentos<br />

signifi cativos da história da nação, como o nacionalismo, proposto<br />

paralelamente à Independência, que se fez fértil no modernismo.<br />

Têm-se, dentro das plataformas revolucionárias do movimento, Macunaíma<br />

e Cobra Norato, exemplos ligados “por uma <strong>in</strong>quietação, subjacente<br />

à qual se reconhece o <strong>in</strong>tuito programático de redescobrir e <strong>in</strong>corporar a<br />

realidade brasileira à literatura, assum<strong>in</strong>do a identidade nacional em suas<br />

raízes” (Averbuck, 1985, p.33). Manuscrito holandês ou A peleja do caboclo<br />

Mitavaí com o Monstro Macobeba, publicado bem mais tarde, em 1960, corresponde<br />

a essa <strong>in</strong>quietação desde a questão do “ir à origem”, em busca de<br />

um <strong>in</strong>ventário da vida brasileira pelos relatos do mito, da lenda e do folclore,<br />

como também, no que diz respeito ao tema da travessia, ponto comum<br />

entre as três obras e ancorado no manancial recolhido pelos escritores, conforme<br />

atestam suas biografi as.


230 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

No conjunto, são ass<strong>in</strong>alados os traços comuns, o nacional e o popular<br />

redescobertos nas fontes da música e na oralidade típica e espontânea do<br />

povo, como em Macunaíma e Cobra Norato, acrescidos de um tom mais<br />

crítico em Manuscrito holandês, que, além de <strong>in</strong>corporar esses elementos à<br />

narrativa, evidencia em sua arquitetura o jogo entre as forças, não somente<br />

lendárias, tal qual Mitavaí e o Monstro Macobeba, mas ideológicas, políticas<br />

e econômicas, impostas pelo capital estrangeiro, na ocupação das terras<br />

e na destribalização dos nativos.<br />

Desse modo, Macunaíma e Cobra Norato são <strong>in</strong>scritos como textos paradigmáticos<br />

da fase heroica do movimento modernista, da geração de 22,<br />

que imprimiram em suas l<strong>in</strong>has o misterioso mundo amazônico, apreendendo<br />

a consciência primitiva para outorgar ao mito o poder de redizer a<br />

gênese brasileira. O Manuscrito holandês circunscreve essa dimensão pelo<br />

viés do impacto causado pela <strong>in</strong>tersecção do fabulário nacional, herdado<br />

e enriquecido pelo caboclo, que conduz o homem a um estado de encantamento,<br />

como se verifi ca no encontro com o Boi Espácio, dentre outros,<br />

em contraste à imagem do <strong>in</strong>ferno, impressa na realidade social opressora<br />

que expulsa o mesmo homem de sua condição livre para o engessamento<br />

do capital.<br />

Nas análises a seguir, serão tomados como pontos centrais Macunaíma,<br />

o herói transubstanciado da cultura taulipangue e Mitavaí, descendente de<br />

Macunaíma, que faz o movimento do sertão para o litoral em busca de afi rmação<br />

enquanto <strong>in</strong>dígena. Em sua travessia, a exemplo de seu ancestral,<br />

depara com a degradação do meio e a imposição de hábitos contrários à sua<br />

cultura, além de ser manipulado pelo poder vigente que o enreda em seus<br />

jogos fi nanceiros. Ambas as personagens estampam com maior nitidez a<br />

condição <strong>in</strong>dígena e seu arcabouço cultural. Em Cobra Norato não se visualiza<br />

uma personagem nomeada, portadora de <strong>in</strong>dicadores da cultura <strong>in</strong>dígena.<br />

A obra exibe, no entanto, um complexo mítico herdado dos povos<br />

tupi que a torna exemplar na conjugação do fazer poético com o cabedal<br />

folclórico amazônico.


1<br />

A BANZAR COM MACUNAÍMA<br />

(MÁRIO DE ANDRADE)<br />

Meu Macunaíma nem a gente não pode bem dizer que<br />

é <strong>in</strong>dianista. O fato dum herói pr<strong>in</strong>cipal de livro ser índio<br />

não implica que o livro seja <strong>in</strong>dianista. [...] Macunaíma<br />

também não é índio propriamente: é um ente de lenda,<br />

cresce quando quer e um poder de coisas assim. O livro é<br />

quase que só habitado por fantasmas. Porém não passa<br />

duma br<strong>in</strong>cadeira.<br />

Mario de Andrade, Carta a Carlos<br />

Drummond de Andrade<br />

Considerados os oitenta anos da publicação de Macunaíma, parece, à<br />

primeira vista, problemático tomar o texto mais uma vez para estudo, dadas<br />

as múltiplas transformações que já ocorreram no corpus literário brasileiro<br />

e a vasta crítica produzida no entorno da obra. Conforme se procedeu com<br />

as anteriores, e que possuem uma história mais antiga, <strong>in</strong>teressa o olhar que<br />

se desprende do momento histórico atual em busca da <strong>in</strong>terpretação da cultura<br />

e de sua manifestação na forma de texto literário, em que o <strong>in</strong>dígena<br />

foi legitimado como traço constitutivo do brasileiro. Esse modo de reler a<br />

obra contraria, de certa forma, o pensamento do autor em relação à palavra<br />

“identidade”, uma vez que, ao resguardar-se do patriotismo dom<strong>in</strong>ante,<br />

preferiu utilizar “entidade nacional dos brasileiros”, nos dois prefácios redigidos<br />

e não publicados, nos quais demonstrou difi culdade em dar uma<br />

<strong>in</strong>terpretação à obra.


232 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Macunaíma, publicado em 1928, foi escrito na Chácara da Sapucaia, de<br />

Pio Lourenço, então próxima a Araraquara – São Paulo, entre 16 e 23 de<br />

dezembro, sua primeira versão, e, dessa data, até 13 de janeiro, sua segunda<br />

versão. Numa rede, e acompanhado de seu cigarro, Mário de Andrade assumia<br />

a escritura do que seria o “Retrato do Brasil” sob os holofotes da magia<br />

e do sobrenatural, impetrando, em meio à ruptura proposta pelo Movimento<br />

de 22, um jeito novo de olhar para as diversas faces da brasilidade.<br />

Não foi um surto de psicose que o levou a escrever em tão pouco tempo a<br />

obra expoente do modernismo brasileiro. Foi, antes de tudo, o resultado de<br />

um profundo desejo de mostrar o país pelo “primitivismo estético”, construído<br />

a partir de pesquisas em busca da matriz das gentes ameríndias, ao<br />

mesmo tempo em que transfi gura os aspectos convencionais, herdados da<br />

tradição naturalista.<br />

Na obra coordenada por Lopez, Ribeiro (1996a, p.XVIII) destaca, na<br />

“Lim<strong>in</strong>ar”, o valor de Mário de Andrade no que se refere ao encantamento<br />

que sua narrativa provoca com seus “saberes do mato virgem”. Para o etnólogo<br />

e romancista,<br />

Mário precisou de muita alma e coragem para escrever este retrato oblíquo,<br />

transverso, do Brasil. Sobretudo, para assumir a alegria <strong>in</strong>fundada a até <strong>in</strong>verossímil<br />

de nossa gente tão pobre e famélica. Escrever Macunaíma exigia gênio<br />

demais. Isto, Mário t<strong>in</strong>ha. Sufi ciente, não só para confessar, em desespero, que<br />

o mundo não tem remédio, mas também para transcender tanto do desengano<br />

poético, como do arrazoado ideológico e entrar na gandaia popular, r<strong>in</strong>do com o<br />

povo, neste livro-palhaçada: desconcertante utopia antiufanista.<br />

A necessidade de re<strong>in</strong>terpretar o país fez o autor mergulhar num universo<br />

povoado de histórias, no qual encontrou um deus de pouco caráter,<br />

recolhido dos mitos e lendas <strong>in</strong>dígenas. Assim, os estudos de etnografi a e<br />

folclore o levaram a Theodor Koch-Grünberg, na obra Vom Roraima zum<br />

Or<strong>in</strong>oco – Mythen und Legenden der Taulipang und Arekuná Indianern, considerada<br />

célula mater na construção da trama. Mesmo diante das provas<br />

contundentes da gênese, a<strong>in</strong>da é possível <strong>in</strong>dagar acerca do motivo que levou<br />

Mário ultrapassar a fronteira da cultura e da geografi a brasileiras, para<br />

esboçar uma personagem que suscitasse a fusão das etnias fundamentais<br />

na formação do povo brasileiro, uma vez que as fontes extrapolam o aspec-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 233<br />

to nacional em diferentes situações. Nota-se, <strong>in</strong>icialmente, que as personagens<br />

de Koch Grünberg provêm, também, de regiões circunviz<strong>in</strong>has ao<br />

Brasil, como a Venezuela e a Guiana.<br />

Ao buscar o sentido da obra, Ribeiro (1996a, p.XXI) entende Macunaíma<br />

como “uma reversão de imagens” que sai de “uma literatura pejada de europeidade<br />

e circunspeção” para adentrar “no desvario antropofágico”. Assim,<br />

a orig<strong>in</strong>alidade da obra estaria na mistura de “mitos e sacanagens, etnografi<br />

as e <strong>in</strong>vencionices, semânticas e galimatias” nas quais “Mário expressa os<br />

brasileiros tal como ele, e só ele então, os via”. Considerado esse aspecto,<br />

pode-se compreender a escolha do termo “entidade nacional” para designar,<br />

de maneira problemática, o brasileiro híbrido. Perrone-Moisés (2007,<br />

p.191) aponta que “entidade”, em sentido fi losófi co, supõe “‘um ser desprovido<br />

de toda determ<strong>in</strong>ação particular’”, o que estabeleceria a fi delidade<br />

de Macunaíma como retrato do “ser híbrido, contraditório, em processo”.<br />

Segu<strong>in</strong>do a trilha construída, observa-se, então, que Mário recolhe das<br />

fi guras lendárias e folclóricas, tanto do Brasil quanto de povos fronteiriços,<br />

o esboço de um herói ambíguo, transeunte de uma epopeia <strong>in</strong>dígena e o<br />

lança aos polos do humano e do mítico. Com isso, gesta um herói plural,<br />

portador de um amálgama capaz de torná-lo irresoluto em seu caráter, resultante<br />

da mistura das três pr<strong>in</strong>cipais etnias formadores do povo brasileiro:<br />

o branco, o índio e o negro. Assim, a vertente dos motivos etnográfi cos<br />

pré-colombianos, de origem <strong>in</strong>dígena, faz a obra derivar para a feição ideológico-histórica,<br />

ao propor a representação expressa a partir desse potencial,<br />

tecida, paralelamente, nos elos da imigração e da máqu<strong>in</strong>a, em meio<br />

ao ferro e cimento da <strong>in</strong>dustrialização crescente na cidade de São Paulo.<br />

Seu signifi cado abre-se em leque, conforme Perrone-Moisés (2007, p.190),<br />

ao denom<strong>in</strong>ar Macunaíma “obra aberta e plural. Não é a demonstração de<br />

uma tese; é uma hipótese, um estudo, uma refl exão, e sobretudo uma busca.<br />

Como seu herói, M. A. busca uma ‘muiraquitã’, e essa muiraquitã é a<br />

‘entidade brasileira’”.<br />

Pelas duas vertentes constrói-se a l<strong>in</strong>guagem da rapsódia que at<strong>in</strong>ge o<br />

ápice de sua <strong>in</strong>ovação, em termos de produção literária brasileira, ao <strong>in</strong>terpenetrar<br />

os afl uentes folclórico-míticos e ideológico-históricos, fazendo<br />

“transpor os limites do descritivismo urbano ou sertanejo (então a<strong>in</strong>da vivo<br />

em nossas letras) por meio de um andamento antes legendário do que naturalista,<br />

documental” (Bosi, 1996, p.172).


234 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Com estampa modernista, a obra tanto destitui o herói moldado dentro<br />

de um determ<strong>in</strong>ado espaço regional, conforme visto no <strong>in</strong>dianismo,<br />

como desestabiliza a mímesis romântica no que lhe é peculiar à idealização<br />

do povo formado a partir da matriz <strong>in</strong>dígena. Fusionam-se, a partir daí,<br />

erudito e popular, sob o verniz satírico e paródico, pelos quais se faz pontilhar<br />

um jogo <strong>in</strong>tercultural em que as diferentes etnias se encontram, seja<br />

pelas peripécias do herói na cidade de São Paulo e em sua travessia pelas<br />

regiões do país, ou pelas marcas da l<strong>in</strong>guagem que as representam. Assim,<br />

a autenticidade índia que quer al<strong>in</strong>havar nas peças de montagem da narrativa<br />

serviu antes de tudo, “para fugir do discurso espúrio, seja do índio<br />

alencariano, seja do pretenso civilizador” (Ribeiro, 1996a, p.XXI). Daí a<br />

busca <strong>in</strong>cessante bebida em tantos textos. Mas não se trata apenas de tomar<br />

água límpida da fonte e deixá-la correr naturalmente. A “entidade” é desvestida<br />

e revestida, segundo Ribeiro (1996a), “de tup<strong>in</strong>ólogos porandubas,<br />

de brasilidades arcaicas e de africanidades, que são nossas matrizes que ali<br />

reluzem” (ibidem, p.XXI).<br />

Na concepção do exegeta de Macunaíma, Cavalcanti Proença (1978), o<br />

grande mérito e orig<strong>in</strong>alidade da obra dizem respeito às fontes que perpassam<br />

desde a citada anteriormente, do etnólogo alemão, às expressões dos<br />

índios Cax<strong>in</strong>auá, colhidas por Capistrano de Abreu, como também Couto<br />

Magalhães, Simões Lopes Neto, e uma série de outros nomes exponenciais<br />

na sistematização do folclore brasileiro. Segundo o crítico, “aqui, como em<br />

toda obra de Mário houve documentação, desejo, de autenticidade” (ibidem,<br />

p.63).<br />

O Roteiro de Macunaíma, de Cavalcanti Proença, publicado em 1955,<br />

assume, dentro da crítica, um valor ímpar, tal qual Macunaíma o teve na<br />

fi cção. Um trabalho de precisão cirúrgica, em que são demarcadas as l<strong>in</strong>has<br />

que se entrelaçam na narrativa, fazendo visíveis as <strong>in</strong>terferências da pesquisa<br />

no esboço do herói/anti-herói, na formatação da l<strong>in</strong>guagem construída<br />

pelas “palavras do Rio Grande do Sul ao lado de regionalismos nordest<strong>in</strong>os,<br />

do Brasil Central ou da Amazônia” (ibidem, p.10), síntese de um projeto<br />

artesanal de Mário, para quem a arte tem “uma fi nalidade imediata” e “foge<br />

ao absenteísmo” (ibidem, p.18-9).<br />

A<strong>in</strong>da sob o olhar da crítica, a estrutura da narrativa de Mário assenta-se,<br />

segundo o estudo de Campos (1973), nas formulações de Wladimir<br />

Propp quanto à sua sistematização do conto popular: “Propp, com escopo


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 235<br />

científi co, tratou de pôr entre parênteses os elementos variáveis [...]; Mário,<br />

com <strong>in</strong>tuitos artísticos, percebeu o que havia de <strong>in</strong>variante na estrutura da<br />

fábula para justamente poder jogar criativamente com os elementos variáveis<br />

sobre esse esquema axial” (ibidem, p.24).<br />

A análise de Campos (1973, p.53) parte do pr<strong>in</strong>cípio de “engendramento<br />

em mosaico do Macunaíma”. A expressão “conto-mosaico” já fora<br />

utilizada por Florestan Fernandes, além da defi nição de Propp ao conto<br />

maravilhoso como “‘trabalho em mosaico’ (mosaikarbeit), feito de pedr<strong>in</strong>has<br />

<strong>in</strong>tercambiáveis” e a alusão de Lévi-Strauss a “‘peças de um mosaico’<br />

para exprimir o ‘modo de confi gurar a realidade’, próprio da ‘visão mítica’”<br />

(ibidem, p.85). Aplica à narrativa rapsódica uma “operação textual” consubstanciada<br />

nos pr<strong>in</strong>cípios proppianos, por entender que a obra conserva<br />

os traços pert<strong>in</strong>entes à fábula, como o “paganismo, o uso e ritos arcaicos”<br />

(ibidem, p.56). Há que se ass<strong>in</strong>alar, no entanto, que a narrativa vai além do<br />

paradigma fabulístico no que diz respeito ao hibridismo, oriundo do aspecto<br />

<strong>in</strong>ventivo do autor que ora reata a narrativa ao universo mitopoético, ora<br />

o revisita pela paródia e pelo humor.<br />

Se, por esse viés, Campos (1973) compreendeu a lógica estrutural da<br />

obra, não o foi para Mello e Souza (1979), em O tupi e o alaúde, no qual<br />

fez críticas contestadoras. Para Souza, “a fragilidade maior de seu enfoque<br />

(o de Campos) foi ter projetado num livro, cujas componentes eram todas<br />

ambíguas e ambivalentes, uma leitura unívoca, que rejeitava os desvios<br />

da norma, para fazer a obra de arte caber à força no modelo de que, fatalmente,<br />

teria de extravasar” (ibidem, p.51). Em sua leitura, Souza mostra<br />

que as origens da composição de Macunaíma têm seus liames aportados<br />

numa “remota tradição narrativa do ocidente, o romance arturiano, que<br />

por sua vez desenvolve um dos arquétipos mais difundidos da literatura<br />

popular universal: a busca do objeto miraculoso, no seu caso, o Graal”<br />

(ibidem, p.74).<br />

Além do desvelamento desse universo “subterrâneo” presente na rapsódia<br />

de Mário que o remete ao romance arturiano, Mello e Souza (idem,<br />

p.12) tem a convicção de que<br />

Mário de Andrade não utilizou processos literários correntes, mas transpôs<br />

duas formas básicas da música ocidental, comuns tanto à música erudita quanto


236 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

à criação popular: a que se baseia no pr<strong>in</strong>cípio rapsódico da suíte 1 – cujo exem-<br />

plo popular mais perfeito podia ser encontrado no bailado nordest<strong>in</strong>o do Bumba-meu-Boi<br />

– e a que se baseia no pr<strong>in</strong>cípio da variação, 2 presente no improviso<br />

do cantador nordest<strong>in</strong>o, onde assume forma muito peculiar.<br />

Toda a ambiguidade expressa em Macunaíma, desde seu núcleo – a perda<br />

e a busca da muiraquitã – aos episódios secundários, encontra abrigo no<br />

bailado Bumba-meu-Boi, 3 no qual estariam representadas as mais diversas<br />

manifestações musicais existentes no país. Assim, “o boi – ou a dança que<br />

o consagra – funcionava como um poderoso elemento ‘unanimizador’ dos<br />

<strong>in</strong>divíduos, como uma metáfora da nacionalidade” (idem, p.18). O herói<br />

Macunaíma, por consegu<strong>in</strong>te, simbolicamente, atualiza um dos episódios<br />

marcantes da dança em que ocorrem a morte e a ressurreição, como se nota<br />

no ritual de sacrifício e no ressurgimento como estrela.<br />

Na <strong>in</strong>terpretação de Campos (1973), a presença do boi é, de modo particular,<br />

uma transmutação do bode expiatório da lenda taulipangue (anta),<br />

no episódio em que Macunaíma encontra o boi “Espácio que viera do<br />

Piauí” (p.148), ao ser perseguido pela sombra. Esta, enganada pelo herói,<br />

1 Segundo Mello e Souza (1979, p.14), a suíte “é um dos processos mais antigos de composição.<br />

Comum à música erudita e popular, não é patrimônio de povo nenhum. Constitui uma união<br />

de várias peças de estrutura e caráter dist<strong>in</strong>tos, todas de tipo coreográfi co, para formar obras<br />

complexas e maiores”. São exemplos de suíte: “os Fandangos do sul paulista, os Cateretês do<br />

centro brasileiro, e no Nordeste os Cabocl<strong>in</strong>hos, ‘os cortejos semi-religiosos, semi-carnavalescos<br />

dos Maracatus’, as Cheganças, os Reisados”.<br />

2 A variação, segundo Mello e Souza (idem, p.19), “é, como a suíte, uma regra básica de compor<br />

e consiste em ‘repetir uma melodia dada, mudando a cada repetição um ou mais elementos<br />

constitutivos dela de forma que, apresentando uma fi sionomia nova, ela permanece<br />

sempre reconhecível na sua personalidade’”.<br />

3 A festa do boi assume diferentes nomes no Brasil: como o Boiz<strong>in</strong>ho Barrica, Boi Barroso<br />

(na região sul da Bahia, o festejo, e no Rio Grande do Sul, uma cantiga), Boi Calemba, Boi<br />

Canário (Pará), Boi de Canastra, Boi Caprichoso e Boi Garantido (no Amazonas, variantes<br />

de Boi-Bumbá de Par<strong>in</strong>t<strong>in</strong>s), Boi-de-Fita, Boi de Humaitá (Rio Grande do Norte), Boi de<br />

Mamão (Paraná e Santa Catar<strong>in</strong>a), Boi de Reis, Boi Surubim (Ceará), dentre outros. Em seu<br />

texto “As danças dramáticas do Brasil” (1982), Mário de Andrade tratou de conceituar essas<br />

danças, destacando o bumba-meu-boi como “a mais exemplar” e, também, como “a mais<br />

complexa, estranha, orig<strong>in</strong>al de todas as nossas danças dramáticas” (cf. Cavalcanti, 2004).<br />

Segundo Lopez (1972, p.133), “o boi, herói de romance popular, é capaz de proezas extraord<strong>in</strong>árias;<br />

quase sempre foge, para depois ser capturado ou morto, à custa de duras penas.<br />

Depois, é dividido, resulta no próprio banquete do totem que faz crescer socialmente sua<br />

dimensão e que dá, para Mário de Andrade, mais uma prova do sentido coletivizador do<br />

animal”.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 237<br />

“fez poleiro no costado dele”. Assim, a cantiga do folguedo é <strong>in</strong>serida, primeiramente<br />

pelo canto da sombra: “Meu boi bonito,/Boi alegria,/Dá um<br />

adeus/Pra toda família! [...]” (p.148), que acompanha o boi até sua morte<br />

por <strong>in</strong>anição. A cantiga também está referenciada pelos urubus, que fazem<br />

a festa enquanto devoram o boi: “Meu boi bonito,/Boi Zebedeu,/Corvo<br />

avoando,/Boi que morreu. // Oh...êh bumba,/Folga meu boi!/oh...êh<br />

bumba,/Folga meu boi!” (p.150). Na disputa entre os urubus e a sombra<br />

pela posse do boi, recria-se o fabulário <strong>in</strong>dígena em que Kasana-Pódole 4<br />

recebe sua segunda cabeça: “a sombra teve raiva de estarem comendo o boi<br />

dela e pulou no ombro do urunu-ruxama. O Pai do Urubu fi cou muito satisfeito<br />

e gritou: – Achei companhia pra m<strong>in</strong>ha cabeça, gente! E voou pra<br />

altura. Desde esse dia o urubu-ruxama que é o Pai do urubu possui duas<br />

cabeças. A sombra leprosa é a cabeça da esquerda” (p.150).<br />

A presença de uma dança dramática dentro do arcabouço folclórico nacional<br />

é entendida por Lopez (1972, p.132) como o refl exo do “<strong>in</strong>consciente<br />

coletivo, preso ao que o escritor considera ‘forças vitais’, exemplifi cado na<br />

motivação sentida pelo povo para trazer para o cotidiano parcelas da cerimônia<br />

anual do culto ao Boi”. Além disso, segundo a crítica citada, cabe ao<br />

Boi “enfeixar passado e presente, isto é, primitivismo do povo brasileiro enquanto<br />

raiz histórica e enquanto condição social [...] uma das características<br />

mais legítimas do país” (ibidem, p.136).<br />

Importante destacar, a<strong>in</strong>da, que, pelo aspecto “subterrâneo”, a narrativa<br />

de Macunaíma alcança “um fi o arquetípico [...], que <strong>in</strong>determ<strong>in</strong>a a caracterização<br />

do personagem estilizado, movido <strong>in</strong>tensamente pela libido, no<br />

seu retrato multifacetado pelas referências folclóricas com um tratamento<br />

paródico e carnavalizado”, conforme os estudos de Motta (2006, p.111),<br />

ao apontar para dois aspectos: o que está ligado ao romance grego, no qual<br />

se encontra a busca amorosa e o que está ligado à Idade Média, em que<br />

se encontra o motivo espiritual. Assim, o “padrão romântico de narrativabusca”,<br />

de motivo amoroso, concretizado na fi gura da amada Ci, encontra-<br />

4 No fabulário <strong>in</strong>dígena, Kasana-Pódole é antropófago e possui duas cabeças. Na lenda 28, de<br />

Grünberg, o herói Etetó é transformado em Wewé , um “come-tudo”, mítico. Senta-se nos<br />

ombros de uma anta, até que ela caia de fome. Com a chegada do urubu-rei para devorar a<br />

carniça, Wewé pula-lhe no ombro e forma-lhe a segunda cabeça. Em Macunaíma, Etetó é Jiguê,<br />

que envenenado por Macunaíma, transforma-se na sombra leprosa (cf. Campos, 1973,<br />

p.232-3).


238 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

se com o motivo espiritual da busca da muiraquitã, ambos marcados pela<br />

presença irônica e satírica que a rapsódia agenciou. Por esse viés, segundo<br />

Motta (2006, p.113), consolidam-se na arquitetura de Macunaíma o “substrato<br />

folclórico e lendário”, que, somados, fazem “da s<strong>in</strong>uosidade da malandragem<br />

um jeito de caracterizar o anti-herói brasileiro”.<br />

Uma dessas l<strong>in</strong>has s<strong>in</strong>uosas é percebida no artefato do capítulo Macumba,<br />

por exemplo, em que Exu e demais entidades afro-míticas são <strong>in</strong>vocadas<br />

para que Macunaíma, fi lho de Oxum, se v<strong>in</strong>gue de Venceslau Pietro Pietra,<br />

gigante Piaimã, opositor na posse da muiraquitã. 5 Confl uem no episódio as<br />

três culturas presentes na formação do povo brasileiro: a portuguesa, a africana<br />

e a <strong>in</strong>dígena. Encontram-se tia Ciata, “uma negra velha com um século<br />

no sofrimento” (Andrade, 2001, p.57-8), um fi lho de Ogum, tocador de<br />

atabaque, “Olelê Rui Barbosa”, e demais seguidores: “advogados taifeiros<br />

curandeiros poetas o herói, gatunos, portugas senadores, todas essas gentes<br />

dançando e cantando a resposta da reza” (ibidem, p.58). O herói, representante<br />

<strong>in</strong>dígena e negro, escolhe a periferia da cidade <strong>in</strong>dustrializada para<br />

participar de um dos rituais mais s<strong>in</strong>créticos entre os <strong>in</strong>úmeros episódios<br />

recriados por Mário a partir do espaço cultural autóctone. Nele fi guram,<br />

lado a lado, deuses africanos bantos e yorubas (nagô), o demônio da cultura<br />

cax<strong>in</strong>auá, icá, como também o mito judaico-cristão <strong>in</strong>vertido na oração do<br />

Pai-Nosso, dirigido a Exu.<br />

Além desse compêndio multicultural expresso no capítulo citado, o satírico<br />

Cartas pras Icamiabas revela, também, outra dimensão de encaixe do<br />

material colhido por Mário. Aqui, o fi lho da etnia tapanhumas, Macunaíma,<br />

descreve a terra desconhecida para suas súditas. É o olhar do índio em<br />

5 De acordo com os estudos de Berthier Brasil (1986, p.79), em Mitos amazônicos – O Caríua,<br />

“sempre em noite de lua cheia, as Amazonas reuniam-se à beira de um lago chamado<br />

Yaciuaruá, para celebrar um ato que era o mais importante de sua tradição tribal. De longe,<br />

acorriam guerreiros valentes, já que era a única oportunidade concedida a um homem para<br />

pisar o sagrado império das mulheres. Perfumadas, enfeitadas e transbordantes de alegria,<br />

no exato momento em que as águas límpidas refl etiam por <strong>in</strong>teiro a lua, as Amazonas se lançavam<br />

ao lago, mergulhando até o fundo, dali trazendo um talismã de pedra verde, chamado<br />

muiraquitã. Em terra fi rme, de volta, cada uma presenteava, então, o homem que com ela<br />

compartilharia daquela noite de amor. Pela madrugada, fi nda a festa, o guerreiro regressava<br />

à sua tribo levando dependurado ao pescoço o galardão mais cobiçado por um legítimo fi lho<br />

de Tupã: o seu muiraquitã. Passados os meses, do fruto do amor poderia nascer um novo ser.<br />

Se fosse homem, seria sacrifi cado; se mulher, era aceito festivamente e <strong>in</strong>corporado àquele<br />

mundo fasc<strong>in</strong>ante de mulheres valentes”.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 239<br />

direção à cultura que o moveu de seu império até à margem de sua aculturação,<br />

ante as máqu<strong>in</strong>as e o homem moderno e civilizado. Seria apenas um<br />

episódio, não fosse a paródia à l<strong>in</strong>guagem clássica tomada junto aos eruditos,<br />

tal como Rui Barbosa e Coelho Neto. O herói a<strong>in</strong>da utiliza um trecho<br />

do Canto V, estrofe 37, de Os lusíadas, de Camões, em que anuncia o desafi o<br />

aos portugueses no cam<strong>in</strong>ho para as Índias: “Porém já c<strong>in</strong>co Sóis era passados/Que<br />

dali nos partíramos, cortando/Os mares nunca de outrem navegados/[...]/Quando<br />

hua noite, estando descuidados/[...]”. Ao <strong>in</strong>formar as<br />

índias da perda da muiraquitã, Macunaíma elabora um discurso explicativo<br />

em torno da palavra para amenizar a notícia, ao entender que a l<strong>in</strong>guagem<br />

utilizada seria de difícil compreensão às súditas:<br />

passemos, pois, imediato, ao relato dos nossos feitos por cá. Nem c<strong>in</strong>co sóis eram<br />

passados que de vós nos partíramos, quando a mais temerosa desdita pesou sobre<br />

nós. Por uma bela noite dos idos de maio do ano translato, perdíamos a muiraquitã;<br />

que outrem grafara muraquitã, e, alguns doutos, ciosos de etimologias<br />

esdrúxulas, ortografam muyrakitan e até mesmo muraqué-itã, não sorriais!<br />

(Andrade, 2001, p.71, grifo nosso)<br />

No relato, segundo Proença (1978, p.173), “Mário de Andrade, além<br />

da demonstração de conhecimento da língua antiga (e há testemunhas de<br />

que ele frequentava Frei Luís de Souza e outros clássicos) quis mostrar a<br />

<strong>in</strong>coerência dos que imitam essa l<strong>in</strong>guagem desusada, <strong>in</strong>tercalando, sem<br />

querer, trechos da l<strong>in</strong>guagem falada no Brasil”. Segu<strong>in</strong>do o raciocínio de<br />

Proença, há na carta um quê de artifi cialismo, de l<strong>in</strong>guagem anacrônica, ou<br />

de “pedantismo”, tal como Mário apontou em carta a Manuel Bandeira.<br />

Além disso, o próprio autor da obra aponta que a ocasião era para “satirizar<br />

os cronistas nossos (contadores de monstros nas plagas nossas e mentirosos<br />

a valer)” (apud Proença, 1978, p.175). A presença da sátira aos cronistas<br />

<strong>in</strong>verte a visão do paraíso descrito nos documentos <strong>in</strong>iciais, em que a nova<br />

terra é mostrada somente pelo viés da exuberância e da riqueza naturais,<br />

sob o ponto de vista do estrangeiro. Agora, o olhar é do nativo em relação à<br />

sua própria terra, um estrangeiro, também, se consideradas as alterações no<br />

meio, praticadas pelo colonizador.<br />

No conjunto das ações desenvolvidas por Macunaíma, o capítulo da<br />

Carta pras Icamiabas eleva-se como uma proposta basilar ante a presença do


240 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

<strong>in</strong>dígena como participante-formador do ethos brasileiro. Isso se deve à mudança<br />

de olhar, dentro da própria narrativa, que leva ao riso pela presença<br />

de vocábulos grafados erroneamente e pela preocupação exagerada do herói<br />

com os termos ligados ao sexo: “algum libido saudoso, como explica o sábio<br />

tudesco, doutor Sigmund Freud (lede Fróide)” (Andrade, 2001, p.72); “são<br />

sempre alvíssimas as donas de cá; e tais e tantas habilidades demonstram, no<br />

br<strong>in</strong>car, que enumerá-las, aqui, seria fastiendo porventura” (ibidem, p.73).<br />

Além do tom jocoso e irônico, a carta subscreve a liberdade da experiência<br />

artesanal e da visão pessimista diante do passadismo <strong>in</strong>staurado<br />

nas entrel<strong>in</strong>has da história. Mais a<strong>in</strong>da, deixa pontilhada a “crítica à ética<br />

cristã, à organização da sociedade ocidental e em descrédito da máqu<strong>in</strong>a<br />

e dos estilos de vida e de comportamento por nós recebidos da civilização<br />

europeia” (Cout<strong>in</strong>ho, 1986, p.38). A visão de Macunaíma em relação ao<br />

país, na descrição que faz dos problemas no decorrer da carta, torna clara a<br />

crítica diante das desgraças oriundas do atraso da nação: “em breve seremos<br />

novamente uma colônia da Inglaterra ou da América do Norte!...” (Andrade,<br />

2001, p.79). O segredo da decadência é tecido num dístico que encerra<br />

seu signifi cado e o remete à lembrança dos paulistas: “POUCA SAÚDE E<br />

MUITA SAÚVA / OS MALES DO BRASIL SÃO” (ibidem, p.79).<br />

A análise de Fonseca (1996), em relação à carta, aponta para uma característica<br />

que o próprio autor defi nira. No capítulo considerado como “<strong>in</strong>termezzo”,<br />

“o foco narrativo se transfere do contador, cantador, rapsodo, para<br />

o herói. Diferente do rapsodo – que é culto, e que imprime às suas fontes<br />

populares experiência de vida e crivo <strong>in</strong>telectual –, o missivista é <strong>in</strong>culto,<br />

semianalfabeto, um tanto perplexo ante o mundo letrado que acaba de adotar,<br />

impressionado com o poder da palavra escrita” (ibidem, p.330). Vê-se,<br />

no texto, o encontro de diversos temas em que transitam desde o enfrentamento<br />

com a cultura urbana e o conhecimento da língua à falta de d<strong>in</strong>heiro,<br />

motivo pelo qual escreve às índias, com <strong>in</strong>tuito de satisfazer seus desejos.<br />

A arquitetura dos dois episódios é marcante no sentido de demonstrar<br />

que Macunaíma é mais que um texto talhado ao estilo modernista, no qual<br />

se busca uma resposta à identidade brasileira, soterrada pelos destroços da<br />

colonização. Além desse propósito, desnuda uma face ambígua do <strong>in</strong>dígena,<br />

vista pelo ângulo da pluralidade de motivos e cores que revelam o perfi l<br />

da nação brasileira histórica e literária. Edifi ca-se, então, um elemento catalisador<br />

entre os mundos contraditórios conjugados no texto: de um lado o


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 241<br />

mundo civilizado, capitalista e, de outro, o primitivismo mítico das fontes<br />

pré-colombianas, da Amazônia venezuelana e da Guiana. No entremeio a<br />

esse conjugado mundo de dizeres e de signifi cados, encontra-se um <strong>in</strong>dígena<br />

“transitório”, pois nasce índio-negro e se torna loiro de olhos azuis,<br />

como maneira de se fazer visualizar não apenas como etnia isolada e primitiva<br />

como formação, mas como amálgama fi gurativo de um brasileiro sem<br />

feição s<strong>in</strong>gular. Ao mesmo tempo e em diferentes espaços é uno e múltiplo<br />

– brasileiro e lat<strong>in</strong>o-americano.<br />

Nota-se, então, que as vozes da crítica que confl uem em direção à rapsódia<br />

visualizam tanto “o desejo de contar e cantar episódios de uma fi gura<br />

lendária [...] e que trazia em si os atributos do herói” quanto “o desejo não<br />

menos imperioso de pensar o povo brasileiro, nossa gente, percorrendo as<br />

trilhas cruzadas ou superpostas da sua existência selvagem, colonial e moderna,<br />

à procura de uma identidade” (Bosi, 1996, p.171). Para isso, a fi gura<br />

híbrida foi esboçada, como afi rma o próprio autor, em carta a Manuel Bandeira,<br />

na ilogicidade de seu herói: “é justo nisso que está a lógica de Macunaíma:<br />

em não ter lógica” (apud Proença, 1978, p.11).<br />

Assim, em torno da polêmica que se <strong>in</strong>staurou na construção da personagem<br />

do <strong>in</strong>dígena-negro-branco, Proença (1978, p.11) ass<strong>in</strong>ala: “em verdade<br />

Macunaíma não pode ser analisado pela lógica, está fora do bem e do<br />

mal, é um herói verdadeiro, às vezes contraditório, e isso Mário notou. Mas<br />

a contradição vem do expoente máximo das virtudes e qualidades anormais<br />

que nele se exaltam”.<br />

Visto pela concepção fabular do estudo de Campos (1973), o herói nasce<br />

após “um momento de silêncio”, tal qual a atmosfera do <strong>in</strong>ício das fábulas,<br />

“no fundo do mato – virgem”, fi lho de uma índia tapanhumas (que signifi<br />

ca negro), sem pai, apenas como “fi lho do medo da noite” (ibidem, p.13).<br />

Assim como em Iracema, de José de Alencar, o herói tem seu nascimento<br />

na abertura da narrativa:<br />

Alencar elaborou-o numa fórmula estilística que fi cou célebre, emblematizando<br />

por sua vez nosso Indianismo Romântico. Mário, fazendo de certa forma<br />

“Indianismo às avessas”, deformou-a grotescamente, substitu<strong>in</strong>do em seu herói<br />

os traços de beleza da virgem alencariana por traços de feiúra, [...] reaparece<br />

em Mário provido de carga semântica negativa: o herói é “preto ret<strong>in</strong>to”, uma<br />

“criança feia”. (Campos, 1973, p.106)


242 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Nesse primeiro segmento narrativo, em que Macunaíma recebe o sopro<br />

de vida, pode-se notar o entrelaçamento de l<strong>in</strong>has em sua constituição, o<br />

que revela o ponto de tensão acerca da sua identidade. Miraculosamente<br />

não é fi lho de uma índia virgem, como nos mitos, e sim de uma mãe “velha”,<br />

que tem dois fi lhos. Além disso, é negro, o que evidencia o caráter plural<br />

de sua etnia (índio+negro), “um herói síntese nesse sentido, se bem que<br />

altamente complexo, pois nele se acumulam caracteres heteróclitos, que se<br />

superpõem, muitas vezes sem um traço comum que facilite a evidenciação”<br />

(Proença, 1978, p.10). Conforme aduz o crítico, a cor preta da criança revela<br />

a “fusão racial”, o que na narrativa de Mário corresponde à <strong>in</strong>serção<br />

de uma fi gura da cultura negra na lenda <strong>in</strong>dígena. Além da cor da criança,<br />

existe a menção a Rei Nagô, na profecia sobre o futuro herói em meio a rituais<br />

<strong>in</strong>dígenas: “numa pajelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o<br />

herói era <strong>in</strong>teligente” (Andrade, 2001, p.13).<br />

O caráter profético em relação à constituição do heroísmo de Macunaíma<br />

vem expresso no título, antes mesmo da anunciação de Rei Nagô. O<br />

epíteto “herói de nossa gente” convoca o leitor para uma leitura em direção<br />

ao dest<strong>in</strong>o do representante <strong>in</strong>dígena, à primeira vista, e que confl ui para o<br />

amálgama étnico no decorrer da montagem dos episódios em que sua raiz<br />

autóctone é colocada em metamorfose <strong>in</strong>úmeras vezes.<br />

Assim, quando criança: “fez coisas de sarapantar. De primeiro passou<br />

mais de seis anos não falando” (ibidem, p.13), e seu crescimento tem<br />

atributos que fogem à normalidade: “deram água num chocalho pra ele e<br />

Macunaíma pr<strong>in</strong>cipiou falando como todos” (ibidem, p.14). Para F<strong>in</strong>azzi-<br />

Agrò (1996, p.316), o jogo ambíguo tecido na ausência/presença do silêncio<br />

revela “um espaço cultural que, sendo o Brasil (e, mais em geral, a América<br />

Lat<strong>in</strong>a), é de fato habitado por um silêncio anterior: o silêncio dos vencidos,<br />

daqueles que a arrogância dos vencedores obrigou à mudez, reduz<strong>in</strong>do-os à<br />

condição de não-falantes (isto é, de <strong>in</strong>-fantes)”.<br />

Se Mário considerou sua construção uma “br<strong>in</strong>cadeira”, certamente a<br />

fez num jogo em que as máscaras da memória guardavam sob si palavras<br />

já ditas desde a chegada do colonizador. O silêncio que impera antes do<br />

nascimento do herói, no “<strong>in</strong>termezzo” da Carta pras Icamiabas e no Epílogo,<br />

“representa também um fi car à escuta dessa voz <strong>in</strong>dígena censurada,<br />

suprimida, tornada já <strong>in</strong>audível na sua forma orig<strong>in</strong>ária e que só pode ser<br />

transmitida através da ‘fala impura’ dos conquistadores” (F<strong>in</strong>azzi-Agrò,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 243<br />

1996, p.316). A partir desse universo de palavras gestadas, Macunaíma é<br />

porta-voz, como o rapsodo, de outro falar, que não o do conquistador, mas<br />

de quem sobreviveu ao parto do silêncio, da obscuridade. E isso o faz numa<br />

dimensão <strong>in</strong>fantil, tal qual sua aparência, mesmo adulta, “cara enjoativa de<br />

piá” (Andrade, 2001, p.21), que traduz uma atitude sempre br<strong>in</strong>calhona,<br />

tanto no aspecto pueril de sua conduta quanto no sentido erótico de “br<strong>in</strong>car”,<br />

tão natural entre a cultura <strong>in</strong>dígena: “mas assim que deitou o curum<strong>in</strong><br />

nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo<br />

e fi cou um príncipe l<strong>in</strong>do. [...] Nem bem o men<strong>in</strong>o tocou no folhiço e virou<br />

num príncipe fogoso. Br<strong>in</strong>caram” (ibidem, p.14-5).<br />

Se em algumas ações demonstra habilidade e astúcia, como na conquista<br />

da cunhada ou na armadilha à anta, por outro lado possui características<br />

que o <strong>in</strong>serem num universo avesso ao de um herói. Por isso, sua ambiguidade<br />

latente transita entre o heroísmo e valentia, obtida com a ajuda de<br />

doadores mágicos, e sua condição de anti-herói/vilão: “Ficava no canto da<br />

maloca, trepado no jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros e pr<strong>in</strong>cipalmente<br />

os dois manos que t<strong>in</strong>ha, Maanape já velh<strong>in</strong>ho e Jiguê na força<br />

de homem” (ibidem, p.13).<br />

Como no fabulário <strong>in</strong>dígena, exibe um potencial festivo entre seus pares:<br />

“no mucambo si alguma cunhatã se aproximava dele para fazer fest<strong>in</strong>ha,<br />

Macunaíma punha a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos<br />

machos guspia na cara” (ibidem, p.13). Conforme a tradição clânica <strong>in</strong>dígena,<br />

Macunaíma revela fi liação aos ritos ancestrais: “respeitava os velhos<br />

e frequentava com aplicação a murua a poracê o torê o bacorocô a cucuicogue,<br />

todas essas danças religiosas da tribo” (ibidem, p.13). Tais manifestações<br />

conduzem ao “oxímoro caracterológico”, segundo Campos (1973,<br />

p.111), em que “Macunaíma é simultaneamente herói e vilão, como também<br />

herói anti-herói (ora valente, ora covarde) e vilão antivilão (maldoso/<br />

bondoso)”.<br />

Da <strong>in</strong>fância à fase adulta, o herói realiza suas ações de acordo com os<br />

obstáculos que se vão apresentando e são resolvidos à medida que o astuto<br />

<strong>in</strong>térprete do mato virgem e da cidade lança mão de efeitos que se encaixam<br />

perfeitamente para o momento. Nada é pensado com antecedência para que<br />

o resultado seja positivo. As decisões tomadas são, antes de tudo, fruto da<br />

fertilidade de suas estratégias, reveladas na brevidade dos microrrelatos<br />

componentes da saga. Dessa forma, seria imprudente propor qualquer es-


244 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

quema l<strong>in</strong>ear que pudesse abranger os aspectos de fi guração da personagem<br />

enquanto representante autóctone e dar-lhe uma feição unilateral. A ambiguidade<br />

que contorna o <strong>in</strong>dígena pluriétnico concentra-se, justamente, nos<br />

polos em que se encontram, por exemplo, a preguiça, como “negação do<br />

progresso material do homem, [...] elemento propício à criação artística”<br />

(Lopez, 1972, p.110) e sua adesão ao universo lendário e mítico, no qual<br />

habitam todas as espécies de seres dotados de diferentes saberes e ações.<br />

Um espaço bilateral, no qual se esbatem as atribulações do progresso preso<br />

à civilização europeia e o Uraricoera, onde se refugia, seja fi sicamente ou<br />

pela herança que carrega de suas tradições.<br />

Enquanto em Maíra, de Darcy Ribeiro (2001), Isaías, personagem <strong>in</strong>dígena,<br />

afasta-se de sua condição primitiva e se deixa transmutar num ser<br />

<strong>in</strong>defi nível, dadas as marcas da aculturação impressas pela liturgia e crença<br />

católicas, Macunaíma encontra-se permanentemente aberto a cada episódio,<br />

como a <strong>in</strong>iciar um processo de enfrentamento da situação e seu desenlace.<br />

No que se refere às correlações que irrigam o ir e vir entre as culturas,<br />

Isaías resulta num índio sem unidade, um ser “entre”, apagado em sua condição<br />

primitiva e não adequado ao meio civilizado, enquanto Macunaíma<br />

supera o estado de degradação e de suas contradições por meio de sua reunifi<br />

cação, tornando-se estrela e sobrevivendo no mito.<br />

No contato com a civilização, <strong>in</strong>terage, mesmo que pelo aspecto sobrenatural,<br />

com a máqu<strong>in</strong>a e com o modelo de sociedade capitalista. Consome<br />

seu produto, mas não se <strong>in</strong>tegra a ele. Tragado pelo comportamento<br />

da cidade, como no episódio em que “br<strong>in</strong>ca” com as mulheres brancas<br />

numa cama, sobre as quais o herói deita-se de “atravessado”, Macunaíma<br />

faz emergir oposições, que segundo F<strong>in</strong>azzi-Agrò (1996), passam desde<br />

o “valor metafórico (leve/pesado, fofo/duro, suspenso/não suspenso)” à<br />

“contraposição cultural <strong>in</strong>dígena e não-<strong>in</strong>dígena”, como também “entre<br />

mato e cidade”. A<strong>in</strong>da que <strong>in</strong>iciado no universo urbano pelo aprendizado<br />

de ordem sexual, não apaga os limites entre o civilizado e o primitivo. Ao<br />

ter saudade da rede, do dormir de sua gente, por exemplo, resgata um signifi<br />

cado peculiar em que se dest<strong>in</strong>a ao uso íntimo, a uma relação a dois, como<br />

o fora com Ci, sua amada, que a teceu com seus próprios cabelos, enquanto<br />

a cama estaria propensa ao âmbito plural, às relações múltiplas, tal qual<br />

suas metamorfoses. Na <strong>in</strong>terpretação do crítico citado, seria “justamente o<br />

símbolo de uma total impermanência, a qual, por seu lado, evoca a possibi-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 245<br />

lidade/capacidade do brasileiro para transitar através dos ‘lugares plenos’<br />

da identidade”(ibidem, p.324).<br />

A esta altura da refl exão, é possível visualizar, por meio da palavra da<br />

crítica e pelas <strong>in</strong>ferências do texto de Mário, alguns <strong>in</strong>dícios que marcam<br />

a fi gura de Macunaíma enquanto ser plasmado entre discursos partidos de<br />

diferentes pontos de vista históricos e ideológicos. O herói não é um <strong>in</strong>dígena<br />

que congrega o sentido de coletividade, como se pode notar em Darcy<br />

Ribeiro, ao esboçar Isaías, portador de uma feição mairuna que se espalha<br />

pela narrativa. A experiência de Macunaíma é <strong>in</strong>dividual. O seu contexto<br />

tribal nasce com o “murmurejo do Uraricoera”, rio amazônico, afl uente do<br />

Rio Branco, chamado pelos índios Makuschí e Taulipang de Parima ou Parime<br />

(água grande), conforme relato de Koch Grünberg (2006). No espaço<br />

coletivo em que nasce, ocorrem as manifestações de sua <strong>in</strong>dividualidade<br />

perante o grupo, do qual difere em todas as <strong>in</strong>stâncias. As primeiras ações<br />

revelam o modo de vida que escolheu, marcadas satírica ou parodicamente<br />

pela ausência de identidade/caráter, pela astúcia, pelo erotismo frequente e<br />

pela fantasia justaposta à magia <strong>in</strong>stalada em toda sua travessia e no notável<br />

ócio, de onde se orig<strong>in</strong>a a impossibilidade de traçar seu próprio dest<strong>in</strong>o, a<br />

não ser o que lhe causa prazer.<br />

Seu aspecto físico é mudado porque as metamorfoses estão aliadas à magia<br />

a que Macunaíma recorre para solucionar situações, como quando sua<br />

avó cotia iguala seu corpo: “então pegou na gamela cheia de caldo envenenado<br />

de aipim e jogou a lavagem no piá. [...] O herói deu um espirro e<br />

botou corpo. Foi desempenando crescendo fortifi cando e fi cou do tamanho<br />

dum homem taludo. Porém a cabeça não molhada fi cou pra sempre rombuda<br />

e com car<strong>in</strong>ha enjoativa de piá” (Andrade, 2001, p.21). Mesmo assim,<br />

permanece o pensamento de criança, não se sujeita à racionalidade dos que<br />

o querem modifi car, imprim<strong>in</strong>do em si mesmo a potencialidade primitiva<br />

que não se desprende ante a natureza com a qual convive.<br />

Tal relação com o mundo primitivo e mítico conduz a fi gura de um <strong>in</strong>dígena<br />

“transitório”, como afi rmado anteriormente, em razão de conter a<br />

imagem de “impermanência” em sua identidade, que se faz múltipla. Para<br />

F<strong>in</strong>azzi-Agrò (1996, p.325), a mestiçagem que encerra ou a transculturação<br />

pela qual experimentou a face do outro é a “dimensão na qual o polimorfi<br />

smo brasileiro, simbolizado por Macunaíma, tende a descarregar as suas<br />

tensões”. Justamente por não ser uma coisa nem outra, num lugar de di-


246 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

mensão neutra, é que as metamorfoses assumem um poder vital dentro de<br />

sua composição. Em que contribuiria essa cont<strong>in</strong>uidade de transfi guração<br />

na anulação dos limites entre as culturas? Entende-se que por meio dela<br />

estaria preservada a s<strong>in</strong>gularidade da etnia, sua identidade tribal, apesar das<br />

sucessivas alterações e de sua homogeneização. O mecanismo encontrado<br />

para esboçar essa preservação é <strong>in</strong>tensifi cado “mediante a restauração de<br />

velhos mitos” ou “pela criação de novas representações” (Ribeiro, 1996b,<br />

p.252).<br />

Incontestavelmente, Macunaíma é o <strong>in</strong>dígena do século XX, tal qual os<br />

estudos do <strong>in</strong>digenismo brasileiro apontam. Não pode ser compreendido<br />

fora dos quadros históricos e ideológicos de um momento em que está posto<br />

o problema de <strong>in</strong>teração entre etnias tribais e a sociedade nacional. Entende-se<br />

que aí reside o valor maior da narrativa de Mário enquanto divisor<br />

de águas dentro do corpus da literatura brasileira que se ocupou em criar<br />

uma expectativa natural e progressiva em relação ao índio. O diferencial<br />

está, no entanto, na forma de abordagem do estereótipo do <strong>in</strong>dígena, classicamente<br />

tido como preguiçoso, cachaceiro, anormal e que raras vezes esse<br />

decaimento moral foi <strong>in</strong>vestigado. Os efeitos dessa negação que lhe foi dada<br />

apontam para um índio que se vê com os olhos do branco e considera-se<br />

um pária diante da legitimidade das sanções que recaíam sobre si como ser<br />

reprovável.<br />

Diante de tal aspecto, a saída para o herói tapanhumas, ante esse mundo<br />

no qual não teria lugar, é o desengano e um possível retorno ao universo<br />

tribal. Ao tomar consciência do preço do contato com a civilização, volta-se<br />

para o passado, para suas raízes, para as velhas fontes de emoção. Nas fontes,<br />

Mário se alimenta enquanto reorganiza o olhar em direção ao nativo, tal<br />

qual o herói que volta em busca de sua consciência “deixada na ilha de Marapatá”<br />

(Andrade, 2001, p.142). Porém, o “dar-se bem”, ante a mudança<br />

de consciência para a de um hispano-americano, não pode ser <strong>in</strong>terpretado<br />

como um fi nal feliz para o herói. Há um desencanto no retorno ao Uraricoera,<br />

visto no ímpeto em que reproduz o agir do deus Makunaíma dos<br />

Taulipangue: “enxugou a lágrima, consertou o beic<strong>in</strong>ho tremendo. Então<br />

fez uma caborge: sacudiu os braços no ar e virou a taba gigante num bicho<br />

preguiça tod<strong>in</strong>ho de pedra” (ibidem, p.131). Era sua v<strong>in</strong>gança à sociedade<br />

nacional que o subjugou e o submeteu ao seu próprio dest<strong>in</strong>o.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 247<br />

Não é, necessariamente, um embate entre forças, pois o antagonista<br />

Piaimã, e morador da taba gigante, por exemplo, não se constitui um opositor<br />

que mereça o núcleo exemplar de sua função. Macunaíma enfrenta uma<br />

realidade multifacetada que o des<strong>in</strong>tegra de seu sistema, daí reage com as<br />

armas que possui, ou seja, o acervo mítico e folclórico de que o autor lança<br />

mão para dar vazão à sua própria existência como personagem. Ele não<br />

pune a sociedade que o desestabilizou de suas tradições, mas transformála<br />

em pedra assume uma resposta à natureza coercitiva que a cidade, ou<br />

simbolicamente, o progresso, possui ante o avanço da civilização sobre os<br />

grupos <strong>in</strong>dígenas. Diferente da primeira versão, em que a obra term<strong>in</strong>ava<br />

numa apoteose, esta não apresenta nenhum encontro festivo. Segundo<br />

Perrone-Moisés (2007, p.200), “o fi nal do livro ilum<strong>in</strong>a, a posteriori, toda<br />

a farsa com uma luz, se não sombria, pelo menos melancólica. A sátira se<br />

torna sarcástica e o humor, amargo”.<br />

Há, em Macunaíma, uma assimilação não reconhecida. Não é negro,<br />

não é índio, não é branco. Percorreu todo o processo de aculturação e esbarrou<br />

em diferentes obstáculos que só foram transpostos mediante a presença<br />

mágica de elementos ligados à sua origem. O que lhe resta é um cam<strong>in</strong>ho:<br />

retornar à vida da aldeia onde receberá um tratamento simétrico e um sentimento<br />

de grupo que o faz conservar sua identifi cação tribal. Assim, ao<br />

apoderar-se de uma consciência hispano-americana, alarga uma fronteira<br />

maior em direção à cultura tribal e a nacional que não se dá apenas no Brasil.<br />

Isso implica dizer que a transição também signifi ca a mutação <strong>in</strong>tencionada<br />

pelos colonizadores para impor seu domínio sobre o índio, revelando<br />

que a antiga consciência começa a ruir e a se decompor. Em Macunaíma,<br />

mesmo o autor afi rmando que seria um índio sul-americano e não apenas<br />

brasileiro, fi ca a estampa de um índio com a consciência do “outro”, mas<br />

resolvida na realidade do mito, que o imerge na multiplicidade folclórica<br />

nacional, e que o <strong>in</strong>sere numa constelação de personagens s<strong>in</strong>gulares, complexas<br />

e <strong>in</strong>trigantes, mas, ao mesmo tempo, irremediavelmente, fasc<strong>in</strong>ante.<br />

Assim, fi ca a banzar no céu, com seu brilho <strong>in</strong>útil, no ócio, como queria<br />

seu criador, mas anuncia um futuro não ditoso para a “entidade nacional”,<br />

com tom pessimista, assemelhado ao de Paulo Prado, no Retrato do Brasil,<br />

impresso no aborrecimento do herói ante tudo, até mesmo de suas ações e<br />

frases presas à fala sem consciência de um papagaio.


248 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Episódio-referência<br />

Capítulo I<br />

No fundo do mato virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente.<br />

Era preto ret<strong>in</strong>to e fi lho do medo da noite. Houve um momento em que<br />

o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia<br />

tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram de<br />

Macunaíma.<br />

Já na men<strong>in</strong>ice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis<br />

anos não falando. Si o <strong>in</strong>citavam a falar exclamava:<br />

– Ai! que preguiça!...<br />

E não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de<br />

paxiúba, espiando o trabalho dos outros e pr<strong>in</strong>cipalmente os dois manos<br />

que t<strong>in</strong>ha, Maanape já velh<strong>in</strong>ho e Jiguê na força de homem. O divertimento<br />

dele era decepar cabeça de saúva. Vivia deitado mas si punha os olhos<br />

em d<strong>in</strong>heiro, Macunaíma dandava pra ganhar v<strong>in</strong>tém. E também espertava<br />

quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e nus. Passava o tempo<br />

do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados por<br />

causa dos guaimuns diz-que habitando a água doce por lá. No mucambo<br />

si alguma cunhatã se aproximava dele para fazer fest<strong>in</strong>ha, Macunaíma punha<br />

a mão nas graças dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara.<br />

Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a poracê o<br />

torê o bacorocô a cucuicogue, todas essas danças religiosas da tribo.<br />

Quando era para dormir trepava no macuru pequ<strong>in</strong><strong>in</strong>ho sempre se esquecendo<br />

de mijar. Como a rede da mãe estava debaixo do berço, o herói<br />

mijava quente na velha, espantando os mosquitos bem. Então adormecia<br />

sonhando palavras feias, imoralidades estrambólicas e dava patadas no ar.<br />

Nas conversas das mulheres no p<strong>in</strong>o do dia o assunto eram sempre as<br />

peraltagens do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que<br />

“esp<strong>in</strong>ho que p<strong>in</strong>ica, de pequeno já traz ponta”, e numa pajelança Rei Nagô<br />

fez um discurso e avisou que o herói era <strong>in</strong>teligente.<br />

Nem bem teve seis anos deram água num chocalho pra ele e Macunaíma<br />

pr<strong>in</strong>cipiou falando como todos. E pediu pra mãe que largasse da mandioca<br />

ralando na cevadeira e levasse ele passear no mato. A mãe não quis porque<br />

não podia largar da mandioca não. Macunaíma choram<strong>in</strong>gou dia <strong>in</strong>teiro.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 249<br />

De noite cont<strong>in</strong>uou chorando. No outro dia esperou com o olho esquerdo<br />

dorm<strong>in</strong>do que a mãe pr<strong>in</strong>cipiasse o trabalho. Então pediu pra ela que largasse<br />

de tecer o paneiro de guarumá-membeca e levasse ele no mato passear.<br />

A mãe não quis porque não podia largar o paneiro não. E pediu pra nora,<br />

companheira de Jiguê que levasse o men<strong>in</strong>o. A companheira de Jiguê era<br />

bem moça e chamava Sofará. Foi se aproximando ressabiada porém desta<br />

vez Macunaíma fi cou muito quieto sem botar a mão na graça de n<strong>in</strong>guém.<br />

A moça carregou o piá nas costas e foi até o pé de an<strong>in</strong>ga na beira do rio. A<br />

água parara pra <strong>in</strong>ventar um ponteio de gozo nas folhas do javari. O longe<br />

estava bonito com muitos biguás e biguat<strong>in</strong>gas avoando na entrada do furo.<br />

A moça botou Macunaíma na praia porém ele pr<strong>in</strong>cipiou choram<strong>in</strong>gando,<br />

que t<strong>in</strong>ha muita formiga!... e pediu pra Sofará que o levasse até o derrame<br />

do morro lá dentro do mato, a moça fez. Mas assim que deitou o curum<strong>in</strong><br />

nas tiriricas, tajás e trapoerabas da serrapilheira, ele botou corpo num átimo<br />

e fi cou um príncipe l<strong>in</strong>do. Andaram por lá muito.<br />

Quando voltaram pra maloca a moça parecia muito fatigada de tanto<br />

carregar piá nas costas. Era que o herói t<strong>in</strong>ha br<strong>in</strong>cado muito com ela. Nem<br />

bem ela deitou Macunaíma na rede, Jiguê chegava de pescar de puçá e a<br />

companheira não trabalhara nada. Jiguê enquizilou e depois de catar os carrapatos<br />

deu nela muito. Sofará aguentou a sova sem falar um isto.<br />

Jiguê não desconfi ou de nada e começou trançando corda com fi bra de<br />

curauá. Não vê que encontrara rastro fresco de anta e queria pegar bicho na<br />

armadilha. Macunaíma pediu um pedaço de curauá pro mano porém Jiguê<br />

falou que aquilo não era br<strong>in</strong>quedo de criança. Macunaíma pr<strong>in</strong>cipiou chorando<br />

outra vez e a noite fi cou bem difícil de passar pra todos.<br />

No outro dia Jiguê levantou cedo pra fazer armadilha e enxergando o<br />

men<strong>in</strong>o trist<strong>in</strong>ho falou:<br />

– Bom-dia, coraçãoz<strong>in</strong>ho dos outros.<br />

Porém Macunaíma fechou-se em copas carrancudo.<br />

– Não quer falar comigo, é?<br />

– Estou de mal.<br />

– Por causa?<br />

Então Macunaíma pediu fi bra de curauá. Jiguê olhou pra ele com ódio<br />

e mandou a companheira arranjar fi o pro men<strong>in</strong>o, a moça fez. Macunaíma<br />

agradeceu e foi pedir pro pai-de-terreiro que trançasse uma corda para ele e<br />

assoprasse bem nela fumaça de petum.


250 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Quando tudo estava pronto. Macunaíma pediu pra mãe que deixasse o<br />

cachiri fermentando e levasse ele no mato passear. A velha não podia por<br />

causa do trabalho mas a companheira de Jiguê mui sonsa falou pra sogra<br />

que “estava às ordens”. E foi no mato com o piá nas costas.<br />

Quando o botou nos carurus e sororocas da serrapilhiera, o pequeno foi<br />

crescendo e virou príncipe l<strong>in</strong>do. Falou pra Sofará esperar um bocad<strong>in</strong>ho<br />

que já voltava pra br<strong>in</strong>carem e foi no bebedouro de anta armar um laço.<br />

Nem bem voltaram do passeio, tard<strong>in</strong>ha, Jiguê já chegava também de prender<br />

a armadilha no rasto de anta. A companheira não trabalhara nada. Jiguê<br />

fi cou fulo e antes de catar os carrapatos bateu nela muito. Mas Sofará<br />

aguentou a coça com paciência.<br />

No outro dia a arraiada <strong>in</strong>da estava acabando de trepar nas árvores, Macunaíma<br />

acordou todos, fazendo um bué medonho, que fossem! que fossem<br />

no bebedouro buscar a bicha que ele caçara!... Porém n<strong>in</strong>guém não acreditou<br />

e todos pr<strong>in</strong>cipiaram o trabalho do dia.<br />

Macunaíma fi cou muito contrariado e pediu pra Sofará que desse uma<br />

chegad<strong>in</strong>ha no bebedouro só para ver. A moça fez e voltou falando pra todos<br />

que de fato estava no laço uma anta muito grande já morta. Toda tribo<br />

foi buscar a bicha, matutando na <strong>in</strong>teligência do curumim. Quando Jiguê<br />

chegou com a corda de curauá vazia, encontrou todos tratando da caça, ajudou.<br />

E quando foi pra repartir não deu nem um pedaço de carne pra Macunaíma,<br />

só tripas. O herói jurou v<strong>in</strong>gança.<br />

No outro dia pediu pra Sofará que levasse ele passear e fi caram no mato<br />

até a boca-da-noite. Nem bem o men<strong>in</strong>o tocou no folhiço e virou num príncipe<br />

fogoso. Br<strong>in</strong>caram. Depois de br<strong>in</strong>carem três feitas, correram mato<br />

afora fazendo fest<strong>in</strong>has um pro outro. Depois das fest<strong>in</strong>has de cotucar, fi -<br />

zeram as das cócegas, depois se enterraram na areia, depois se queimaram<br />

com fogo de palha, isso foram muitas fest<strong>in</strong>has. Macunaíma pegou num<br />

tronco de copaíba e se escondeu por detrás da piranheira. Quando Sofará<br />

veio correndo, ele deu com o pau na cabeça dela. Fez uma brecha que a<br />

moça caiu torcendo de riso aos pés dele. Puxou-o por uma perna. Macunaíma<br />

gemia de gosto se agarrando no tronco gigante. Então a moça abocanhou<br />

o dedão do pé dele e engoliu. Macunaíma chorando de alegria tatuou<br />

o corpo dela com o sangue do pé. Depois retesou os músculos, se erguendo<br />

num trapézio de cipó e aos pulos at<strong>in</strong>giu num átimo o galho mais alto da<br />

piranheira. Sofará trepava atrás. O ramo fi n<strong>in</strong>ho envergou oscilando com o


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 251<br />

peso do príncipe. Quando a moça chegou também no tope eles br<strong>in</strong>caram<br />

outra vez balanceando no céu. Depois de br<strong>in</strong>carem Macunaíma quis fazer<br />

uma festa em Sofará. Dobrou o corpo todo na violência dum puxão mas<br />

não pôde cont<strong>in</strong>uar, galho quebrou e ambos despencaram aos emboléus até<br />

se esborracharem no chão. Quando o herói voltou da sapituca procurou a<br />

moça em redor, não estava. Ia se erguendo pra buscá-la porém do galho<br />

baixo em riba dele furou o silêncio o miado temível da suçuarana. O herói<br />

se estatelou de medo e fechou os olhos para ser comido sem ver. Então se<br />

escutou um ris<strong>in</strong>ho e Macunaíma tomou com uma gusparada no peito, era<br />

a moça. Macunaíma pr<strong>in</strong>cipiou atirando pedras nela e quando feria, Sofará<br />

gritava de excitação tatuando o corpo dele em baixo com o sangue espirrado.<br />

Afi nal uma pedra lascou o canto da boca da moça e moeu três dentes.<br />

Ela pulou do galho e juque! tombou sentada na barriga do herói que a envolveu<br />

com o corpo todo, uivando de prazer. E br<strong>in</strong>caram mais outra vez.<br />

Já a estrela Papaceia brilhava no céu quando a moça voltou parecendo<br />

muito fatigada de tanto carregar piá nas costas. Porém Jiguê desconfi ando<br />

seguira os dois no mato, enxergara a transformação e o resto. Jiguê era muito<br />

bobo. Teve raiva. Pegou num rabo-de-tatu e chegou-o com vontade na<br />

bunda do herói. O berreiro foi tão imenso que encurtou a tamanhão da noite<br />

e muitos pássaros caíram de susto no chão e se transformaram em pedra.<br />

Quando Jiguê não pôde mais surrar, Macunaíma correu até a capoeira,<br />

mastigou raiz de cardeiro e voltou são. Jiguê levou Sofará pro pai dela e<br />

dormiu folgado na rede. (p.13-6)


2<br />

O MISTÉRIO AMERÍNDIO PLASMADO<br />

NA INTIMIDADE DAS ÁGUAS POÉTICAS<br />

DE COBRA NORATO<br />

(RAUL BOPP)<br />

Em um dos casos que me contaram em m<strong>in</strong>has andanças<br />

pelo Baixo Amazonas, aparecia, por ocasião da lua cheia,<br />

a cobra Grande, que v<strong>in</strong>ha cobrar o resgate de uma moça.<br />

[...] Um dia, pelos cam<strong>in</strong>hos da <strong>in</strong>tuição, e a<strong>in</strong>da sob a<br />

<strong>in</strong>fl uência dos Nheengatus de Amorim, pensei em fi xar este<br />

mito num episódio poemático, tendo, como pano de fundo, a<br />

grande caudal de água doce e a fl oresta.<br />

Raul Bopp<br />

Filhos do sol, mãe dos viventes. Encontrados e amados<br />

ferozmente, com toda a hipocrisia da saudade, pelos<br />

imigrados, pelos trafi cados e pelos touristes. No país da<br />

cobra grande.<br />

Oswald de Andrade, Manifesto antropófago<br />

Para compreender o sentido mais profundo da saga do protagonista de<br />

Cobra Norato, é necessário, antes de tudo, embutir-se “nessa pele de seda<br />

elástica” e “correr mundo” (I, p.3), tal qual seu criador o fez. Esse é apenas<br />

um dos possíveis cam<strong>in</strong>hos pelo qual se pode adentrar ao espetáculo poético<br />

considerado por Drummond (1978, p.100) “o mais brasileiro de todos<br />

os livros de poemas brasileiros”. Para isso, “você tem que apagar os olhos<br />

primeiro” (I, p.3) e beber o cam<strong>in</strong>ho que Raul Bopp liquefez entre árvores<br />

acocoradas em charcos, agigantadas pela fl oresta, que an<strong>in</strong>ha não somente<br />

os mistérios das águas, da fl ora e fauna, como também, o projeto de fecun-


254 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

dar o Brasil nele mesmo, por meio de suas raízes primitivas, a<strong>in</strong>da a serem<br />

roídas pela cultura brasileira.<br />

É com essa imagem que se <strong>in</strong>icia a leitura do texto considerado um “paralelo<br />

em verso de Macunaíma”, por Murilo Mendes (1978, p.11), ao propor<br />

a ruptura dos modelos europeus, por meio de uma parte do Brasil a<strong>in</strong>da<br />

<strong>in</strong>comunicável em sua <strong>in</strong>timidade, mas “grávida” de um cenário propício à<br />

efusão do primitivismo latente, capaz de aclimatar o ambiente amazônico<br />

em seu terror e sombria grandeza.<br />

O autor, Bopp, gaúcho de Santa Maria, “comedor de cam<strong>in</strong>hos” a partir<br />

de Tupaceretã, é movido pela curiosidade em decifrar os mistérios do<br />

homem, dentre eles, os que percorrem os labir<strong>in</strong>tos amazônicos, de onde<br />

recolheu e traduziu a essência daquele mundo desconhecido até então. Em<br />

suas viagens, de modo especial, a de Belém, no Pará, deteve-se na audição<br />

dos “causos”, nas danças regionais e pajelanças que o <strong>in</strong>stigavam e lhe alimentavam<br />

a imag<strong>in</strong>ação. Não viajou apenas ao Amazonas. Seu <strong>in</strong>teresse<br />

em conhecer o Brasil o fez cursar Direito em regiões diferentes, do Sul ao<br />

Recife, em Belém, no Pará, ao Rio de Janeiro. Sem contar as <strong>in</strong>cursões pelos<br />

países da América Lat<strong>in</strong>a no lombo de um cavalo ou de um boi, num trem<br />

de lenha ou carreta de bois, meios que o puseram em contato com as paisagens<br />

mais <strong>in</strong>sólitas aos olhos do “Marco Polo do nosso tempo”. E o mundo<br />

sentiu os passos deste <strong>in</strong>fatigável viajante, que não se eximiu em alcançar os<br />

horizontes da Índia, Ch<strong>in</strong>a, África, Austrália, dentre tantos outros, onde o<br />

homem tem sua “alma copiada pela geografi a”.<br />

É o Brasil, no entanto, o espaço do qual se esboçam as imagens centrais<br />

de um universo poético a ser fundido na recriação do mito da Cobra<br />

Grande. Na Amazônia, de modo particular, o poeta tem as lições que, mais<br />

tarde, seriam as l<strong>in</strong>has mestras do Movimento da Antropofagia, ao qual<br />

se ligou fortemente, após uma passagem pelo Verdeamarelismo. Ao ler a<br />

obra Cobra Norato e a biografi a de Bopp, tem-se a impressão de que ambas<br />

fundem um ritual de travessia, amalgamadas por sugestões captadas<br />

pela sensibilidade desse modernista que soube desentranhar do mundo<br />

amazônico em formação a face do país em estado pré-cabral<strong>in</strong>o. Segundo<br />

Oliveira (2002, p.242), sua autenticidade “é s<strong>in</strong>al tangível e <strong>in</strong>alienável de<br />

um <strong>in</strong>telectual que soube, como poucos, mergulhar na realidade do seu país<br />

e traduzir fi elmente, pela literatura, toda a riqueza do patrimônio cultural<br />

s<strong>in</strong>crético do Brasil, feito de tradições, costumes, crenças, contos populares<br />

e mitos arcanos, extremamente vitais”.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 255<br />

O próprio autor declara seu sentimento à Amazônia, como “um cenário<br />

completamente diferente, de uma violência desconcertante. A l<strong>in</strong>ha constante<br />

de água e mato era a moldura de um mundo a<strong>in</strong>da <strong>in</strong>cógnito e confuso.<br />

[...] Era uma geografi a do mal-acabado. As fl orestas não t<strong>in</strong>ham fi m.<br />

A terra se repetia, carregada de alaridos anônimos” (Bopp, 1977, p.11-2).<br />

Para transformar essa totalidade em substância poética, segundo o autor,<br />

não seriam sufi cientes “os moldes métricos fracionados”, que serviram ao<br />

universo clássico era necessário “romper com a processualística do verso”<br />

para “refl etir com sensibilidade um mundo misterioso e obscuro em vivências<br />

pré-lógicas” (ibidem, p.12).<br />

Esses motivos já seriam sufi cientes para explicitar a escolha de Cobra Norato<br />

neste capítulo, mas é preciso compreender que, além da efusão telúrica<br />

da obra, emersa da curiosidade constante do autor, existem outros fatores importantes<br />

em sua composição como os trabalhos avulsos sobre a Amazônia,<br />

de Antonio Brandão de Amorim, “com nheengatus colhidos genu<strong>in</strong>amente<br />

nas malocas do Urariquera”, revelados por seu amigo, Alberto Andrade<br />

Queiroz, com o qual t<strong>in</strong>ha afi nidades em relação às publicações modernistas<br />

do Movimento Ultraísta, da Espanha: “era um idioma novo, de uma pureza<br />

lírica deliciosa. No seu mundo as árvores falavam. O sol andava de um lado<br />

para o outro” (idem, p.16). Tomado pelo forte sabor <strong>in</strong>dígena dos textos,<br />

pelas experiências em andanças pela região e, diante do material folclórico<br />

recolhido em diferentes pontos da Amazônia, Bopp fi xa, “num episódio<br />

poemático, o mito da Cobra Grande, <strong>in</strong>terpretado, em suas múltiplas variantes,<br />

pela crendice dos canoeiros, como o gênio mau da região” (ibidem).<br />

Somente em 1927, em São Paulo, Bopp retoma o trabalho, acrescentando-lhe<br />

“algumas variantes ornamentais”, como afi rma o próprio autor em<br />

sua “biografi a” passada a limpo por ele mesmo. Durante as nove primeiras<br />

edições, o poema sofreu alterações até ser publicado em 1931, por amigos,<br />

à sua revelia. Com isso, o autor teve uma fase de convívio duradouro com o<br />

poema, segundo Drummond (1978, p.99), na qual “quis tornar a<strong>in</strong>da mais<br />

nítida pela remanipulação artística do texto. [...] Bopp substituiu, deslocou,<br />

suprimiu palavras, expressões, frases, versos”, <strong>in</strong>corporando-o dentre<br />

os que formam “o novo Evangelho da Poesia Brasileira”, segundo Menotti<br />

del Picchia (1978, p.101).<br />

Ler a obra de Bopp, tal como afi rma Averbuck (1978, p.113-4), é “tomar<br />

lições de brasilidade, apropriar-se de raízes, desvendar um mundo natural


256 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

visto como se acabasse de ser criado.[...] É preciso antes sentir que <strong>in</strong>vestigar”,<br />

outro motivo pelo qual é representativa dentro do corpus aqui recortado,<br />

pela ligação estreita que mantém com o “passado lendário que é a consciência<br />

coletiva”, um olhar cuidadoso com o que é autenticamente brasileiro.<br />

Dada a complexidade de fatores enovelados no poema, e passíveis de<br />

leitura, é necessário desl<strong>in</strong>dar alguns pontos fundamentais para o cumprimento<br />

dos objetivos deste trabalho. Dentre eles, serão destacados os aspectos<br />

que <strong>in</strong>serem o poema no momento em que a literatura brasileira se volta<br />

para a expressão nacional autônoma, como também, as questões no entorno<br />

do gênero e o poder de encantamento que explode do subsolo poético. Dentro<br />

desse ideário, deverá emergir, concomitantemente, a temática <strong>in</strong>dígena,<br />

suscitada pelas articulações do texto e seus signifi cados.<br />

O primeiro passo vai ao momento sócio-histórico que o país atravessava,<br />

pleno de turbulências e de transformações que ultrapassavam a fronteira do<br />

estético. As primeiras décadas do século XX foram marcadas não apenas<br />

pelo mérito da abrangência do Movimento Modernista, mas pelo aspecto<br />

criador entre as forças que se entrecruzaram desde a Semana de 22. O<br />

quadro nacional del<strong>in</strong>eou-se pelo desenvolvimento da <strong>in</strong>dústria, da v<strong>in</strong>da<br />

de imigrantes, da queda das oligarquias, do aumento do capital estrangeiro,<br />

da ascensão dos centros urbanos, de modo particular São Paulo, que se<br />

<strong>in</strong>stituiu polo <strong>in</strong>dustrial. Eventos importantes para uma nação que t<strong>in</strong>ha<br />

urgência em se afi rmar por meio do espírito nacional e coletivo de seu povo<br />

e de suas sensações primordiais.<br />

O modernismo passa a signifi car, em meio às mudanças propostas,<br />

“uma posição de lucidez e de recusa, de busca de uma nova expressão estética<br />

para um novo pensamento, representando, sobretudo, o desatar da<br />

consciência nacional. O rompimento com os modelos de pensamento do<br />

passado viria, assim, a se concretizar numa exigência de novos códigos de<br />

falar e de escrever” (Averbuck, 1985, p.30). Os objetivos apontam, então,<br />

para as matrizes nacionais, compreendendo as <strong>in</strong>ovações como cam<strong>in</strong>hos<br />

de redescoberta do país, de releitura de sua história e do encontro com o<br />

universo mítico, no qual habitam os elementos das culturas primitivas, representantes<br />

do passado étnico brasileiro e de sua expressão mais sólida que<br />

se transfi gura na arte.<br />

Esse espírito nacionalizante não é, no entanto, novo na literatura. O que<br />

o difere de anteriores, respeitadas as razões da época, é a tentativa de apa-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 257<br />

gar um passado alheio, para, sobre o mesmo, fazer um <strong>in</strong>ventário do Brasil,<br />

percorrendo as vias da paisagem, do folclore, das características de formação<br />

do povo, “dando fi sionomia própria ao pensamento nacional”, como já<br />

apontara Machado de Assis (1959, p.815), ao discutir questões acerca da<br />

nacionalidade.<br />

Na literatura, esses elementos tomaram diferentes feições: os de cunho<br />

documental, os metafóricos, líricos e afetivos, provenientes das falas regionais,<br />

da oralidade espontânea do povo, como se percebem acentuados em<br />

Macunaíma, Cobra Norato e Manuscrito holandês. Todos ligados a um ponto<br />

de convergência, unifi cador, no qual coexistem, lado a lado, o primitivo<br />

e o civilizado, a cidade e o sertão, o arcaico e o moderno. Uma abertura<br />

para os vários Brasis, que a Antropofagia tomou como tema, para del<strong>in</strong>ear<br />

um nacionalismo erigido do período pré-cabral<strong>in</strong>o, da civilização <strong>in</strong>dígena,<br />

mais exigente como programa de reconstrução da consciência nacional, tal<br />

como afi rma o mentor do Manisfesto antropófago: “antes dos portugueses<br />

descobrirem o Brasil, o Brasil t<strong>in</strong>ha descoberto a felicidade. Contra o índio<br />

tocheiro. O índio fi lho de Maria, afi lhado de Catar<strong>in</strong>a de Médicis e genro de<br />

D. Antônio de Mariz” (Andrade, 1995, p.51).<br />

São essas as l<strong>in</strong>has gerais do contexto do qual Cobra Norato é resultado,<br />

e que não se poderia discuti-las, aqui, com maior profundidade, dados os<br />

demais aspectos a serem relevados nesse percurso. Assim, o passo segu<strong>in</strong>te<br />

é percorrer o poema, no que diz respeito às imagens impressas em sua estrutura,<br />

que se abrem constantemente a novas <strong>in</strong>dagações.<br />

A primeira evidência suscitada com a leitura do poema aponta para o<br />

fi o narrativo que sustenta a travessia do protagonista. Assim, o que fora,<br />

segundo relato do autor, um poema escrito para crianças, toma uma dimensão<br />

complexa e harmônica, ao mesmo tempo em que a realidade agressiva<br />

e misteriosa do mundo amazônico eleva-se a partir de uma l<strong>in</strong>guagem telúrica<br />

ao tamanho de seus mitos e de sua poesia. Segundo Averbuck (1985,<br />

p.95), exegeta de Cobra Norato, o poema<br />

desenvolve uma l<strong>in</strong>ha discursiva (conta uma história), ou uma “poesia narrativa”<br />

em que o herói enfrenta a fl oresta equatorial – um mundo primitivo em<br />

formação –, vence <strong>in</strong>úmeros obstáculos que se lhe antepõem, sempre na busca<br />

febril de seu obsessivo sonho amoroso: a conquista da “fi lha da ra<strong>in</strong>ha Luzia”,<br />

personagem entre lendária e imag<strong>in</strong>ária.


258 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Em pr<strong>in</strong>cípio, são reconhecidas algumas características que remontam<br />

à literatura épica, pois sua essência narrativa pauta-se pelos feitos de um<br />

herói em constante busca pela conquista de um ideal. Somado à natureza<br />

de aventura, está o s<strong>in</strong>gular caráter simbólico das imagens mitológicas da<br />

Amazônia, que o torna, então, não essencialmente épico, mas tecido ao vigor<br />

lírico. Com essa largueza de confi guração, não há uma defi nição precisa<br />

que o localize num dos dois polos: épico ou lírico. Dada a forma híbrida que<br />

o sustenta, Averbuck (1985, p.98) o considera uma rapsódia, a exemplo de<br />

Macunaíma, “por sua múltipla natureza temática, de caráter popular e folclórico”,<br />

ou a<strong>in</strong>da “o poema é um e é mil, como uma vez teria desejado Mário<br />

de Andrade”. A<strong>in</strong>da acerca da natureza do poema, Oliveira (2002, p.82)<br />

o defi ne como “uma metáfora do primeiro homem chegando a um mundo<br />

mágico e sem fi m. É o Brasil que se apossa poeticamente de sua <strong>in</strong>fância,<br />

<strong>in</strong>staurando, com esse tempo perdido, uma relação empática”.<br />

Ante a orig<strong>in</strong>alidade e a subversão às formas convencionais, até mesmo<br />

as do modernismo, Schüller (1978, p.126) entende que o poema “volta as<br />

costas ao mologismo da poesia discursiva. [...] O diálogo é provocado pela<br />

evasão da certeza. Norato assume a atitude de quem não sabe. [...] Árvores<br />

e rios, coisifi cados pelas etiquetas ou pela <strong>in</strong>diferença, falam porque o poeta<br />

os <strong>in</strong>terroga”. Na <strong>in</strong>terpretação de Trevisan (1978, p.123), “o poema de alguma<br />

sorte é estruturalmente mole. Que é mesmo que lhe serve de esp<strong>in</strong>ha?<br />

Nada. Estira-se como uma jibóia ao longo de admiráveis versos nos quais<br />

os achados se avolumam. A moleza do poema consiste em sua mitologia<br />

alérgica a qualquer defi nição”.<br />

Assim como no poema, as divergências ocorrem, também, no campo da<br />

crítica, no que tange a oferecer uma precisão de leitura. O que se pode aferir,<br />

a partir do produzido em seu entorno, é que novas <strong>in</strong>dagações são provocadas<br />

mediante as balizas que lhe são postas, como exclamações a cada<br />

metáfora encoberta pela engenhosa fábula.<br />

É a partir dessa vocação de modernidade que os 33 cantos se edifi cam<br />

como cenas da fl oresta a serem vistas como imagem de um mundo captado<br />

pela percepção visual, mas sugado pela imagem verbal, que lhe dá d<strong>in</strong>amismo<br />

e dramaticidade. Assim, segundo o eu poético, “você tem que apagar os<br />

olhos primeiro” (I, p.3), e se “enfi ar” na pele da cobra, atitudes que permitirão<br />

perceber o mundo primitivo sem a contam<strong>in</strong>ação do homem civilizado.<br />

O ver, sob essa condição de metamorfose, ultrapassa o signifi cado restrito


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 259<br />

da fl oresta enquanto espaço geográfi co, e alcança a esfera do mágico, na qual<br />

se pode “ver a fi lha da ra<strong>in</strong>ha Luzia” e fazer o percurso de ida e de volta, no<br />

<strong>in</strong>terior do mito da Cobra Grande.<br />

Assim se constrói a saga do herói-narrador, ao apossar-se antropofagicamente<br />

da “pele elástica”, para “correr o mundo” (I, p.3). Somente em<br />

condição de semidiv<strong>in</strong>dade, saído, portanto, da condição humana, são-lhe<br />

assegurados os poderes com os quais vencerá a Cobra Grande e o fará chegar<br />

às “terras do Sem-fi m” (I, p.3) para obter seu ideal erótico-amoroso, a<br />

fi lha da Ra<strong>in</strong>ha Luzia. Para isso, terá que passar por provas: “passar por<br />

sete portas/ver sete mulheres brancas de ventres despovoados/guardadas<br />

por um jacaré” (II, p.5), ou a<strong>in</strong>da “entregar a sombra para o Bicho do Fundo/<br />

fazer mirongas na lua nova/ beber três gotas de sangue” (II, p.5).<br />

Tal qual compete a um herói, possui a ajuda do Tatu-de-bunda-seca, do<br />

Jabuti e do Pajé-pato, que o movem até sua heroína, por entre “a fl oresta<br />

de hálito podre/par<strong>in</strong>do cobras” (IV, p.9), até a descoberta da “entrada da<br />

casa da Boiúna” (XXXI, p.52), na qual “vai passando uma canoa carregada<br />

de esqueletos” (XXXI, p.52) e onde se pode ver a noiva da Cobra Grande.<br />

Assim, a fi lha da ra<strong>in</strong>ha é resgatada e o narrador-progonista refaz o cam<strong>in</strong>ho,<br />

com provas a<strong>in</strong>da mais duras das que foi submetido na primeira travessia<br />

da fl oresta, pois agora será perseguido pela Cobra Grande. Os auxiliares<br />

mágicos sustentam a fuga, como o Pajé-pato que ens<strong>in</strong>a um cam<strong>in</strong>ho<br />

errado:<br />

– Cobra Norato com uma moça?<br />

Foi pra Belém Foi se casar<br />

Cobra Grande esturrou direito pra Belém<br />

Deu um estremeção<br />

Entrou no cano da Sé<br />

e fi cou com a cabeça debaixo dos pés de Nossa Senhora (XXXI, p.54)<br />

Diante disso, pede ao compadre Tatu-de-bunda-seca que convide “o<br />

Augusto Meyer Tarsila Tatiz<strong>in</strong>ha” e o povo “de Belém de Porto Alegre de<br />

São Paulo” (XXXIII, p.57) para seu casamento lá nas “terras altas/onde a


260 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

serra se amontoa” (XXXII, p.56). O herói-protagonista tem seu ideal conquistado,<br />

ao lado de sua noiva, nas terras do Sem-fi m.<br />

Como se pode notar no breve relato da saga, não há um <strong>in</strong>dígena-personagem,<br />

tal qual se encontra em Macunaíma e no Manuscrito holandês, mas<br />

sua presença está impressa no que lhe é de mais autêntico e vivo: o mito. É<br />

por meio das histórias coletivas do povo amazônico que emerge a riqueza<br />

fabular do poema. Do universo tupi, povoado de seres mitológicos, é capturado<br />

o mundo de seres arcaicos, no qual homem e natureza formam uma<br />

só unidade, “recuperá-lo, como fez o poema de Bopp, signifi ca, portanto,<br />

recuperar a l<strong>in</strong>guagem pura do <strong>in</strong>ocente” (Averbuck, 1985, p.114).<br />

Não se trata de um mito apenas, recriado em meio ao fervor modernista<br />

de ir ao primitivo, com o <strong>in</strong>tuito de revelar um traço de nacionalidade.<br />

Mais que a preocupação com a fi sionomia própria do país, o mito <strong>in</strong>dígena,<br />

entrelaçado com variantes de outros elementos do fabulário amazônico,<br />

refl ete um modo particular de conceber o mundo, o que Averbuck (1985,<br />

p.115) considera “a frescura da l<strong>in</strong>guagem primitiva, documento da visão<br />

mítica, resguardando, nos temas, na ótica e na estrutura da l<strong>in</strong>guagem, a<br />

predom<strong>in</strong>ância de uma concepção concreta e magicista”. Cabe lembrar que<br />

Mário de Andrade, em seu Macunaíma, <strong>in</strong>s<strong>in</strong>uou a partida de um grupo de<br />

escritores, dentre eles Bopp, que <strong>in</strong>staurariam a modernidade na cultura<br />

brasileira, <strong>in</strong>do às raízes, cada um com seus <strong>in</strong>strumentos e em seu universo,<br />

identifi cando-se com o desejo de renovação: “e os macumbeiros Macunaíma,<br />

Jaime Ovalle, Dodô, Manu Bandeira, Blaise Cendrars, Ascenso<br />

Ferreira, Raul Bopp, Antônio Bento, todos esses macumbeiros saíram na<br />

madrugada” (Andrade, 2001, p.64).<br />

Dentro da modernidade que se <strong>in</strong>staurava e diante dos aspectos a serem<br />

revitalizados, o poema conseguiu “alcançar uma síntese cultural própria,<br />

com maior densidade de consciência nacional” (Carvalhal, 1978, p.138),<br />

operando, por sua ambiguidade, a trajetória de um herói não nomeado, que<br />

poderia ser descendente do clã de Macunaíma e Mitavaí Arandu. Ele desdobra<br />

as imagens de aventura da brasilidade, ante um panorama composto<br />

pela variedade e pelas contradições, mas apreendido numa visão unitária,<br />

tal como Bopp escreveu em seus Parapoemas: “Somos um Brasil fora das<br />

medidas”.<br />

Da estrutura simbólica do mito da Cobra Grande nasce o tecido embrionário<br />

do poema. O mito básico apresenta o lado maléfi co do gênio das


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 261<br />

águas, como representação do terror, contrapondo, na ação narrativa, a fl oresta<br />

ao homem. Do orig<strong>in</strong>ário às variantes, vê-se presente, por meio da<br />

herança coletiva, o arquétipo da mãe de todas as águas, conforme registra<br />

a tradição amazônica dos mitos aquáticos, como a lenda da Uiara, a Cobra<br />

Grande ou Boiúna (boi-una, cobra preta ou mboiaçu), o Boto, o Norato, o<br />

Ipupiara, dentre outros.<br />

Nos registros de Câmara Cascudo (2001), em seu Dicionário do folclore<br />

brasileiro, o mito da Cobra Grande ou Boiúna, o mais conhecido entre a<br />

mitologia <strong>in</strong>dígena, narra a história de uma mulher <strong>in</strong>dígena, engravidada<br />

pela Cobra Grande quando tomava banho num canal do Cachoeiro, entre<br />

o rio Amazonas e o rio Trombetas. Nasceram duas crianças, um men<strong>in</strong>o e<br />

uma men<strong>in</strong>a, os quais foram jogados ao rio, por conselho do pajé, onde se<br />

criaram como cobras d’água. Honorato (Norato) e a irmã, Maria Can<strong>in</strong>ana,<br />

lá viveram juntos até que o aspecto maligno de Maria se revelasse, virando<br />

embarcações, persegu<strong>in</strong>do animais, matando pessoas. Para restaurar<br />

sua paz, Norato matou a irmã. À noite, cobra Norato desencantava-se e<br />

tornava-se um belo rapaz, frequentando festas próximas ao rio. À margem,<br />

fi cava o corpo da cobra, <strong>in</strong>ofensivo, mesmo diante do assombro que causava.<br />

Para quebrar a maldição, era necessário que alguém colocasse leite na<br />

boca do réptil e lhe batesse na cabeça até que marejasse sangue. Apenas um<br />

soldado de Cametá, no rio Tocant<strong>in</strong>s, teve coragem de cumprir a exigência<br />

e tornou Honorato livre.<br />

No poema, é possível reconhecer duas vertentes simbólicas do mito: o<br />

da Cobra Grande traduz o gênio maléfi co, provoca riscos e seu uivo é capaz<br />

de paralisar a energia de outros animais. É, portanto, a versão de um deus<br />

maligno, de ação destruidora, que controla o re<strong>in</strong>o das águas, impondo-lhe<br />

obstáculos e enigmas, como se sua função fosse a de vigiar um tesouro, materializado<br />

na força vital amazônica. O aspecto prosaico apresenta a formidável<br />

sucuriju, vivente dos rios, que mata por arrocho e deglute a vítima<br />

<strong>in</strong>teira. Depois, passa dias para realizar a digestão num pedaço de terra<br />

onde haja mato para disfarçar sua presença. Segundo Tocant<strong>in</strong>s (2000), “é a<br />

fi gura da felonia e da traição”.<br />

É na fi guração perpetuada pelos povos descendentes de <strong>in</strong>dígenas e os<br />

caboclos ribeir<strong>in</strong>hos que se encontra a segunda vertente. É por essa aventura<br />

que se faz o percurso do protagonista-narrador, vestido na pele de Cobra<br />

Norato, em que revela o aspecto generoso, de herói positivo, construído


262 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

sobre valores como a valentia, o amor, a coragem e o prazer, em contato<br />

harmônico com a natureza.<br />

Esses fatores são gerados a partir da condição de semidiv<strong>in</strong>dade que<br />

assume, pois é homem em pele de cobra, e desencadeia o confronto entre<br />

as forças que regem o universo das águas, espaço geográfi co ocupado por<br />

excelência pela guardiã, a cobra Grande. Considerados os elementos que<br />

fi guram com maior frequência, Averbuck (1985, p.123) atribui a Cobra Norato<br />

a qualidade de “poema da noite e da água”, porque os elementos da<br />

natureza ocupam tanto o espaço geográfi co, quanto o emocional, no qual “a<br />

água serve de tema condutor ao longo da travessia do herói pelos meandros<br />

da fl oresta”.<br />

A água simboliza a fertilidade, “elemento vital da paisagem física da<br />

Amazônia” e “componente <strong>in</strong>dispensável também do imag<strong>in</strong>ário coletivo<br />

popular da região” (Oliveira, 2002, p.255). Num movimento contínuo, ora<br />

de águas paradas, ora agitadas, o cenário líquido é presença marcante no<br />

poema e encerra a imagem do seio materno, como “um útero de lama” (IX,<br />

p.14), dentre outras recorrentes nas mitologias das mais diferentes civilizações.<br />

Em sua esp<strong>in</strong>ha dorsal escorre o material gerador de poesia em proporções<br />

dilatadas: “rios afogados/bebendo o cam<strong>in</strong>ho” (II, p.5); “rios magros<br />

obrigados a trabalhar” (IV, p.9); “um plasma visguento se descostura”<br />

(VI, p.11); “água rasteira agarra-se nos troncos” (VIII, p.13); “o charco<br />

embarriga” (VIII, p.13); “chegam ondas cansadas da viagem” (XIX, p.27).<br />

Nota-se, por meio das construções imagéticas apontadas acima, que a<br />

fl oresta se nutre dos elementos que deslizam pelas águas, tal qual o protagonista<br />

embebeda-se das fontes do imag<strong>in</strong>ário para chegar ao dest<strong>in</strong>o. Assim,<br />

ao componente aquático, povoado de seres estranhos, ligam-se as fi guras da<br />

“fl oresta cifrada”: “a sombra escondeu as árvores/sapos beiçudos espiam<br />

no escuro”(II, p.5); “bocejam árvores sonolentas”; “as velhas árvores grávidas<br />

cochilam” (p.6); “fl oresta de hálito podre/par<strong>in</strong>do cobras”; “raízes<br />

desdentadas mastigam lodo” (IV, p.9); “um berro atravessa a fl oresta/chegam<br />

outras vozes” (p.9).<br />

Floresta e água podem ser consideradas duas imagens consoantes para<br />

a atmosfera do mistério, no qual se alimenta o mito da serpente. Em suas<br />

várias formas, do tupi ao texto bíblico, há o vínculo com a ideia do pr<strong>in</strong>cípio<br />

de todas as coisas, do surgimento do cosmos, à medida que a água proporciona<br />

o ambiente vital que, em geral, dá aos heróis o atributo especial na


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 263<br />

conquista de um ideal ou no cumprimento de uma missão legada apenas às<br />

div<strong>in</strong>dades ou aos que são regidos por elas. Diante disso, não se pode afastar<br />

a associação de Norato, nascido às margens de um rio, com o simbolismo da<br />

serpente. Tal qual o mito, “a serpente visível sobre a terra, macho e fêmea<br />

ao mesmo tempo, é ser <strong>in</strong>temporal, permanente e imóvel em sua completude”<br />

(Averbuck, 1985, p.121).<br />

Além disso, a serpente traz consigo, desde tempos remotos, a representação<br />

da sexualidade, implícita em sua dupla expressão: ser maligno, ligada<br />

à morte, e geradora de fertilidade, ligada à fi gura da mulher. No poema,<br />

entrelaçam-se os dois polos, unidos pela magia da fl oresta e da água. Cobra<br />

Grande e Cobra Norato, mito do mal e do bem, encontram-se pela natureza<br />

humana do protagonista, sob a perspectiva do prazer, tomando como meta a<br />

obtenção da donzela raptada pela Cobra Grande. Uma nova rede simbólica<br />

abre-se à medida que a <strong>in</strong>corporação da lua e da noite, no poema, complementa<br />

o cenário de mistério e de refl exão: “o luar na noite da transfi guração<br />

não é real, surge como o produto do fazer-de-conta” (Schüller, 1978, p.126).<br />

Desse modo, a regência da fl oresta “cifrada” e da “água rasteira” cabe<br />

à lua, o astro que dá ritmo à vida e imagem constante no poema para estabelecer<br />

o clima poético: “Faz de conta que há luar” (I, p.3); “Acordo/A lua<br />

nasceu com olheiras/O silêncio dói dentro do mato” (XI, p.17). Além disso,<br />

desenha o cenário propício no qual se fazem mais fortes os desejos e as<br />

forças sobrenaturais se <strong>in</strong>tensifi cam. Conforme aponta Campagnaro (1979,<br />

p.52), “a lua preside aos grandes acontecimentos da Natureza”, como<br />

a chegada de Cobra Grande ao buscar moça virgem: “Quando começa a<br />

lua cheia ela parece/Vem buscar moça que a<strong>in</strong>da não conheceu homem”<br />

(XXIX, p.49). No poema, a lua torna-se uma das imagens mais recorrentes<br />

e de signifi cações profundas, manifestando-se como o eixo pelo qual gira o<br />

ciclo vital humano e vegetal, do nascimento e morte. Somente a lua é capaz<br />

de se relacionar com todos os elementos cósmicos presentes, como se pode<br />

notar nos excertos que seguem:<br />

Ai compadre!<br />

Tenho vontade de ouvir uma música mole<br />

que se estire por dentro do sangue;<br />

música com gosto de lua<br />

e do corpo da fi lha da ra<strong>in</strong>ha Luzia (XI, p.17)


264 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

– Vou fi car com os olhos entupidos de escuro<br />

– Adeus marreca-toic<strong>in</strong>ho!<br />

– Adeus garça morena da lagoa!<br />

Apagaram-se as cores Horizontes se afundam<br />

num naufrágio lento<br />

A noite encalhou com um carregamento de estrelas (XVI, p.23)<br />

Começa hoje a maré grande<br />

O mar está se aprontando<br />

para receber as águas vivas<br />

de contrato com a lua (XX, p.28)<br />

Noite pontual<br />

Lua cheia apontou, pororoca roncou (XXI, p.29)<br />

Paisagem encharcada<br />

O luar espesso amansa as águas<br />

Árvores parecem pássaros <strong>in</strong>chados (XXII, p, 30)<br />

O luar amacia o mato sonolento (XXVIII, p.44)<br />

Preciso passar depressa<br />

Antes que a lua se afunde no mato (XXX, p.50)<br />

Por esse universo desenvolve-se a trajetória do herói, ao lado de seu<br />

compadre, em busca da mulher amada. Noite e lua guiam os passos pela<br />

passagem no Putirum, para roubar far<strong>in</strong>ha e tapioca, momento adequado<br />

à metamorfose, pois requer a fi gura humana para entrar na festa: “– Vamos<br />

virar gente pra entrar?/ – Então vamos” (XXV, p.35). Além do mutirão das<br />

mulheres que fazem far<strong>in</strong>ha, o herói participa de uma pajelança:<br />

Pajé faz uma benzedura de destorcer quebranto<br />

E depois fuma e defuma<br />

Fumaça de mucurana<br />

gervão com cipó-titica<br />

e favas de cumaru<br />

[...]


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 265<br />

– Compadre, vamos também experimentar uma fumad<strong>in</strong>ha?<br />

Pajé tonteou Se acocorou Foi-se sum<strong>in</strong>do<br />

assobiando baix<strong>in</strong>ho fi u...fi u...fi u...<br />

Então<br />

contrata o mato pra fazer mágica (XXVII, p.42-3)<br />

A<strong>in</strong>da sob o véu misterioso da noite de lua, é revelada outra face do mito da<br />

Cobra Grande, em que um navio ilum<strong>in</strong>ado surge, povoando a imag<strong>in</strong>ação:<br />

– Escuta, compadre<br />

O que se vê não é navio É a Cobra Grande<br />

– Mas o casco de prata? As velas embojadas de vento?<br />

Aquilo é a Cobra Grande<br />

Quando começa a lua cheia ela parece<br />

Vem buscar moça que a<strong>in</strong>da não conheceu homem<br />

A visagem vai se sum<strong>in</strong>do<br />

pras bandas de Macapá (XXIX, p.49)<br />

Nota-se, a partir das imagens impressas nos versos acima, que a tradição<br />

popular mais uma vez foi ouvida pelo autor. Por isso, Salles (1974,<br />

p.202) considera que é “um poema mais falado pelo povo que escrito por<br />

seus poetas”, ao apontar que o temário amazônico é apresentado em “l<strong>in</strong>guagem<br />

despida da velha retórica tradicional”. O réptil, que já sofrera a<br />

<strong>in</strong>tervenção imag<strong>in</strong>ária popular, ao apropriar-se das moças que a<strong>in</strong>da não<br />

conheceram homem, passa a fi gurar como símbolo da morte em forma de<br />

embarcação:<br />

Lá adiante<br />

Num estirão mal-assombrado<br />

Vai passando uma canoa carregada de esqueletos (XXXI, p.52)<br />

Em meio a esse terreno alagado de imagens misturadas, no qual a unidade<br />

cosmo-biológica é apresentada sem limites, como a própria Amazônia<br />

em formação, movediça e <strong>in</strong>segura, haveria de fi gurar uma heroína pela<br />

qual o protagonista iria se enamorar. Norato emancipa, no poema, a essên-


266 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

cia humana, a partir do cabedal mitológico amazônico, enquanto a fi lha da<br />

ra<strong>in</strong>ha Luzia emerge, segundo o próprio autor, da tradição popular, ouvida<br />

nas viagens pelos igarapés. Assim, diz o poeta, “resolvi o assunto mais<br />

tarde, ao me lembrar da velh<strong>in</strong>ha de Valha-me-Deus (ilha do Tucum, no<br />

litoral maranhense), que me contou uma história obscura da fi lha da Ra<strong>in</strong>ha<br />

Luzia. A sua fi gura errática e fugidia amoldava-se apropriadamente às<br />

tramas do ‘romance’” (Bopp, 1977, p.59-60). O livro que a senhora trazia<br />

em seu samburá, segundo o autor, era de São Cipriano, estava velho e sem<br />

capa. Em suas histórias, contou-lhe também, em meio a termos misturados,<br />

a história da ra<strong>in</strong>ha Luzia.<br />

Dada a complexidade de contribuições reunidas no entorno da fi gura<br />

enigmática, presente nos relatos populares amazônicos, Averbuck (1985,<br />

p.99, nota 1) observa que<br />

aos elementos <strong>in</strong>dígenas Raul Bopp v<strong>in</strong>ha acrescentando o toque da tradição<br />

lusa, elemento fundamental do fabulário brasileiro. A “fi lha da ra<strong>in</strong>ha Luzia”,<br />

personagem criada pela imag<strong>in</strong>ação do poeta, reunia, portanto, retalhos de duas<br />

fontes diferentes: a história da fi lha do rei Sebastião e da ra<strong>in</strong>ha Luzia. Deste<br />

“cruzamento”, surgiria a “fi lha da ra<strong>in</strong>ha Luzia”, por quem Cobra Norato viria<br />

a realizar as maiores façanhas.<br />

De acordo com o que foi apontado, é possível visualizar que os elementos<br />

responsáveis pela arquitetura do poema fi zeram que o mesmo se revestisse<br />

de um signifi cado mais profundo do que pretendia sua forma <strong>in</strong>icial,<br />

quando escrito para crianças. Pelo subterrâneo do texto, e alicerçado no enlevo<br />

fabular, chega-se ao mito. É por essa via que se encontram “o mundo<br />

<strong>in</strong>ocente da criança e o mundo do primitivo”, ambos representantes “de<br />

um universo ‘<strong>in</strong>tacto’ que usufrui e a<strong>in</strong>da permite a expansão de todas as<br />

possibilidades”, conforme sugere Averbuck (1985, p.110), ao considerar o<br />

total envolvimento que o texto possui com a natureza, “como ocorrera com<br />

aqueles que viveram nesta região nos tempos primeiros, e plasmaram o seu<br />

‘espanto’ em forma de relatos míticos” (ibidem, p.111).<br />

Nas vias escavadas que levam ao mito, fi gura latente o <strong>in</strong>dígena, tal<br />

como apontado anteriormente, num projeto maior que a s<strong>in</strong>gularidade do<br />

poeta, dadas as l<strong>in</strong>has que o confi guraram. Enquanto a São Paulo modernista<br />

fl orescia em sua <strong>in</strong>dústria e ac<strong>in</strong>zentava o verde, afugentando o nativo


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 267<br />

aos becos da miséria, o <strong>in</strong>terior a<strong>in</strong>da provocava perplexidade no homem,<br />

que, não menos agressivo que a <strong>in</strong>dústria, sentiu-se atraído pelas dimensões<br />

dilatadas da magia nos longínquos palmos de vida primitiva. Talvez<br />

fosse essa realidade, retirada das camadas ocultas, a imagem viável no momento<br />

em que o país se <strong>in</strong>dustrializava, para justifi car a falta de elementos<br />

geradores de uma identidade própria.<br />

Ir ao fabulário amazônico tem o sabor de tomar “consciência de um Brasil<br />

nativo”, conforme entende Averbuck (1978, p.116), primeiramente pela<br />

expressão visionária do desejo de mudança de uma geração que queria um<br />

país transformado, não apenas como projeto de futuro, mas com feição de<br />

sua terra e de sua gente no presente. Essa transubstanciação somente seria<br />

possível em Cobra Norato, mediante o mergulho na <strong>in</strong>timidade de um<br />

mundo desmanchado, à procura dele mesmo. Lá estariam reunidos, a uma<br />

só vez, mito, lenda e folclore, profusos na “terra das febres”, como símbolos<br />

da autenticidade nacional, deglut<strong>in</strong>do a verborragia clássica importada das<br />

mentes civilizadas.<br />

P<strong>in</strong>çado desse universo lírico e paradoxal, concomitantemente, o <strong>in</strong>dígena<br />

ocupou um espaço de excelência, por revitalizar em seus mitos e lendas a<br />

variedade e as contradições que marcam o panorama nacional. É justo destacar<br />

que Bopp soube reconhecer as forças expressivas que revelavam as faces<br />

nuançadas do nativo. Pela realidade que lhe chegou aos olhos, atestou que<br />

o nosso <strong>in</strong>dígena foi obrigado a crer; ser devoto; acompanhar as liturgias da<br />

Igreja; soletrar as leis da Boa Razão. Perdeu aquela <strong>in</strong>ocência contente de que<br />

nos fala Vieira. Com essa transposição cultural, aquele <strong>in</strong>divíduo de <strong>in</strong>st<strong>in</strong>tos<br />

primários, “impaciente de sujeição” (Vieira), transformou-se num catecúmeno<br />

submisso. Desvalorizou-se pela humildade. (Bopp, 1977, p.41)<br />

Diante do teor dessa afi rmação, é possível entender que tal <strong>in</strong>dígena, visto<br />

pelos olhos da realidade, não serviria a um projeto no qual deveriam estar<br />

aliados aspectos como natureza, magia e pensamento pré-lógico. Aquele<br />

era o nativo em estado maduro, alterado pelos artifícios do colonialismo;<br />

esse, o selvagem em estado primitivo, seria o único túnel possível para alcançar<br />

o estatuto de pureza e <strong>in</strong>ocência, posto em relevo em benefício do<br />

re<strong>in</strong>ventar a nação pela tradição autóctone. Uma das travessias deu-se pela<br />

via dos nheengatus, nos quais Bopp (1977, p.59) observou que “eram de


268 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

uma enternecedora simplicidade. Nos diálogos afetivos, usavam o dim<strong>in</strong>utivo<br />

dos verbos: estarz<strong>in</strong>ho, dormez<strong>in</strong>ho, esperaz<strong>in</strong>ho etc. Certas histórias,<br />

sobre temas meramente humanos, eram tratadas com um desusado tempero<br />

lírico”. Além dos dim<strong>in</strong>utivos, outra matriz <strong>in</strong>dígena é formatada na<br />

rejeição do grupo lh, específi ca da tradição tupi-guarani, como se verifi ca<br />

nos versos: “– Você me espere/ que depois vou le contar uma história” (X,<br />

p.16); “– Pois então até breve, compadre/ fi co le esperando/ atrás das serras<br />

do Sem-fi m” (XXXIII, p. 57).<br />

Somados ao contato com a terra, com o registro fi el da fala coloquial,<br />

sem cair no artifi cialismo das <strong>in</strong>venções, formou-se um “cozido geográfi -<br />

co”, como afi rmou o poeta, conduz<strong>in</strong>do-o a um novo estado de sensibilidade.<br />

É nesse sentido que se percebe a consciência de fazer fl uir o caráter oral<br />

pelo s<strong>in</strong>cretismo étnico, colocando, ao lado do nativo, o elemento africano,<br />

observados nos versos abaixo, em que os vocábulos de ambas as etnias aparecem<br />

lado a lado, naturalmente, em ritual de pajelança:<br />

E depois fuma e defuma<br />

Fumaça de mucurana<br />

gervão com cipó-titica<br />

e favas de cumaru<br />

Em seguida pega uma fi ga de Angola<br />

Risca uma cruz no chão<br />

E varre o feitiço do corpo com penas de ema<br />

O último caruama pede tafi á dança de arremedar<br />

– E quero mais diamba. (XXVII, p. 41, grifo nosso)<br />

Nota-se, assim, que houve uma fusão não apenas de elementos primitivos<br />

expressos no mito, nas lendas e na l<strong>in</strong>guagem que os revitaliza. O cenário<br />

amazônico confi gura-se gradativamente, à medida que o enredo desnuda<br />

determ<strong>in</strong>adas células que o compõem. Tal como os mitos da tradição<br />

<strong>in</strong>dígena, superpostos ao real, que passaram ao não índio e, posteriormente,<br />

ao mestiço, a Amazônia foi aos poucos revelada em camadas, como a decifrar<br />

sua composição: a primeira, das fl orestas gigantes e águas abundantes,<br />

que, de tão complexo sistema, cria no homem uma condição angustiada, e o


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 269<br />

faz construir outra Amazônia, a segunda, descrita por Bastide (1969, p.42)<br />

como “composta de um emaranhado de símbolos oníricos, de uma confusão<br />

de participações místicas que se cruzam como cipós, de fl ores de sonho<br />

que medram como orquídeas”.<br />

Em meio a esse “surrealismo selvagem”, acrescenta o mesmo autor, o<br />

índio nutre “a nostalgia, a obsessão da doçura, da ternura, da carícia” (ibidem,<br />

p.43), traduzido em poesia na l<strong>in</strong>guagem metafórica, alicerçada nas<br />

onomatopeias, aliterações constantes, de s<strong>in</strong>taxe entrecortada. Esses aspectos<br />

brotam facilmente diante do mágico e do <strong>in</strong>gênuo, do erudito e do<br />

popular, a corporifi car uma natureza em pleno movimento, empurrando<br />

horizontes, até chegar a uma terceira, a Amazônia mestiça. Nesta, o pensamento<br />

<strong>in</strong>dígena funde-se aos símbolos do colonizador, monstro não menos<br />

terrível que Jurupari, que o aprisionou, levou-lhe a doença, apoderou-se<br />

de suas terras, expulsou-o de seu alojamento sob a força dos fuzis. Ao <strong>in</strong>dígena<br />

revisitado por Bopp coube-lhe o mistério e a beleza do mito, visto<br />

pelas fendas que o poema permite observá-lo. Em sua <strong>in</strong>timidade, vestido<br />

na “pele elástica”, o protagonista faz eclodir a voz expurgada pela história e<br />

sequestrada pelo código literário, revelando, por meio do mito, a l<strong>in</strong>guagem<br />

que se adere à <strong>in</strong>fância do país, tecida na Amazônia, em comunhão com<br />

deuses e serpentes, num tempo (<strong>in</strong> illo tempore) em que homem e natureza<br />

conheciam apenas a unidade vital.<br />

Cantos-referência<br />

I<br />

Um dia<br />

eu hei de morar nas terras do Sem – Fim<br />

Vou andando cam<strong>in</strong>hando cam<strong>in</strong>hando<br />

Me misturo no ventre do mato mordendo raízes<br />

Depois<br />

faço puçangas de fl or de tajá de lagoa<br />

e mando chamar a Cobra Norato


270 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

– Quero contar-te uma história<br />

Vamos passear naquelas ilhas decotadas<br />

Faz de conta que há luar<br />

A noite chega de mans<strong>in</strong>ho<br />

Estrelas conversam em voz baixa<br />

Br<strong>in</strong>co então de amarrar uma fi ta no pescoço<br />

e estrangulo a Cobra.<br />

Agora sim<br />

me enfi o nessa pele de seda elástica<br />

e saio a correr mundo<br />

vou visitar a ra<strong>in</strong>ha Luzia<br />

quero me casar com sua fi lha<br />

– Então você tem que apagar os olhos primeiro<br />

O sono escorregou nas pálpebras pesadas<br />

Um chão de lama rouba a força dos meus passos (p.3)<br />

XXXI<br />

Esta é a entrada da casa da Boiúna<br />

Lá embaixo há um tremedal<br />

Cururu está de sent<strong>in</strong>ela<br />

Desço pelos fundões da gruta<br />

num escuro de se esconder<br />

O chão oco ressoa<br />

Silêncio não pode sair<br />

Há fossas de bocas <strong>in</strong>chadas<br />

– Por onde será que isto sai?<br />

– sai na goela da panela


Aí o medo já me comicha a barriga<br />

O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 271<br />

Lá adiante<br />

num estirão mal-assombrado<br />

vai passando uma canoa carregada de esqueletos<br />

Neste Buraco do Espia<br />

pode se ver a noiva da Cobra Grande<br />

Compadre! Tremi de susto<br />

Parou a respiração<br />

Sabe quem é a moça que está lá embaixo<br />

... nu<strong>in</strong>ha como uma fl or<br />

– É a fi lha da ra<strong>in</strong>ha Luzia<br />

– Então corra com ela depressa<br />

Não perca tempo, compadre<br />

Cobra Grande se acordou<br />

– Sapo-boi faça barulho<br />

– Ai Quatro ventos me ajudem<br />

Quero forças pra fugir<br />

Cobra Grande vem-que-vem-v<strong>in</strong>do pra me pegar<br />

Já-te-pego Já-te-pego<br />

– Serra do Ronca role abaixo<br />

– Tape o cam<strong>in</strong>ho atrás de mim<br />

Erga três taipas de esp<strong>in</strong>ho<br />

fumaças de ouricuri<br />

– Atire c<strong>in</strong>zas pra trás<br />

pra agarrar distância<br />

Já-te-pego Já-te-pego


272 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Tamaquaré, meu cunhado<br />

Cobra Grande vem-que-vem<br />

Corra imitando meu rasto<br />

Faz de conta que sou eu<br />

Entregue o meu pixé na casa do Pajé-Pato<br />

Torça cam<strong>in</strong>ho depressa<br />

Que a Boiúna vem lá atrás<br />

Como uma trovoada de pedra<br />

Vem amassando mato<br />

Uei!<br />

Passou rasgando cam<strong>in</strong>ho<br />

Arvorez<strong>in</strong>has fi caram de pescoço torcido<br />

As outras rolaram esmagadas de raiz para cima<br />

O horizonte fi cou chato<br />

Vento correu correu<br />

mordendo a ponta do rabo<br />

Pajé-Pato lá adiante ens<strong>in</strong>ou cam<strong>in</strong>ho errado:<br />

– Cobra Norato com uma moça?<br />

Foi pra Belém Foi se casar<br />

Cobra Grande esturrou direito pra Belém<br />

Deu em estremeção<br />

Entrou no cano da Sé<br />

E fi cou com a cabeça enfi ada debaixo dos pés de Nossa Senhora (p.52-4)


3<br />

MITAVAÍ ARANDU:<br />

ÀS VOLTAS COM MACUNAÍMA<br />

(MANUEL CAVALCANTI PROENÇA)<br />

Rio abaixo, rio acima,<br />

Ai, fl or de lima<br />

Meu coração não aguenta<br />

Despedir de quem me estima.<br />

Letra de cururu – voz de Mitavaí – personagem<br />

Antes de apresentar a análise propriamente do texto Manuscrito holandês<br />

ou A peleja do caboclo Mitavaí com o Monstro Macobeba (1990), é<br />

necessário fazer dois apontamentos importantes para o entendimento da<br />

leitura. Primeiramente, um olhar suc<strong>in</strong>to para a fi gura do autor, conhecido<br />

entre a crítica literária muito mais pelo célebre Roteiro de Macunaíma, do<br />

que pela sua produção fi ccional. Manuel Cavalvanti Proença, cuiabano de<br />

nascimento, percorreu os cam<strong>in</strong>hos da carreira militar no Rio de Janeiro,<br />

alcançando a patente de general do Exército. Como biólogo, dedicou-se,<br />

também, ao campo da zoologia, do qual surgiu uma diversidade de trabalhos<br />

publicados.<br />

É no campo da literatura que o autor se destacou com valor expressivo,<br />

pela dedicação à leitura e à opção “em torno de narrativas caracteristicamente<br />

populares: trajeto que vai dos folhetos da literatura de cordel ao romanceiro<br />

(de aventuras ou não) de estrutura romântica, passando pelas novelas<br />

pícaras”, conforme aponta seu fi lho, Ivan Cavalcanti Proença (1990,<br />

p.11), na apresentação da obra em estudo. Essa peculiaridade deu-lhe o<br />

epíteto de “o menos general dos generais”, publicado em crônica de Drummond,<br />

dado o humanista que fora. Mesmo ocupando cargos importantes


274 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

no alto escalão do governo, não dispensava a companhia dos cantadores do<br />

Largo do Machado, com os quais tomava um café na madrugada em sua<br />

casa, resultando em longas conversas sobre os folhetos de cordel.<br />

Da vertente popular do Rio, segundo Ivan Proença (1990, p.12), estendeu<br />

o contato com a população brasileira por meio das viagens que fez como<br />

militar: “conhecer o Brasil quase que de ponta a ponta: processo muito seu,<br />

de sua crença, e, para ele <strong>in</strong>dispensável, de melhor conhecer os costumes de<br />

nossa gente, o folclore sem adornos, em pesquisas que iam do terreno literário<br />

ao sociológico e, muito, no científi co”. Das visões que imprimiu da cultura<br />

brasileira, resultaram suas obras de fi cção, além dos estudos científi cos<br />

na área de formação. Em 1953, publicou seu primeiro livro de fi cção, Uniforme<br />

de gala (contos); Ritmo e poesia (1956); No termo de Cuiabá (1958);<br />

Manuscrito holandês ou A peleja do caboclo Mitavaí com o monstro Macobeba<br />

(1959); O alferes, publicado postumamente. Além da fi cção, <strong>in</strong>teressa à crítica,<br />

Roteiro de Macunaíma, escrito em 1950 e publicado em 1955, a exegese<br />

da rapsódia de Mário de Andrade; Augusto dos Anjos e outros ensaios (1959),<br />

entre os quais as Trilhas no Grande Sertão, acerca da criação verbal de Guimarães<br />

Rosa, dentre outros importantes textos, como os compilados em Estudos<br />

literários – M. Cavalcanti Proença (1982), apresentados por Antonio<br />

Houaiss. De Alencar a Guimarães Rosa, na leitura crítica, ou em sua fi cção,<br />

o fi o condutor sempre foi o dest<strong>in</strong>o do povo, “tudo gente que escreveu de<br />

brasil”, afi rma Ivan Proença, e, por isso, um “parentesco” na construção do<br />

herói Mitavaí com Macunaíma.<br />

O segundo apontamento dirige-se à “metal<strong>in</strong>guagem externa” à obra.<br />

Isso signifi ca compreender o entorno da composição para, posteriormente,<br />

fazer emergir os signifi cados impressos no enredo. Comecemos pelo título<br />

para que a extradiegese seja explicitada: Manuscrito holandês refere-se não<br />

só ao conteúdo, como também ao conjunto de <strong>in</strong>formações que Cavalcanti<br />

Proença oferece, em apêndice, “àquele grupo de pessoas que, para tudo,<br />

exigem uma explicação” (Proença, 1990, p.215). Nele constam, por ordem<br />

de entendimento das <strong>in</strong>formações que orig<strong>in</strong>aram a obra, três cartas, a saber:<br />

Carta de Hans Richter, cidadão holandês, natural de Utrecht, comunicando<br />

ao mundo o motivo pelo qual um manuscrito fora colocado dentro<br />

de uma garrafa e lançado ao mar. Todas as <strong>in</strong>terferências na viagem do Manuscrito,<br />

segundo Viggiano (1982, p.10), são “saídas da mente privilegiada<br />

de Proença”.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 275<br />

A escritura do manuscrito orig<strong>in</strong>a-se da presença de um papagaio que<br />

Hans Richter comprara para lhe fazer companhia: “era um dos papagaios<br />

denom<strong>in</strong>ados Jurueba pela gente <strong>in</strong>culta. Falava uma l<strong>in</strong>guagem para mim<br />

desconhecida que, pouco a pouco, fui compreendendo [...]. Ao fi m de dois<br />

anos, havia eu dom<strong>in</strong>ado completamente o idioma de Jurueba e pus-me a<br />

escrever a história que ele contava” (Proença, 1990, p.220-1). Assim, explica<br />

o holandês, aproveitou-se das repetições do papagaio para confrontar as diversas<br />

versões do relato até o estabelecimento do texto defi nitivo, escrito em<br />

Latim, por acreditar em sua universalidade. Dada a frase <strong>in</strong>icial sempre repetida<br />

pelo papagaio – “Agora conto o caso de Mitavaí Arandu, que um dia<br />

deixou a urna em forma de cágado, onde foi sepultado, nas cavernas de Cunani<br />

e saiu pelo mundo” – o holandês concluiu que se tratava de uma saga de<br />

“algum herói tribal” ou “de uma fórmula tradicional, própria dos narradores<br />

<strong>in</strong>dígenas” (ibidem, p.221). A condição única que impõe ao que se apropriar<br />

das histórias presentes no manuscrito é: “ao publicá-las, aponha-lhes o nome<br />

de Jurueba, pelo muito que lhe devo. A bem dizer, é ele o verdadeiro autor”.<br />

Como se pode notar, diante das <strong>in</strong>formações do autor do manuscrito, há<br />

<strong>in</strong>dícios de que a suposta narrativa do papagaio esteja em consonância com<br />

o fi nal da rapsódia de Mário de Andrade, em que o papagaio conta a saga do<br />

herói Macunaíma ao homem que chega ao Uraricoera e, após o relato, voa<br />

para Lisboa. A<strong>in</strong>da que <strong>in</strong>sólita tal <strong>in</strong>ferência, é uma leitura possível. Em<br />

relação à autoria da carta, Viggiano (1982, p.11) considera que “o segredo<br />

das <strong>in</strong>iciais com que ele enfeitou a ass<strong>in</strong>atura de H. Richter” teria morrido<br />

consigo.<br />

A segunda carta pertence a Bernardo de Claraval, o receptor do manuscrito<br />

e seu tradutor. Nela são conhecidas as razões pelas quais a encam<strong>in</strong>ha<br />

ao redator do Jornal do Brasil, para a seção “Quem será o editor”, acerca do<br />

desejo de publicação de um livro. Assim explica:<br />

trata-se de um manuscrito lat<strong>in</strong>o que deu à praia do litoral paulista, em circunstâncias<br />

algo romanescas, dentro de uma botija de barro, provavelmente de<br />

genebra. Um tio meu obteve de pescadores da região o documento e, também,<br />

apensa ao mesmo, uma carta escrita por Hans Richter, cidadão holandês de<br />

Utrecht, segundo afi rma. Na carta, o autor nos dá conta de como e por que<br />

redigiu o manuscrito, oferecendo-o àquele a cujas mãos venha o oceano, encarnando<br />

o dest<strong>in</strong>o, confi á-lo. (Proença, 1990, p.217)


276 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Ante o “trabalho não pequeno de tradução”, considera-se autor do texto<br />

e passa a esclarecer o conteúdo, <strong>in</strong>iciando pelo título, Manuscrito holandês,<br />

uma vez que o holandês se esqueceu de colocá-lo. Em relação ao assunto<br />

e à natureza, esclarece o autor-tradutor: “trata ele das sagas de um herói<br />

índio – Mitavaí Arandu (em tupi, aproximadamente, Men<strong>in</strong>o-Feio, Sábio),<br />

[...] narradas por um papagaio jurueba que o Sr. H. Richter teve consigo<br />

anos e anos, em uma ilha deserta” (ibidem, p.218). Acrescenta, a<strong>in</strong>da, que<br />

Mitavaí <strong>in</strong>icia sua travessia como personagem na “região sertaneja” para,<br />

posteriormente, viver nas cidades. Uma saga pontuada pela “<strong>in</strong>tromissão<br />

do sobrenatural”, “casos de s<strong>in</strong>cretismo e aculturação” que desnudariam<br />

para o “quase autor” um universo de “culturas de níveis diversos” (ibidem,<br />

p.219).<br />

A terceira e última carta, colocada no apêndice da obra, refere-se à do<br />

Tio Godofredo (tio de Bernardo Claraval). Nela, <strong>in</strong>forma ao sobr<strong>in</strong>ho a<br />

história da chegada do manuscrito às praias paulistas, de acordo com as <strong>in</strong>formações<br />

que obteve “de segunda mão, sem ter visto acontecer” (ibidem,<br />

p.223). Assim explica:<br />

quem achou mesmo foi o fi nado Chico Solha, fanho de um ar de estupor que<br />

deu nele em moc<strong>in</strong>ho e deixou de boca torta. Apanhou a botija perto da praia e,<br />

quando viu que, em vez de cachaça, o que estava dentro era um rolo de papel,<br />

teve uma bruta raiva. Mesmo assim, levou tudo para casa e logo vendeu por<br />

uma tutiméia a um gr<strong>in</strong>go, que andava por lá caçando m<strong>in</strong>hoca para museu.<br />

(ibidem, p.224)<br />

Tal gr<strong>in</strong>go, segundo o Tio Godofredo, fotografou o manuscrito e o guardou<br />

em sua casa. Enquanto viajava, ocorreu um <strong>in</strong>cêndio e o documento foi<br />

salvo por Tarcísio, que o trocou “por um martelo de cachaça”. Anaurel<strong>in</strong>o,<br />

seu novo proprietário, acreditou tratar-se de um “mapa de alguma gruta<br />

com d<strong>in</strong>heiro”, dados alguns papéis com rabiscos que o acompanhavam.<br />

Desiludido com o conteúdo revelado, deixou-o às mãos de Godofredo de<br />

Claraval, que o entregou “ao sobr<strong>in</strong>ho estudioso e <strong>in</strong>teligente” (ibidem,<br />

p.225) e seu tradutor.<br />

As três cartas dispostas no apêndice trazem ao leitor <strong>in</strong>formações genéticas<br />

da constituição da obra e ass<strong>in</strong>alam, em l<strong>in</strong>has gerais, o assunto de<br />

que trata o enredo. Mas não acabam aí. Há, além dessas, uma carta exposta


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 277<br />

na abertura do livro, escrita por Bernardo Claraval a Cavalcanti Proença,<br />

dizendo da surpresa que teve ao ver seu nome impresso na revista que recebera.<br />

Em pr<strong>in</strong>cípio, pela função própria da narrativa epistolar, percebe-se<br />

uma afetividade <strong>in</strong>tensa entre o emissor e o dest<strong>in</strong>atário, ao relatar seu estado<br />

de saúde entre dietas e medicamentos de sua vida “monótona e gal<strong>in</strong>ácea”<br />

(ibidem, p.20). Depois de descrever seu estado “de antítese da conceituação<br />

platônica”, volta ao assunto do manuscrito: “descanse de todo,<br />

pois coloco nossa amizade tão acima de tudo, que lhe quero doar, como<br />

doo, todos os direitos, se acaso os tenho, para editorar o a que ousei chamar<br />

Manuscrito holandês” (ibidem, p.20-1).<br />

Como se nota, as evidências apontam para uma possível construção fi ccional<br />

das cartas, como forma de <strong>in</strong>serir o leitor no contexto, no que lhe<br />

é histórico em sua gênese. Considerado o percurso de leitura feito aqui,<br />

toma-se esse aspecto como um artifício de simulação, porém, importante<br />

para o embate entre o fazer literário e o mundo representado por ele. Diante<br />

do simulacro criado, Viggiano (1982, p.11) conclui que “a trama é tão bem<br />

urdida que, não fosse a <strong>in</strong>formação <strong>in</strong>equívoca de que tudo foi <strong>in</strong>ventado,<br />

voltaríamos a pensar na existência real de tais pessoas”.<br />

Pertence ao aspecto extradiegético, a<strong>in</strong>da, no <strong>in</strong>ício do texto, uma advertência<br />

do tradutor, na qual resgata o histórico do manuscrito que lhe<br />

chegou às mãos pelo seu tio: “dele ouvi que o obtivera de gente do mar,<br />

habitando um lugarejo de nome Japuetê” (Proença, 1990, p.25). Adverte<br />

que “as notas seguidas das <strong>in</strong>iciais H.R. são do autor (Hans Richter), que<br />

se revela homem de muita ciência e extremamente escrupuloso no transmitir<br />

suas observações e conhecimentos; as do tradutor vão ass<strong>in</strong>aladas por<br />

um B. C.” (ibidem, p.25). De fato, são observadas <strong>in</strong>úmeras notas ao pé<br />

das pág<strong>in</strong>as, esclarecedoras e oportunas ao leitor, nas quais aparece, também,<br />

Cavalcanti Proença (M.C. P.). Cabe lembrar, no entanto, que todo<br />

o aparato extradiegético é <strong>in</strong>venção, como afi rmado antes, uma forma de<br />

iludir o leitor, como se o gênero epistolar presente outorgasse ao enredo um<br />

caráter próximo ao fato real. Não deixa de ser um fi o de comparação com o<br />

farto material epistolar produzido em torno de Macunaíma, e que Proença<br />

o conheceu com propriedade, com as devidas diferenças, pois as cartas de<br />

Mário eram verdadeiras.<br />

O que foi ass<strong>in</strong>alado até aqui torna-se necessário para visualizar a arquitetura<br />

que dá sustentação à obra de Proença até então pouco difundida entre


278 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

a crítica. Faz-se mister, agora, adentrar ao mundo dos liames entre local e<br />

universal, do bem e do mal, do poder e da submissão, dentre outros fatores<br />

essenciais na fi guração do <strong>in</strong>dígena, que este trabalho se propõe verifi car.<br />

Inicialmente, ocorre certo estranhamento diante da dupla composição<br />

do título: Manuscrito holandês ou A peleja do caboclo Mitavaí com o Monstro<br />

Macobeba. A <strong>in</strong>quietação deriva do fato de que o primeiro remonta a uma<br />

esfera de cunho histórico orig<strong>in</strong>ada no termo “manuscrito” e que envolve<br />

uma cultura não-brasileira, enquanto o segundo estampa matrizes da cultura<br />

brasileira: o índio e a fi gura popular e lendária, o monstro Macobeba.<br />

Esse jogo <strong>in</strong>tr<strong>in</strong>cado revela um traço visível da herança marioandradiana<br />

em seu mais importante exegeta. Se em Mário Proença desfi brou o folclore,<br />

lendas e mitos, revelando suas origens e a reconstrução no texto de Macunaíma,<br />

na fi cção buscou a raiz popular do cordel, das lendas, da medic<strong>in</strong>a<br />

alternativa e do folclore regional para dar vazão ao que se pode chamar de<br />

“prolongamento da saga de Macunaíma”, impressa na “peleja”, ou luta,<br />

entre Mitavaí, personagem central, e o monstro Macobeba, 1 um de seus<br />

opositores. Nesse aspecto, Viggiano (1982, p.103) entende que “o elemento<br />

de dispersão está no título, e o elemento de ligação com o real da história é<br />

o subtítulo. Mas, Proença arma toda uma história antes da história, para<br />

revelar como se deram as peripécias do manuscrito, que contém – traduzido<br />

– a verdadeira saga do índio Mitavaí”.<br />

A <strong>in</strong>tertextualidade entre o Manuscrito holandês e a produção de Mário<br />

de Andrade vai além da narrativa de Macunaíma e encontra-se com a fi gura<br />

do monstro. A crônica Macobêba, 2 publicada em 3 de maio de 1929, no Diário<br />

nacional, e <strong>in</strong>cluída em 1943 na coletânea Os fi lhos da Cand<strong>in</strong>ha, capta<br />

a essência da fi gura lendária vista “no sul litorâneo de Pernambuco”, considerada<br />

“uma assombração muito simpática”, característica que contradiz<br />

outros textos em que o monstro aparece como algo assustador. Segundo<br />

1 Diz a tradição que, em Ol<strong>in</strong>da, nos anos 40, o medo do Macobeba tomava conta da população.<br />

Grotescamente era descrito da segu<strong>in</strong>te forma: “capa preta, enorme cartola enfi ada na<br />

cabeça até as orelhas. Enormes, reluzentes e afi adas presas se cruzavam fora da boca. Barba<br />

rala, orelhas de abano, fedendo a enxofre. Unhas enroscadas e mãos cabeludas. De poucas<br />

palavras, voz grossa e rouca”. Aparecia em noites escuras, atacando mulheres, preferencialmente,<br />

com exceção das gordas e feias (cf. Ataíde, acesso on-l<strong>in</strong>e).<br />

2 Na crônica, Mário de Andrade conserva o acento orig<strong>in</strong>al na palavra Macobêba, para caracterização<br />

mais fi el.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 279<br />

a crônica (1943), o monstro é “bicho-homem num tamanho arranha-céu,<br />

gostando muito de beber água do mar e queimar terras. Onde passa fi ca<br />

tudo esturricado, repet<strong>in</strong>do a trágica obsessão nordest<strong>in</strong>a pelas secas e,<br />

por causa da mesma obsessão, o Macobêba sedento, bebe até água do mar.<br />

[...] Faz o que no geral fazem todas as assombrações desse gênero: assusta,<br />

mata, prejudica” (ibidem, p.97).<br />

A presença da fi gura lendária no enredo do Manuscrito holandês conjuga<br />

o humor crítico tecido na l<strong>in</strong>guagem popular e em sua capacidade fabulatória,<br />

alcançando o que Ênio Silveira chamou de “surrealismo caboclo”, na<br />

apresentação da obra. Certamente, o monstro não é o único oponente à personagem<br />

pr<strong>in</strong>cipal, Mitavaí, como se verá no desfi bramento das biografi as<br />

que se entrelaçam no enredo. Possui um poder alegórico que “representa, na<br />

obra, os <strong>in</strong>teresses do capital”, segundo Magalhães (2001, p.190). Na lenda,<br />

o monstro “assusta, mata e prejudica”; no enredo mitopoético de Proença,<br />

juntamente com seu irmão, Pitanguá, repete as ações com um signifi cado<br />

que ultrapassa a esfera da tradição oral e alcança a ideologia capitalista.<br />

Na fi cção de Proença, e sob a capa alegórica de monstro, Macobeba é<br />

presidente de uma empresa nas glebas de Popenó-Upá chamada VOFA-<br />

VOFE (Vou Fazer Você Feliz, Colonizadora S. A.). As organizações tendem<br />

a “mostrar a sua vocação nacionalista de fundar cidades” (ibidem,<br />

p.72), o que desencadeia uma corrida desenfreada de Maracadéguas, seu<br />

representante, em busca dos possíveis clientes para os loteamentos. Está<br />

impresso, na fi gura do monstro, um explorador das terras do sertão, vendidas<br />

a preços baixos e a longo prazo, reservando o direito à empresa de<br />

explorar a terra, caso haja riquezas no subsolo, como se pode ver no excerto:<br />

“acontece que o subsolo é propriedade da Vofavofe, por isso a n<strong>in</strong>guém é<br />

permitido explorá-lo. Por exemplo: o senhor pode explorar a agricultura,<br />

mas se houver, digamos, uma m<strong>in</strong>a de cobre, o senhor está em condições<br />

de explorar? O senhor dispõe de máqu<strong>in</strong>as estrangeiras modernas? Pois a<br />

Vofavofe tem. [...] explora e a<strong>in</strong>da lhe paga uma regalia para o senhor não se<br />

matar” (ibidem, p.75).<br />

O monstro Macobeba é resgatado da esfera das crenças populares, a<strong>in</strong>da<br />

que não seja esse o ponto fulcral da narrativa. Há uma transposição de signifi<br />

cados no decorrer de sua l<strong>in</strong>ha biográfi ca, que o entrelaça ora aos valores<br />

sociais e econômicos da região do sertão, como explorador, ora ligado mais<br />

fortemente às l<strong>in</strong>has oriundas da oralidade, em que sua presença é mar-


280 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

cada pela constante do assombro, pelo poder de sugar as águas e provocar<br />

mortes. Proença, um cultivador do cordel, <strong>in</strong>sere, na narrativa, trechos que<br />

pertencem à tradição oral, na qual o monstro também é cantado:<br />

Venha cá gente bonita<br />

Me prove esse caxiri,<br />

Tem mel de abelha do mato,<br />

Mandaçaia e manduri,<br />

Eu sou moça, l<strong>in</strong>da, virgem,<br />

Nesta ribeira nasci.<br />

Mas o monstro Macobeba<br />

Chegou das águas do além,<br />

Matando famílias, crianças também,<br />

Cortou meu cabelo fi no.<br />

Nos campos de Nonoai<br />

Enterrou meu corpo. Agora<br />

Chuva ciranda e não cai.<br />

Meu cabelo canta triste:<br />

– Jard<strong>in</strong>eiro de meu pai. (ibidem, p.114)<br />

Assim, o monstro assume a feição que Mário de Andrade lhe deu em sua<br />

crônica. Tal qual o autor de Macunaíma, Proença o apresenta em sua versão<br />

mais próxima à tradição: “Macobeba era um fl agelo, gigante antropófago,<br />

bebedor de águas do mar. Com uma vassoura enorme que não servia para<br />

nada” (ibidem, p.161). Na crônica lê-se:<br />

Só teve até agora uma deliciosa prova de espírito: carrega sempre uma vassoura<br />

de fi os duros maravilhosamente <strong>in</strong>útil. Não serve-se dela pra nada. [...]<br />

Muito provavelmente essa vassoura é uma rem<strong>in</strong>iscência daquelas bruxas que<br />

montavam cabos da tal, quando partiam pras cavalhadas do Sabá. Muito provavelmente.<br />

Porém a grandeza do Macobêba está em trazer uma vassoura <strong>in</strong>teira<br />

e não se servir dela pra nada. Nisso reside a simpatia do grande monstro. (Andrade,<br />

1943, p.97)<br />

Se a crônica apresenta certa simpatia ao monstro, não ocorre no Manuscrito<br />

holandês, no qual se encontra, sob diferentes aspectos, a face ame-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 281<br />

açadora. Daí explica-se a palavra “peleja” <strong>in</strong>serida no título, pela qual se<br />

<strong>in</strong>staura a luta do índio Mitavaí, não apenas com a fi gura do monstro, mas<br />

também com as ações que o mesmo realiza no meio ambíguo em que transita:<br />

o monstro do capitalismo desenfreado, da destruição, da exploração<br />

do mais fraco, dentre outros atributos: “apareceu em muitas praias e não<br />

atacou a cristão, porém a pajés e índios perseguia demais. [...] Do sertão<br />

chegou às praias do mar, matando por gosto e sem fome” (Proença, 1990,<br />

p.162). Além disso, dada a característica do ser lendário, encontra-se implícita<br />

a luta do bem e do mal, vista nas diversas microfábulas al<strong>in</strong>havadas ao<br />

longo do enredo, que sustentam o embate de forças travestidas de homens e<br />

seres sobrenaturais ligadas a ele.<br />

É por esse viés que se dá o encontro entre os ocupantes dos dois lados da<br />

história e se compreende parte da função de Mitavaí, no que diz respeito à<br />

sua construção como personagem dentro da obra. Ele é o responsável por<br />

colocar fi m às façanhas do opositor que, a certa altura do enredo, possui defensores.<br />

Tal fato deriva da crença de que “as coroas de terra que Macobeba<br />

punha de fora serviam de ilha para gente morar, dim<strong>in</strong>u<strong>in</strong>do a crise de habitações”<br />

(ibidem, p.162). Assim, o povo, que deveria julgar a necessidade<br />

de extermínio do monstro, não sabe de que lado fi car.<br />

Para se chegar ao ápice da “peleja” entre as personagens, é preciso, antes<br />

de tudo, fazer outro percurso, pelo qual se engendra o signifi cado da<br />

presença do monstro como antagonista frente a Mitavaí. Faz-se mister um<br />

desfi bramento da l<strong>in</strong>ha que prende o ritual de passagem do <strong>in</strong>dígena construído<br />

nos moldes de Macunaíma. Assim como anuncia Ivan Proença, na<br />

apresentação da obra, “atrás do morro tem morro”, atrás de Macobeba, há<br />

sempre outra história. Desçamos do outro lado.<br />

Mitavaí Arandu 3 não nasceu no silêncio do Uraricoera, e sim em meio a<br />

um “canto leve, lev<strong>in</strong>ho e doce”, que “descia, como óleo esparramado sobre<br />

as águas” (ibidem, p.27). Sem fi liação tribal nomeada, a pr<strong>in</strong>cípio, é encontrado<br />

por Pirajuru, um pescador ribeir<strong>in</strong>ho do Rio Irovi, casado com Tarová:<br />

3 Transcreve-se, aqui, na íntegra, a nota de rodapé número três, em que o autor atribui a Hans<br />

Richter e Bernardo Claraval, quanto à explicação do signifi cado do nome: “Mitavaí Arandu<br />

– O nome contém em si dois gêneros de qualidade, segundo o estagirita no seu Tratado das<br />

categorias. Enquanto Mitavaí é uma qualidade de estado, Arandu é qualidade de disposição,<br />

donde, sempre Mitavaí, e Arandu, apenas, consoante a ocasião (H. R.). Mitavaí – o men<strong>in</strong>o<br />

feio; Arandu, literalmente, sábio, sabedor (B. C.)” (p.30).


282 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

– Que faz aí, men<strong>in</strong>o?<br />

– Br<strong>in</strong>cando.<br />

– Br<strong>in</strong>cando? Não vê que esse camalote vai descendo de águas abaixo? Onde<br />

é que você vai parar?<br />

– Pirajuru me tira agora e põe na canoa. Uai!<br />

– Quem te ens<strong>in</strong>ou meu nome?<br />

– Um dourado me contou... (ibidem, p.29)<br />

Nota-se, de imediato, a esperteza no trato com os peixes, dando-lhe poder<br />

de contar histórias, tal qual seu ancestral Macunaíma, além da aproximação<br />

no ato de “passear” deste e o de “br<strong>in</strong>car” daquele, episódio que<br />

recria, na biografi a do <strong>in</strong>dioz<strong>in</strong>ho do cerrado, os aspectos mais marcantes de<br />

sua matriz macunaímica.<br />

Seu aparecimento no enredo não obedece aos rigores do tempo e da etnia,<br />

tal como se nota na abertura do texto de Mário de Andrade. Sabe-se, apenas,<br />

que está nas barrancas do rio Irovi, e não é apresentada nenhuma tribo<br />

da qual poderia ser <strong>in</strong>tegrante. Surge, portanto, sem identidade, apenas<br />

como um <strong>in</strong>dioz<strong>in</strong>ho, e passa a ser chamado pelo casal por diferentes denom<strong>in</strong>ações,<br />

que mostram a pluralidade de falares, algo que o autor conhecia<br />

muito bem, pelo fato de exumar o texto de Andrade. Sendo assim, Mitavaí<br />

vai sendo nomeado a partir de sua herança <strong>in</strong>dígena como “curumim”, mas<br />

é descrito, também, pelo aspecto físico: “piá de pern<strong>in</strong>has tortas, g<strong>in</strong>gando<br />

na rampa da praia” (ibidem, p.29), além de “men<strong>in</strong>o”, “criança” e “guri”,<br />

que s<strong>in</strong>alizam a toponímia brasileira.<br />

A<strong>in</strong>da que o nomeassem assim, dada a fragilidade pueril, há certo receio<br />

de Pirajuru em torno de sua fi gura e de seu comportamento: “men<strong>in</strong>o treloso,<br />

capet<strong>in</strong>ha, desgranido” (ibidem, p.29), “pode ser dan<strong>in</strong>ho” (ibidem,<br />

p.30). Por outro lado, encontra em Tarová o aspecto maternal: “Não há de ser<br />

ruim, com uma car<strong>in</strong>ha tão simpática” (ibidem, p.30), que o afasta da condição<br />

de “car<strong>in</strong>ha enjoativa de piá” que pertence aos atributos de Macunaíma,<br />

mesmo em fase adulta. Há, porém, um traço que o liga ao ancestral: é feio.<br />

Segundo o narrador, Tarová “olhou para o canto e lá estava o piá encorujad<strong>in</strong>ho,<br />

os olhos grandes, ver um bacurau” (ibidem, p.30). Desse olhar emerge<br />

seu nome, que carrega consigo a semelhança a um bacurau, ou seja, um <strong>in</strong>divíduo<br />

feio. A feiúra está implícita, a<strong>in</strong>da, na etimologia de Mitavaí, que, segundo<br />

a nota de Bernardo Claraval, signifi ca “o men<strong>in</strong>o feio” (ibidem, p.30).


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 283<br />

Além desse fi o que o conduz à condição de herdeiro de Macunaíma, há<br />

outros aspectos anunciados que revelam tal fi liação tapanhumas: “Pirajuru,<br />

desde cedo, notou que o <strong>in</strong>dioz<strong>in</strong>ho era esquisito. Os bichos gostavam dele”<br />

(ibidem, p.30). Assim, “o velho entusiasmou com a lad<strong>in</strong>eza do curumim” e<br />

passa a desconfi ar que “Mitavaí t<strong>in</strong>ha pauta com o Cão” (ibidem, p.31). Habilidoso<br />

com a pesca, ele provoca temor em seu pai adotivo, pois “os jacarés<br />

respeitavam aquele ente mirim que passava no meio deles sem susto. Nunca<br />

perdeu um dourado na l<strong>in</strong>ha” (idem, ibidem). Nota-se, nessa breve certidão<br />

de nascimento, que as características do pequeno <strong>in</strong>dígena, até aqui,<br />

apontam para uma descendência do que Mário construiu no entorno de sua<br />

personagem ambígua e pluridentitária. Porém, devem ser resguardadas algumas<br />

dessemelhanças que vão desencadear uma biografi a mais acidentada<br />

do que a do Imperador do Mato Virgem, convergida, agora, muito mais<br />

para o aspecto negativo da aculturação por que passa o herói do cerrado, que<br />

adentra sua história no universo do outro, numa <strong>in</strong>stância tangencial à cultura<br />

<strong>in</strong>dígena representada no caboclo ribeir<strong>in</strong>ho, tão ao gosto de Proença.<br />

É a partir da <strong>in</strong>serção nesse mundo simbólico, da exploração em todos<br />

os sentidos, que Mitavaí desenvolve seu caráter e sua trajetória. Ante o<br />

hábito da pesca fácil com d<strong>in</strong>amite, por exemplo, v<strong>in</strong>ga-se dos pescadores<br />

astutamente, fabricando uma bomba com banana comestível, deixando-os<br />

a nadar com esforço e extremamente irritados. O episódio desencadeia os<br />

primeiros opositores ao herói, que se vê às voltas com as juras de v<strong>in</strong>gança<br />

de Olívio do Poço-Verde. As ameaças feitas a ele colocam Tarová em estado<br />

de espera e atenção, que decifra a mensagem pelo chão, tal qual fazem os<br />

<strong>in</strong>dígenas, para detectar o movimento dos perseguidores. Diante da tensão<br />

estabelecida entre a angústia da mãe e o perigo por que passa o fi lho, ocorre<br />

o afastamento do herói. Em sua biografi a, que compreende o percurso de<br />

travessia do sertão para o mar, ocorre a <strong>in</strong>serção de personagens do fabulário<br />

nacional: “conheceu a vaca Barrosa, o boi Surubim, a vaca do Burel, o<br />

boi Espácio, 4 de chifres tão abertos que Mitavaí sentiu pena de não ter uma<br />

rede para armar entre eles” (ibidem, p.39).<br />

4 As referências dizem respeito, resguardadas as características regionais, ao folguedo do<br />

Bumba-meu-boi ou Boi-bumbá, considerado por Câmara Cascudo (2001) como o elemento<br />

mais característico e mais antigo da tradição poética sertaneja, que compreendem as narrativas<br />

sobre o ciclo do gado – os romances do boi. Na tradição oral desses romances, o herói é<br />

apenas o boi. Os demais personagens, vaqueiro, cavalo, fazendeiro, são secundários.


284 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Na travessia por entre fazendas, Laurianos e Coronéis Telésforos, aprende<br />

a domar cavalos e a lidar com o gado. Deriva de sua função o encontro<br />

de Mitavaí com o Boi Espácio, pertencente ao Coronel Telésforo, em que<br />

se visualiza a fusão do homem e a natureza, bem como o aspecto lendário<br />

implícito. O Boi Espácio assume, no episódio, uma dupla representação: a<br />

de boi, animal como os demais da região, e o boi como fi gura mítica e dotada<br />

de poderes sobrenaturais, como expressa o excerto, na previsão que faz da<br />

personagem:<br />

– Piá, teu dest<strong>in</strong>o está se decid<strong>in</strong>do. Você nasceu de traseiro, de costas, viradas<br />

para o sertão. O mar chamando de longe. Estou aqui por amor de teu pai<br />

que veio ao mundo nas brenhas, virou, mexeu, conheceu terra estranha e foi dar<br />

um couro nas varas, de novo, numa lagoa do mais <strong>in</strong>terno sertão adentro. [...]<br />

A notícia recebi do sertão, de boi a boi. Veio passando nas malhadas de pouso,<br />

nos lambedouros salitrentos, conversa em que o dia vai sum<strong>in</strong>do. Mas não se<br />

aperreie, que seu dest<strong>in</strong>o n<strong>in</strong>guém torce. (ibidem, p.70)<br />

O trecho resgata algumas particularidades da origem do índio, nascido<br />

no sertão, de frente para o mar, o que explica a travessia de Mitavaí em direção<br />

ao litoral. Além disso, o boi fala em nome do pai do índio, que “veio ao<br />

mundo nas brenhas”, ou seja, na mata fechada, alusão ao “fi lho da noite”,<br />

Macunaíma, que “conheceu terra estranha” e acabou “numa lagoa do mais<br />

<strong>in</strong>terno sertão adentro”. Tal qual na tradição oral, o conhecimento da história<br />

do índio dá-se pela conversa de bois, “passando na malhadas de pouso”,<br />

espalhadas do sertão ao litoral, a exemplo do folguedo do Boi, recriado em<br />

diferentes pontos, mas preservando sua matriz. No decorrer da narrativa,<br />

são observadas diversas ressurreições do Boi Espácio e do cavalo Cabiúna,<br />

tal qual ocorre nas lendas orig<strong>in</strong>ais e que serão mostradas com maior acuidade<br />

no momento do embate entre o herói e o monstro.<br />

É a<strong>in</strong>da o boi, “com muita gosma na voz, revelha de saliva” (ibidem,<br />

p.69), que anuncia ao herói seu dest<strong>in</strong>o e a entidade que o protegerá em seu<br />

percurso: “Não chore, men<strong>in</strong>o, você tem de remir seu povo. Mitavaí, seu<br />

dest<strong>in</strong>o é grande e Tetaci é sua padroeira” (ibidem, p.70). À profecia do boi<br />

são <strong>in</strong>tegrados dois aspectos importantes no desenvolvimento do enredo e<br />

que provêm do universo popular. O primeiro trata da <strong>in</strong>serção de Tetaci,<br />

sua guardiã: “Tetaci não era mulher, era mãe da paciência, de olhos de ne-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 285<br />

bl<strong>in</strong>a, corpo de garça” (ibidem, p.159), Nota-se, em Tetaci, uma referência<br />

ao texto de Mário em que Ci, a mãe do Mato, “pertence à condição das mulheres<br />

orig<strong>in</strong>árias, do começo do mundo, como Sofará e Iriqui” (Proença,<br />

1978, p.136). Assim como na rapsódia, Tetaci recebe um epíteto, “mãe da<br />

paciência”, que na tradição popular é traduzida como “mãe de todas as garças”.<br />

Sua travessia junto ao herói dá-se na mesma condição de Macunaíma<br />

e Ci. Aqui, porém, sabe-se do envolvimento de Mitavaí com a fi gura fem<strong>in</strong><strong>in</strong>a,<br />

somente quando o narrador <strong>in</strong>sere uma notícia publicada no jornal<br />

“O Arauto”, com o título: “Tetaci, Mulher de Fibra”, na qual se encontra<br />

o relato de morte de uma cabocla, desencadeando no herói o sentimento de<br />

v<strong>in</strong>gança. No excerto, além da apresentação, notam-se algumas características<br />

que aproximam as duas personagens, Ci e Tetaci:<br />

Na região do rio Irovi, conhecida como o baixo da Moça Verde, desenrolouse<br />

um drama que teve, como testemunhas, apenas as águas <strong>in</strong>diferentes do rio e<br />

as palmeiras que são abundantíssimas naquelas paragens. [..] No dia dezenove<br />

deste mês de abril, o monstro Macobeba visitou aquele humilde tejupar. [...]<br />

encontrou a dona só. O marido andava de viagem e o Monstro reduziu a casa<br />

em pó. [...] Então aquela jovem talvez fora dos seus sentidos ou desvairada pelo<br />

medo, teve um gesto de matrona romana e respondeu entoando uns versos de<br />

conhecida melodia popular naquelas bandas:<br />

Vá puxando sua espada,<br />

Pode vir me degolar,<br />

Que meu corpo pode ir,<br />

M’ea cabeça há de fi car.<br />

Para contar pro meu marido<br />

Quando o marido chegar.<br />

Este lamento, que comoverá até as pedras, se o ouvissem, só fez exacerbar<br />

a ira do Monstro, que a despedaçou no mesmo <strong>in</strong>stante. [...] O corpo despedaçado<br />

de Tetaci se recompôs. Da lua desceu um fi o longo como um cipó e Tetaci<br />

subiu por ele ao céu. O povo agora a vê c<strong>in</strong>tilando longe das misérias do mundo<br />

e reza – povo simples o nosso – para que ela proteja com sua luz esverdeada, que<br />

assim fi cou, em memória do nome da Moça Verde dado àquele recanto pitoresco<br />

do Irovi. (p.164-5)


286 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Segundo Proença, no Roteiro de Macunaíma (1978, p.141), “Ci vai para o<br />

céu, sub<strong>in</strong>do por um fi o ou cipó, como na lenda da Tapera da Lua, de Afonso<br />

Ar<strong>in</strong>os, na da cabeça Decepada dos Cax<strong>in</strong>auás (Capistrano de Abreu),<br />

como irá mais tarde o próprio Macunaíma”. Diante disso, são reconstruídas,<br />

em Tetaci, as ações do decepamento da cabeça e a subida ao céu pelo<br />

cipó, tornando-se estrela de cor verde. Além disso, possui “aroma de muito<br />

amor” (ibidem, p.169), tal qual a personagem de Andrade se aromava para<br />

dar tonteiras ao herói.<br />

O segundo aspecto a ser considerado nesse universo fabulário é o que<br />

torna Tetaci um elemento v<strong>in</strong>cular dentro da trajetória de Mitavaí, dadas<br />

as <strong>in</strong>formações que revela em sonho, nas quais se refere ao local onde se<br />

encontra o monstro Macobeba. Dentre as <strong>in</strong>serções no sonho, destaca-se a<br />

que sugere a própria fi liação do herói e o ritual de preparação para o encontro<br />

com o monstro:<br />

Piá querido, guarde bem, para não falar, o que vou dizer agora. Vá na praia<br />

das areias pretas, onde gente se enterra para curar reumatismo. Não tenha medo<br />

que reumatismo não pega. Encha dois samburás de areia preta e viaje para onde<br />

o mar faz recôncavo e a terra sangra. Tome o sangue da terra, gordo e negro,<br />

amasse com areia dos samburás e faça três pedestais. Arrume um perto do outro<br />

e coloque sobre eles a estátua dos heróis Guairacá, São sepê e seu pai, que matou<br />

o gigante dono da muiraquitã. Faça uma pajelança e não se tema de nada! Você<br />

vai enfrentar o monstro Macobeba e precisa. Até breve! (ibidem, p.160)<br />

Afora o prenúncio da saga, há uma série de apontamentos no decorrer<br />

do enredo, que vão oferecendo pistas ao leitor a respeito do local em que se<br />

dará o embate: “– Sou teu anjo-da-guarda, você foi dormir com sede. Tenho<br />

medo de me afogar no rio e te deixar soz<strong>in</strong>ho. Monte antes do sol nascer e<br />

cam<strong>in</strong>he sete léguas, que Macobeba está ressonando no Poço do Azeite.<br />

Embaixo de um cambará começando a fl orir” (ibidem, p.167). Nota-se,<br />

no excerto, que Tetaci assume a posição de norteadora das ações do herói,<br />

dando-lhe a visão que somente as div<strong>in</strong>dades podem ter.<br />

A partir da revelação acima, o herói assume sua condição de redentor do<br />

povo na recondução do bem-estar, realizando a busca e a morte do monstro.<br />

Para a concretização dos seus feitos, é necessário, antes de tudo, vencer os<br />

obstáculos que antecedem o confronto com monstro Macobeba, numa se-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 287<br />

quência de sanções positivas e negativas, de acordo com os moldes proppianos<br />

dados aos contos maravilhosos. O primeiro a ser derrotado é o gigante<br />

Pitanguá, irmão de Macobeba, “que não enxerga de dia e come os fi lhos dos<br />

outros para não sofrerem neste mundo” (ibidem, p.169). Comovido com a<br />

disponibilidade do herói <strong>in</strong>dígena, que se oferece para ajudá-lo na defesa do<br />

monstro, o gigante se alia ao seu desconhecido e se enreda em suas astutas<br />

engenharias até a morte. Ao testar a valentia de Pitanguá, Mitavaí prepara<br />

“um ferrão de arraia no tronco de uma gameleira, bem na altura do gigante”.<br />

Assim, provocado em razão de sua força, “Pitanguá afastou e veio direto<br />

com a cabeça no ferrão. Pegou, lá nele, bem no cocoruto, que o gigante<br />

desmaiou e caiu. Não havia nem mulher na redondeza para fazer a simpatia<br />

de ferrão de arraia 5 e ele morreu” (ibidem, p.170).<br />

Deriva do episódio uma série de ações movidas pelo sobrenatural, tal<br />

qual se verifi cam, também, no texto de Andrade, em que animais ou pessoas<br />

são transformados para contribuírem na vitória do herói sobre seus<br />

oponentes. Assim, Mitavaí faz do “gigante” uma anta, do “anão Cartola”<br />

um tatu, da “Bo<strong>in</strong>heém-m<strong>in</strong>hocuçu” uma jararaca, de “Ateim”, o preguiçoso,<br />

em “Aí”, “nome tupi do animal chamado preguiça” (ibidem, p.174),<br />

segundo a nota de rodapé. Todas as metamorfoses enumeradas até aqui são<br />

manifestações do poder do herói dest<strong>in</strong>ado à redenção dos que temem Macobeba,<br />

por isso “viram” (ou seja, metamorfoseiam-se) algo que não obstruem<br />

a sua trajetória. Fica evidente a <strong>in</strong>tervenção popular do verbo virar,<br />

corrente entre os mitos <strong>in</strong>dígenas, tal qual Mário utilizou em Macunaíma,<br />

em correspondência à forma erudita transformar.<br />

O embate mais importante dá-se numa “camp<strong>in</strong>a ao pé da grande serra”<br />

(ibidem, p.175), revelado por Napicuré, que, em sonho, aponta o local onde<br />

se encontra o monstro: “subiu um ronco tão medonho do nariz do monte<br />

que a terra estremeceu e já a taboa do brejo se acamou com o corpo de Macobeba<br />

rabejando de fúria” (ibidem, p.175). Diante da difi culdade da luta,<br />

5 Em nota, atribuída a Bernardo Claraval, há a explicação da simpatia; “Li em No Termo de<br />

Cuiabá, de meu amigo M. Cavalcanti Proença, que, entre pescadores cuiabanos e campes<strong>in</strong>os<br />

paraguaios, cura-se picada de arraia com a estranha simpatia de apor o membrum muliebris<br />

sobre a ferida” (p.170). Na obra citada de Proença, encontra-se, de fato, o relato da referida<br />

simpatia: “Não há cataplasmas nem benzeduras que a vençam, a não ser esta estranha<br />

simpatia: conseguir que uma mulher encoste os órgãos genitais sobre a ferida; é o mesmo que<br />

tirar com a mão, dizem, embora não seja muito fácil encontrar à mão esse remédio milagroso”<br />

(cf. Proença, 1958, p.45).


288 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

são resgatadas, mais uma vez, fi guras lendárias que passam a ocupar a função<br />

de “doadores”, ao fornecerem sua força e resistência para que o herói<br />

obtenha uma reação positiva. Assim, são feitos os apelos ao cavalo Cabiúna<br />

e ao Boi Espácio, que reúnem as condições de “auxiliares mágicos”, em forma<br />

de versos, matiz da tradição oral:<br />

Valei-me, cavalo meu, Cabiúna,<br />

Cola no chão<br />

Ferrado das quatro patas,<br />

Valei-me nesta ocasião.<br />

[...]<br />

Valei-me meu Boi Espácio,<br />

Vejo m<strong>in</strong>ha perdição.<br />

Sou moço para morrer<br />

Valei-me nesta ocasião.<br />

Mesmo com a <strong>in</strong>tervenção, o herói não vence o confronto e <strong>in</strong>icia uma<br />

série de outros eventos para culm<strong>in</strong>ar sua ação. A <strong>in</strong>iciativa sempre parte de<br />

um sonho tido por ele ou por Nacipuré, como no exemplo a seguir, em que<br />

anuncia que o monstro só poderá ser vencido se preso a um puçá. Como<br />

se nota, os elementos mágicos permeiam toda a narrativa, dando-lhe um<br />

ritmo de abertura – fechamento – abertura, o que d<strong>in</strong>amiza o fl uxo fabulário<br />

em constante paralelismo aos eventos do enredo. A nova tentativa de<br />

confronto é acompanhada de outro elemento construído por Mário – o fi o:<br />

Vieram a nhandu-caranguejeira, a diadema, a papa-mosca, mas era pouco<br />

o fi o. Mitavaí tosou a cr<strong>in</strong>a de Cabiúna, desfi ou a baba de Boi Espácio e elas<br />

tramaram que mais tramaram e se fez o puçá de nhanduti muito l<strong>in</strong>do. De um<br />

pedaço que sobrou, Mitavaí fez varanda de rede para dar de presente a Tetaci,<br />

que via tudo, bem faceira lá de cima, e mandava geada para endurecer os fi os de<br />

baba do Boi Espácio. (ibidem, p.177)<br />

Com a doação do elemento de magia, fi nalmente, o herói arrebata, do<br />

fundo das águas, o monstro temido. É o que se apreende, em primeira <strong>in</strong>s-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 289<br />

tância, após a pajelança feita para que sua alma se desprendesse do corpo,<br />

vomitando as pessoas que engolira: “saíram muitos conhecidos de lá de Popenó<br />

[...] muita gente bem que gelat<strong>in</strong>osa [...]. Mitavaí acendeu charuto,<br />

fez um s<strong>in</strong>o-saimão com a c<strong>in</strong>za e soprou fumaça neles, que já fi caram gente<br />

outra vez” (ibidem, p.178). Diante do domínio da situação, o monstro “se<br />

virou em labaredas grandes [..]. Das c<strong>in</strong>zas de Macobeba nasceu uma coisa<br />

que foi voando para o alto [...] para o Polo Norte” (ibidem). A referência às<br />

c<strong>in</strong>zas aponta para um possível retorno do monstro, tal qual a Fênix, porém,<br />

a expectativa é quebrada pelo afastamento de dois doares importantes:<br />

o cavalo Cabiúna e o Boi Espácio, que não retornam ao enredo:<br />

Cabiúna e Boi Espácio estavam ali olhando para ele já com saudade. Macobeba<br />

morrera. Tetaci fora v<strong>in</strong>gada. O índio abriu os braços para os dois amigos<br />

se desped<strong>in</strong>do e eles lhe lamberam a mão. Na esquerda a língua macia do cavalo,<br />

na direita a língua lixenta do boi. Fez cam<strong>in</strong>ho para o igarapé, sem força<br />

de olhar para trás. Entrou na igarité e ganhou o centro do rio. Ele ia voltar, mas<br />

a<strong>in</strong>da desta vez não iria para o céu ser estrela. A<strong>in</strong>da t<strong>in</strong>ha de correr fado muito<br />

tempo”. (ibidem)<br />

A plenitude da saga de Mitavaí não se encerra no feito que soma seu<br />

heroísmo à presença de fi guras da crença popular. A<strong>in</strong>da é conjugada a outra<br />

l<strong>in</strong>ha do enredo, que tangencia a do combate, mas volta-se, de modo<br />

especial, ao resultado supostamente positivo, dando-lhe honrarias, festas e<br />

homenagens, tal sua condição de salvador. Além disso, é lançada sua candidatura<br />

à presidência, fomentada por Nhô Tonho e arquitetada pelos jornais<br />

locais, com os quais possuiu relações de amor e ódio. Destaca-se “O Diário<br />

Popenoense, dos Orembaés”, que o aponta como “um homem de origem<br />

humilde gu<strong>in</strong>dado ao mais alto posto de Estado” (ibidem, p.201).<br />

Dentro dessa perspectiva, em que se eleva a construção da personagem<br />

no campo ideológico e político, há um salto, se considerada a condição de<br />

<strong>in</strong>dígena destribalizado do <strong>in</strong>ício do enredo, em que não se anuncia sua fi -<br />

liação. Passa-se a saber que é descendente de Macunaíma, nas <strong>in</strong>tervenções<br />

de Tetaci e do Boi Espácio, passando a domador de gado, chofer, guarda<br />

fl orestal, soldado e capanga de políticos. Deve ser acrescido, a<strong>in</strong>da, o fato de<br />

ser analfabeto, v<strong>in</strong>do a alfabetizar-se em função de exames fi nais de g<strong>in</strong>ásio,<br />

em meio a ações excusas de dirigentes que o colocaram em posição privile-


290 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

giada frente os demais. De fato, como anuncia o crítico, chega à margem do<br />

que se poderia chamar de “surrealismo caboclo”, dada a capacidade fabulatória<br />

e a densidade de ações que lhe são atribuídas, desde o envolvimento<br />

com a fi gura lendária de Tetaci, o casamento com Z<strong>in</strong>ha, com a qual teve<br />

um fi lho, ambos mortos posteriormente e o casamento na Sé, com Olga,<br />

de família abastada que o oprime diante do mísero salário que recebe como<br />

guarda fl orestal.<br />

Para todo herói é dado um fi nal, seja ele épico ou irônico, deus ou humano.<br />

Considerado, agora, seu parentesco com o mais ambíguo de nossos<br />

<strong>in</strong>dígenas da fi cção, Mitavaí é desvestido de seu posto e de seu heroísmo pelos<br />

mesmos que autenticaram os atributos. A decadência é construída pelos<br />

jornais que negam a relevância do extermínio de Macobeba, ao publicarem<br />

diferentes versões da história de combate e morte do monstro. Assim, de<br />

candidato à presidência a acusado de assass<strong>in</strong>ato, Mitavaí desce a seu <strong>in</strong>ferno,<br />

com a <strong>in</strong>versão dos fatos no entorno da fi gura lendária:<br />

só a politicagem corrupta dos Orembaés, retardados mentais, mentia ao povo<br />

desvirtuando o sacerdócio da imprensa, apresentando Macobeba como monstro.<br />

Muitos países deviam o seu progresso atual à compreensão dos políticos<br />

adiantados que haviam aceitado a colaboração des<strong>in</strong>teressada de Macobeba na<br />

dragagem dos rios, na formação de ilhas artifi ciais, no desenvolvimento de azeite<br />

de peixe como combustível. (ibidem, p.204)<br />

Fica pontuada, no enredo, a dupla função tanto da trajetória de Mitavaí<br />

quanto a de Macobeba, no universo lendário e cultural em sua constituição<br />

como personagens. Traçam, paralelamente, a vertente ideológica do capital<br />

estrangeiro, alegoricamente vestida na pele de um monstro, “generoso<br />

e pacífi co” (ibidem, p.205), aos olhos dos que se alimentam por essa fenda,<br />

como também a de contribu<strong>in</strong>tes da face devastadora da exploração nutrida<br />

do húmus de <strong>in</strong>stituições formadoras de op<strong>in</strong>ião.<br />

O fechamento do enredo dá ao leitor uma moldura s<strong>in</strong>gular, digna do<br />

exegeta de Macunaíma. Em duas pág<strong>in</strong>as são agrupadas fi guras que se fi -<br />

zeram presentes no decorrer do enredo, responsáveis por articular a saída<br />

coerente para um herói que perambulou entre as culturas, do sertão ao litoral,<br />

em busca do nada. Não havia um objeto pelo qual deveria lutar, ou, de<br />

certa forma, conquistar. Mais que uma busca, as circunstâncias da acultu-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 291<br />

ração é que o levaram a enfrentar situações designadas aos heróis. E o herói<br />

sonhou. Viu Cabiúna e o Boi Espácio. Ouviu Tetaci: “– Acorda, meu fi lho,<br />

que os teus <strong>in</strong>imigos vêm te matar. Macobeba voltou” (ibidem, p.208). A<br />

c<strong>in</strong>za que se elevara em capítulos anteriores dá o signifi cado de Macobeba,<br />

presente e atualizado na revolta da população que quer v<strong>in</strong>gança. Ao lado<br />

de Flor-da-Noite, seu companheiro, Mitavaí dá provas de sua força sobrenatural<br />

ao transformá-lo em pedra, como forma de livrá-lo do sofrimento<br />

de morte. Assim, a narrativa possibilita, por meio das ações fi nais do herói,<br />

uma leitura que vai ao encontro da expectativa do leitor:<br />

Então, o índio subiu no lajedo e seus olhos brilhavam muito. Mirou aquele<br />

povo que t<strong>in</strong>ha parado e pensou: – “Por que não vêm procurar a morte por suas<br />

mãos? Querem, talvez, que eu vá me espetar nas suas armas?<br />

Riscou no ar com um gesto.<br />

Aquela gentama toda que estava pela encosta da serra tremia de medo, perto<br />

de suas cabeças estrondava o trovão. Ali mesmo, contam, sem saber como,<br />

aquele povo dormiu. Arandu transpôs a serra e desceu do lado do mar.<br />

Mas volta. (ibidem, p.209, grifo nosso)<br />

Talvez seja pert<strong>in</strong>ente utilizar a expressão, mais uma vez, de Ivan Proença,<br />

“atrás do morro tem morro”, na qual estaria implícita a arquitetura<br />

artesanal da obra. O fato de abrir-se o enredo em direção ao mar, deixando<br />

ao leitor a tarefa de construir a cont<strong>in</strong>uidade da saga e um “possível retorno”,<br />

seja o de Mitavaí, ou o de Macobeba, já faz mister pontuar algumas<br />

considerações, uma vez que o assunto em relevo nesse texto é a fi guração<br />

do <strong>in</strong>dígena. Primeiramente, a <strong>in</strong>tertextualidade com Macunaíma suscita<br />

a mesma imagem de permanência em determ<strong>in</strong>ada esfera. O que se transforma<br />

em estrela sobrevive no mito, banzando no céu para fugir do dest<strong>in</strong>o<br />

cruel a que foi submetido pelo poder colonizador, uma estratégia de atualização<br />

do primitivo em meio à cultura importada e que se quer superior. O<br />

que sobe e desce o morro permanece na imagem do desconhecido, do outro<br />

lado, numa geografi a, também, do “sem fi m”, e num tempo <strong>in</strong>determ<strong>in</strong>ado,<br />

próprio do pensamento primitivo, evocando o “eterno retorno”, o que garante<br />

a possibilidade de perpetuar os fatos e renovar a vida.<br />

Isso traduz, simbolicamente, o alargamento não apenas das fronteiras<br />

geográfi cas entre sertão e mar, mas da ocupação da cultura, da usurpação


292 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

dos bens culturais coletivos e <strong>in</strong>dividuais de um ser impelido, pela força do<br />

capital, do Estado e da corrupção, a pensar e agir tal qual recomendam os<br />

propósitos. Dessa maneira, nenhum dos dois representa o “outro” totalmente<br />

dist<strong>in</strong>to, por ser portador de uma representação de um devir, como<br />

convém apontar ao povo brasileiro, híbrido em sua composição em decorrência<br />

do contato estabelecido entre as diversas culturas, em formação,<br />

portanto.<br />

Alavancados os elementos prioritários para o propósito deste trabalho,<br />

considera-se que a narrativa de Proença assume, além do teor mitopoético,<br />

um olhar mais acentuado em direção ao <strong>in</strong>dígena transeunte entre as demandas<br />

fronteiriças. Mesmo escrita em torno de tr<strong>in</strong>ta anos mais tarde que<br />

Macunaíma, a obra abarca duas dimensões: uma encontrada fortemente na<br />

narrativa de Andrade, ao resgatar o arcabouço fabulário <strong>in</strong>dígena e popular;<br />

outra, mais tênue, mas não menos importante, na proposição de uma<br />

l<strong>in</strong>ha de pensamento que se acerca de matizes críticos, entr<strong>in</strong>cheirados nos<br />

vales do capital frente à cultura primitiva, que será vista em Maíra, posteriormente,<br />

com ênfase. Ambas se entrelaçam para fazer emergir diferentes<br />

lutas, desde as lendárias, espalhadas pelo sertão, ao jogo econômico, na exploração<br />

das terras.<br />

Ilhado por essas vertentes, encontra-se o <strong>in</strong>dígena Mitavaí, um ser que<br />

se desajusta à medida que sua personalidade se adensa no mundo de conceitos<br />

contraditórios à sua herança tribal. A<strong>in</strong>da que resguardado o arquétipo<br />

do herói satírico, sua aventura não se pauta apenas na falta de persistência<br />

ao trabalho, com a facilidade de conseguir lucro, tal como seu ancestral.<br />

Exige-se de Mitavaí um esforço sobre-humano para atender aos propósitos<br />

de uma sociedade que o vê como um homem a ser “domesticado” dentro<br />

do engessamento capitalista da força do trabalho com o gado e na doma<br />

de cavalos, como na submissão às autoridades militares no quartel, até a<br />

redenção do povo como valente destruidor de Macobeba, que o gradua à<br />

condição de candidato à presidência. O que aparenta uma ascensão l<strong>in</strong>ear,<br />

enquanto história, oculta em suas fendas o curso de águas turvas que percorrem<br />

a cultura <strong>in</strong>dígena em sua degradação. Para Mitavaí, a saída está<br />

em descer do outro lado do morro, para um espaço <strong>in</strong>determ<strong>in</strong>ado, que só<br />

a fi cção poderá revelar. Quanto à sua cultura, no Brasil, carece, a<strong>in</strong>da, que<br />

alguém faça um gesto com um risco no ar.


Episódio-referência<br />

Capítulo II<br />

O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 293<br />

Pirajuru se chegou, olhou, sorriu, se espantou. No meio da folhagem<br />

um <strong>in</strong>dioz<strong>in</strong>ho, sentado, bem de seu. E foi logo sorr<strong>in</strong>do para a carranca<br />

enrugada do pescador como quem visse jenipapo maduro:<br />

– Que faz aí, men<strong>in</strong>o?<br />

– Br<strong>in</strong>cando.<br />

– Br<strong>in</strong>cando? Não vê que esse camalote vai descendo de águas abaixo?<br />

Onde é que você vai parar?<br />

– Pirajuru me tira agora e põe na canoa. Uai!<br />

– Quem te ens<strong>in</strong>ou meu nome?<br />

– Um dourado me contou...<br />

O velho foi baldeando o guri para o fundo da agarité. Remou e não falaram<br />

mais. Isto é, Pirajuru gungunava:<br />

– Men<strong>in</strong>o treloso, capet<strong>in</strong>ha, desgranido...<br />

Lá dentro, na coz<strong>in</strong>ha, tarová, 6 a mulher, ouviu a canoa chegando. O barulh<strong>in</strong>ho<br />

de espuma que a proa fazia, abr<strong>in</strong>do bigode na correnteza, chegou<br />

aos ouvidos, perfeito, sem mistura de chiado da mandioca fritando no azeite<br />

de peixe. “Aqui tem coisa”, foi pensando, e se botou para a janela do oitão.<br />

Na mesma hora se engraçou do piá de pern<strong>in</strong>has tortas, g<strong>in</strong>gando na<br />

rampa da praia.<br />

Abriu a porta a<strong>in</strong>da com os olhos lacrimejando da fumaça de lenha verde<br />

e deu a mão, sem querer, para a benção do men<strong>in</strong>o.<br />

Sentaram os três na coz<strong>in</strong>ha. N<strong>in</strong>guém falou. Pirajuru, acocorado, começou<br />

a picar fumo. Tarová a<strong>in</strong>da esfregava os olhos e o men<strong>in</strong>o trepado<br />

no jirau, olhando os caibros sujos de picumã. Trist<strong>in</strong>ho, trist<strong>in</strong>ho. Depois<br />

Tarová disse:<br />

– Que havemos de fazer?<br />

– Eu sei?<br />

– O jeito é criar o curumim. Bem que a gente andava precisada de uma<br />

criança.<br />

– É. Mas fi lho dos outros é perigo. N<strong>in</strong>guém sabe o sangue que tem.<br />

Pode ser dan<strong>in</strong>ho.<br />

6 Transcrição da nota: “Tarová – Literalmente, loucura, louco (B. C.)” (p.29)


294 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

– Ora, homem, se deixe de simetrias. Não há de ser ruim, com uma car<strong>in</strong>ha<br />

tão simpática.<br />

Olhou para o canto e lá estava o piá encorujad<strong>in</strong>ho, os olhos grandes, ver<br />

um bacurau. Tarová achou o nome dele:<br />

– Mitavaí Arandu, desce do jirau, vem beber café.<br />

O men<strong>in</strong>o a acompanhou, soprou o café adoçado com garapa e se encorujou<br />

de novo. Dormiu, não falou, n<strong>in</strong>guém perguntou nada. Só Pirajuru<br />

saiu hor<strong>in</strong>ha depois, para o rio. Pescar.<br />

Mitavaí tomou conta da casa, como se nunca tivesse vivido em outro<br />

lugar. Engasgou com esp<strong>in</strong>ha de peixe duas vezes, mas foi só o susto. Da<br />

primeira, Pirajuru rodou o prato, o piá virou para o lado do rio de onde veio<br />

o peixe e, com um tapa nas costas, a esp<strong>in</strong>ha fez cam<strong>in</strong>ho. Da segunda, foi<br />

muito mais fácil. Tarová achou no baú velho uma fi ta com a medida do pé<br />

do Senhor dos Passos. Nem <strong>in</strong>fl amou no lugar que a espir<strong>in</strong>ha feriu.<br />

Pois Tarová não via nada e era só amor cego pelo curumim, mas Pirajuru,<br />

desde cedo, notou que o <strong>in</strong>dioz<strong>in</strong>ho era esquisito. Os bichos gostavam dele.<br />

Curicaca, biguá, socó, baguari, era tudo manso e nem se espavoria quando<br />

o men<strong>in</strong>o chegava na barranca para tomar banho. Jacarés atrevidos se afastavam<br />

para fi car bem quietos no capim da margem, só foc<strong>in</strong>ho e olho na fl or<br />

d’água, enquanto o piá dava cambalhotas nadando. Cangapés espirrando<br />

água. Os dias de garoa entristeciam o guri. Ficava de cócoras no barranco,<br />

olhando a água frisada, um que outro borrifo de peixe vadio pulando. Os<br />

outros todos, no fundo por causa da friagem. O martim-pescador se arrepiava<br />

nas pontas de galho seco, as asas que atravessavam o rio batiam lentas e a<br />

anhuma nem gritava, com medo de tr<strong>in</strong>car o espaço que parecia um vidro.<br />

Nesses dias, era bem Mitavaí, curiangu. Imóvel, só olho escuro, só tristeza.<br />

Triste, triste. Os olhos pretos, verdes de olhar a várzea do outro lado, viravam<br />

c<strong>in</strong>zentos quando a água do rio estava neles. O coração do índio sofria<br />

sem ver de quê, dor desanimada que tomava o corpo todo, saudades desenganadas,<br />

moleza, dormência. Só achava cômodo agachado, os joelhos quase<br />

encostando no queixo, como se estivesse morto dentro da igaçaba, com<br />

desenhos brancos, de tauá. Apenas o amor de Tarová, quente como a c<strong>in</strong>za<br />

de borralho, o tirava dali para dentro, calado, só olho, triste, guaim<strong>in</strong>güê. 7<br />

7 Transcrição da nota: “Guaim<strong>in</strong>güê – Nome de uma ave de hábitos noturnos, conhecida,<br />

também, por urutau e cur<strong>in</strong>gu (B.C.)” (p.31).


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 295<br />

Passou a pescar com Pirajuru e o velho entusiasmou com a lad<strong>in</strong>eza do<br />

curumim. Com pouco aprendeu a fi sgar sem falha. Noite de breu, os dois<br />

punham um caco de telha na proa e, sobre, armavam a fogueir<strong>in</strong>ha de achas<br />

de piúva. Madeira seca de cerrado. A labareda subia rutilante da res<strong>in</strong>a<br />

acumulada entre as fi bras. E os peixes v<strong>in</strong>ham estonteados, encadeados por<br />

aquele sol miúdo, bem à fl or d’água. E Mitavaí, de fi sga. E cada p<strong>in</strong>tado,<br />

pacu, e até um jaú velho numa noite mais escura. Pirajuru exam<strong>in</strong>ou o peito<br />

do peixe para ver se t<strong>in</strong>ha cabelo. Todo jaú velho tem cabelo no peito. Mitavaí<br />

ria com o canto do beiço e Pirajuru desconfi ou que ele sabia demais.<br />

Agora, t<strong>in</strong>ha quase certeza. Às vezes o piá saía escoteiro e voltava com a<br />

canoa caculada de peixe. Piraputanga, matr<strong>in</strong>xã, até corv<strong>in</strong>a que subia o rio<br />

Irovi, 8 depois que um presidente trouxe da Europa. Já agora Pirajuru andava<br />

meio se temendo do guri. Os jacarés respeitavam aquele ente mirim que<br />

passava no meio deles sem susto. Nunca perdeu um dourado na l<strong>in</strong>ha. E era<br />

cada bruto, relumiando as escamas como sol doente. Uma vez até Pirajuru<br />

gritou – “É do padre” – para ver que o dourado bambeasse a l<strong>in</strong>ha fug<strong>in</strong>do.<br />

Mas não adiantou. O peixe acabou cativo no fundo da igaraté. E os tempos<br />

passaram. Tarová bem feliz, porque peixe não faltava, Pirajuru desconfi ado<br />

que Mitavaí t<strong>in</strong>ha pauta com o Cão. Men<strong>in</strong>o bonz<strong>in</strong>ho, falando pouco, pescando<br />

muito, encorujado em cima do jirau: Mitavaí (p.29-31).<br />

8 Transcrição da nota: “Irovi – Verde. Rio Irovi é pleonasticamente apresentado por H. R., que<br />

registrou rivus viriaifl umen (B. C.)” (p.31).


PARTE IV<br />

RAÍZES DISPERSAS, RAMOS INDISSOCIÁVEIS:<br />

SÍNTESE E JOGO


Encontram-se, nesta parte, dois autores expoentes no projeto literário<br />

brasileiro, por serem considerados “ponta de lança”. A atitude presente nas<br />

obras dos dois antropófagos, um do barroco setecentista – Gregório de Matos<br />

–, outro, do modernismo – Oswald de Andrade –, fi lia-os à reação sistemática<br />

contra os mecanismos do poder com raízes na estrutura econômica<br />

e na sociedade patriarcal.<br />

O que no barroco de Gregório de Matos apoia-se na apropriação da realidade,<br />

para degluti-la posteriormente, desliza para a refl exão sobre ela no<br />

modernismo de Oswald. Assim, segundo Ávila (1975, p.34), “o que o Barroco<br />

trouxera remotamente como abertura criativa ao primeiro esboço de<br />

uma expressão brasileira [...] é retomado e revigorado pelo movimento de<br />

1922, que, no entanto, já não o conceitua mais como artifício de ornamento<br />

da l<strong>in</strong>guagem, porém como pesquisa de l<strong>in</strong>guagem”.<br />

Os poemas escolhidos dentre a obra satírica de Gregório de Matos são<br />

exemplares no tocante ao aspecto de apropriação da l<strong>in</strong>guagem e da realidade<br />

que emergem das duas essências culturais presentes na nova terra. Na leitura<br />

feita por Ávila (1975, p.31), por esse viés, Gregório “viabiliza pela primeira<br />

vez uma saída brasileira na expressão literária de língua portuguesa”. Assim,<br />

sua poesia articula novos materiais signifi cantes, expostos pelo cotidiano e<br />

pela oralidade, o que lhe concede entoar a língua brasileira, na captação de<br />

seu léxico híbrido, constituído a partir do índio, do negro e do colonizador.<br />

De modo particular, e atendendo aos objetivos deste trabalho, tomamse,<br />

por referência, dois poemas em que a língua tupi, fi ada no tecido barroco,<br />

soa, conforme aponta Bosi (2004, p.40), como uma “nota mordaz”,


300 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

encorpada pela oposição e denúncia que <strong>in</strong>cide sobre os caramurus, “cujo<br />

torpe idioma é Cobepá”. Ao <strong>in</strong>serir sua mordacidade num campo em que<br />

re<strong>in</strong>ava absoluta a forma clássica, desestabilizou o cânone e deslocou o olhar<br />

para a cultura local. Isso não se dá apenas no plano temático, pois os símbolos<br />

trazidos da língua, por exemplo, contribuem para dar novo signifi cado<br />

ao confronto que se eleva em mão dupla: rebaixa os governantes (caramurus)<br />

e, ao mesmo tempo, imprime a cultura <strong>in</strong>dígena por meio de seu léxico.<br />

Ao representar o índio pela sua língua, o código barroco <strong>in</strong>stalado na poesia<br />

satírica gregoriana é “um duplo dizer”, conforme aponta Campos (1983,<br />

p.114), pois ao “dizer um código de alteridades”, “detona uma cápsula de<br />

humor dessacralizante”, diger<strong>in</strong>do a língua-mãe dos cronistas. Com essas<br />

características, nasceu uma poesia “adulta”, ao se posicionar como resposta à<br />

realidade utópica construída sobre o signo do “novo mundo”. Segundo Gomes<br />

(1985, p.293), “esses recursos se ajustavam aos objetivos da sátira, funcionando<br />

os tup<strong>in</strong>ismos como arma de desmoralização das veleidades aristocráticas<br />

dos seus conterrâneos, a fi dalguia mazomba tão mals<strong>in</strong>ada pelo poeta”.<br />

Em Gregório de Matos, a representação do nativo pela língua devora o<br />

que se opõe ao panorama local, ao mesmo tempo, dá vazão “à tendência lúdica<br />

de sua poesia, ao prazer de comb<strong>in</strong>ar termos raros ou pouco usuais para<br />

obter efeitos humorísticos, ou no nível das rimas, ou no próprio corpo do<br />

poema” (Gomes, 1985, p.293). Em Oswald de Andrade, encontra-se um<br />

cam<strong>in</strong>ho mais profundo em Pau-brasil (1924), obra basilar na leitura da fi -<br />

guração do <strong>in</strong>dígena. Do confronto entre civilização <strong>in</strong>vasora e selva <strong>in</strong>culta<br />

<strong>in</strong>vadida, os poemas escolhidos escavam a matéria-prima na l<strong>in</strong>guagem do<br />

<strong>in</strong>vasor para recompor-se em matéria antropofágica no fazer poético que<br />

busca o frescor na l<strong>in</strong>guagem primitiva.<br />

Na leitura esclarecedora de Chamie (2002), dois aspectos são apontados<br />

ante a visão de Oswald aos textos dos cronistas. Esses dois pontos são<br />

impresc<strong>in</strong>díveis para o entendimento do espaço que os poemas-referência<br />

ocupam neste exercício de leitura. Segundo o crítico, a bipartição revela, de<br />

um lado, que são textos espontâneos, frutos do deslumbramento do <strong>in</strong>vasor<br />

diante das impressões primeiras da terra, nos quais se deixam marcar pela<br />

<strong>in</strong>genuidade e não pelo caráter letrado ao qual estavam <strong>in</strong>seridos os cronistas.<br />

De outro lado, vê nos textos a presença escolarizada, marcada na retórica<br />

envolvida pela máscara do poder. Assim, sob o revestimento da retórica,<br />

encontram-se os preceitos e as convenções, e, sob o revestimento do poder,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 301<br />

subl<strong>in</strong>ham-se os rituais de cerimônia e protocolo. Sendo os textos escritos<br />

sob essa óptica, perdem sua orig<strong>in</strong>alidade para <strong>in</strong>corporarem as substâncias<br />

que o poder lhe empresta.<br />

Desse modo, o trabalho de escavação que Oswald realiza na Carta de<br />

Achamento, de Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha, é, antes de tudo, a compreensão da<br />

montagem do seu discurso por meio da apropriação. Aliado à concepção<br />

antropofágica e à poesia Pau-brasil, o poeta pauta-se pela vertente <strong>in</strong>culta e<br />

natural para opor o contexto ritualizado do poder protocolar do cronista. O<br />

trabalho arqueológico feito desliza, então, para aspectos que levam a pontos<br />

de <strong>in</strong>tersecção com a cultura <strong>in</strong>dígena, vista por Oswald como um dos<br />

elementos encobertos pelo texto protocolar, uma espécie de paródia, feita<br />

pelo cronista-autor, dos gestos e ações do nativo. Na poesia Pau-brasil, a<br />

presença <strong>in</strong>dígena, embutida no texto de Pero Vaz, foi redescoberta, para<br />

fazer emergir a fala “adâmica”, existente antes da fala <strong>in</strong>vasora e seus artifícios<br />

gramaticalizados. A poesia Pau-brasil é fruto do “desentranhamento<br />

e da garimpagem”, conforme termos de Chamie (2002), para recapturar a<br />

essência, ocultada pela retórica do poder <strong>in</strong>vasor.<br />

Sob o fascínio que a diferença nativa exerce, Pero Vaz descreve a existência<br />

de uma realidade a partir do expansionismo cristocêntrico, o que o leva a<br />

<strong>in</strong>terpretar o que vê e o que lhe parece ser do modo que desejar, resum<strong>in</strong>do,<br />

assim, “a moral, a metafísica, a gramática, a religião, a política, a economia<br />

que nutrem e fundamentam o discurso <strong>in</strong>vasor” (idem, p.84). Para refazer<br />

o texto da Carta, Oswald realiza uma dupla troca e substituição de papéis<br />

para apropriar-se às avessas do discurso apropriado. Entenda-se nos dois<br />

papéis a do “sujeito mitológico do discurso”, como poeta, e o de “persona<br />

<strong>in</strong>dígena”, ao <strong>in</strong>vestir-se como coautor do cronista Pero Vaz. Com o poder<br />

de reescrever o texto, desembaraça o feito da descoberta e chega à <strong>in</strong>ocência<br />

pré-lógica, na qual prevalece a percepção <strong>in</strong>tuitiva, sem as amarras do<br />

saber oriundo do <strong>in</strong>vasor. Por esses aspectos apontados, não se pode ler,<br />

<strong>in</strong>genuamente, a poesia Pau-brasil como uma simples paródia dos textos<br />

dos cronistas. A paródia existe, sem dúvida, porque são evidentes os resquícios<br />

do texto-matriz nos poemas garimpados, mas a orig<strong>in</strong>alidade do<br />

texto oswaldiano é chancelada na concepção de uma cultura primitiva que<br />

ressurge como realidade genuína, a partir da apropriação do colonizador,<br />

em seu discurso deformado. Com a autonomia do “ver com olhos livres”,<br />

o “to be or not to be” será deglutido por outra questão: “tupi ou not tupi”.


1<br />

O DESCOMPASSO DO BARROCO NA POESIA<br />

BRASILEIRA: MOBILIDADE E INCONFORMISMO<br />

(GREGÓRIO DE MATOS GUERRA)<br />

HISTÓRIA<br />

um dia<br />

o mastro da nau capitânea<br />

estuprou as índias ocidentais<br />

e...<br />

tcham tcham tcham tchammm!<br />

oi nóis aqui<br />

ó!<br />

Shasça<br />

Dentre o conjunto de obras escolhidas para este trabalho, tomam-se<br />

como objeto dois poemas de um dos autores polêmicos do corpus literário<br />

brasileiro. Gregório de Matos, o poeta baiano cunhado o Boca do Inferno,<br />

faz poética e satiricamente a fusão do sangue <strong>in</strong>dígena com o branco no<br />

nordeste: os “caramurus”, tipifi cando s<strong>in</strong>gularmente, sob sua vulgaridade,<br />

aspectos triviais e populares. É em sua movência lúdica que mostra com<br />

destreza “uma nova ordem de signifi cados, emergente, sem dúvida, da sua<br />

realidade, ou seja, da realidade colonial brasileira com as implicações decorrentes<br />

do nosso melt<strong>in</strong>g pot” (Ávila, 1971, p.93). A<strong>in</strong>da que lhes sejam<br />

atribuídas fi liações de colonizador, olha para a referência imediata da cultura<br />

local e <strong>in</strong>corpora os termos afro-<strong>in</strong>dígenas, sem deixar de utilizar as<br />

técnicas dos gregos e lat<strong>in</strong>os em seus poemas que se <strong>in</strong>screveram no quadro<br />

de condicionamento à tendência europeia.


304 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Sua sátira refugia-se na vertente mais profana de sua poesia, assegurando-lhe<br />

o posto de um artesão barroco com visão realista do mundo. Apropria-se<br />

do discurso “menos refi nado e mais persuasivo”, aponta Gomes<br />

(1985, p.321), deformado pelo “exagero caricatural” que o faz experimentar<br />

todos os “expedientes l<strong>in</strong>guísticos que consolidem e consagrem a ruptura,<br />

falando uma l<strong>in</strong>guagem oposta à da etiqueta social e literária, ou do Poder”.<br />

Tomando a língua falada nas ruas como ferramenta para debochar do<br />

poder constituído, abre, semanticamente, a comunicação com os elementos<br />

formadores da cultura brasileira. Conforme entende Gomes (1985, p.319),<br />

a “poesia de Gregório de Matos é, <strong>in</strong>questionavelmente, um permanente<br />

aliciamento à polêmica, no que já revela, porém, a sua vitalidade e riqueza”.<br />

Diante dessa face irrequieta, que rompe com uma série de fronteiras,<br />

o que se propõe aqui é analisar, dentre sua obra satírica, dois poemas que<br />

<strong>in</strong>serem o elemento <strong>in</strong>dígena, ou signos orig<strong>in</strong>ários de sua cultura, na representação<br />

do caráter local em contraposição à estrutura hegemônica da tradição<br />

europeia. O recorte feito diante da produção do autor deve-se ao fato<br />

de que os dois poemas possuem características marcantes no uso dos termos<br />

da língua <strong>in</strong>dígena e traduzem um dos momentos importantes da formação<br />

cultural e política do país, tomada pelo ângulo da Bahia. Observar a<br />

presença do índio na obra de Gregório de Matos, a partir desse momento<br />

histórico, visa compreender, mais atentamente, os recursos de composição<br />

utilizados, que os <strong>in</strong>screvem no campo da poesia satírica “corrosiva”<br />

e “carnavalizante”, como aponta Helena (1980), ao entender que Gregório<br />

se mostra “um crítico atento à sociedade que o envolve, e da qual ele traçou<br />

um perfi l rigoroso e sem concessões”.<br />

Há, no entanto, quem o considere não <strong>in</strong>fl uente na formação do corpus<br />

literário nacional, como Candido (1997) aponta, deixando-o à margem da<br />

dita “verdadeira literatura”, por sua obra não ter tido um público direcionado.<br />

Diante da polêmica <strong>in</strong>staurada em relação à origem da literatura brasileira,<br />

Campos (1989) fez importantes apontamentos no que diz respeito<br />

ao lugar que ocupa no âmbito nacional e o <strong>in</strong>staura na condição de <strong>in</strong>tegrante<br />

do “código universal mais elaborado”, pondo a lume a diferença de sua<br />

produção em relação à europeia no que tange à fi guração do <strong>in</strong>dígena e aos<br />

demais temas locais pulverizados em sua obra. Vê-lo como poeta plagiário,<br />

como o defi niram, ou de segunda ordem, não é o foco, tampouco colocá-lo<br />

como maior representante da sua época, visto que não se trata de condená-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 305<br />

lo ou absolvê-lo. O que o torna assunto neste estudo é a quase obsessão com<br />

que erige sua poesia no plano retórico-estilístico, atuando sobremaneira na<br />

ordem s<strong>in</strong>tática das palavras, nas construções fi gurativas e nos jogos das<br />

sonoridades para obter um efeito surpreendente. Para Lucas (1989, p.25),<br />

Gregório “realiza o jogo da igualdade e da diferença, propondo justamente<br />

no plano da l<strong>in</strong>guagem a <strong>in</strong>solubilidade da contradição, deslizando-a no<br />

eixo da conduta, do compromisso ético, cuja estabilidade seria, na verdade,<br />

<strong>in</strong>compatível com o regime e a situação re<strong>in</strong>ante”.<br />

O fi o norteador que o faz desfi gurar da produção de outras obras de<br />

sua época, no que consiste à captação do elemento local como formador de<br />

cultura, é justamente a quebra da harmonia dos signos com que joga para<br />

constituir o poema. É desse paradoxo, formado a partir dos elementos da<br />

diferença, que Gregório de Matos desestabiliza o discurso do cânone. O<br />

que era objeto de exotismo aos olhos do colonizador passa a ser elemento<br />

na construção da imagem de uma nação que se forma a partir dos mesmos<br />

aspectos paradoxais de cultura. Se, para Candido (1997, p.24), Gregório<br />

“não existiu literariamente (em perspectiva histórica) até o romantismo” e<br />

“não contribuiu para formar o nosso sistema literário”, para Campos (1989,<br />

p.10) é “um dos maiores poetas brasileiros anteriores à Modernidade,<br />

aquele cuja existência é justamente mais fundamental para que possamos<br />

coexistir com ela e nos sentirmos legatários de uma tradição viva”. Assim,<br />

“parece ter-nos fundado exatamente por não ter existido, ou por ter sobreexistido<br />

esteticamente à força de não ser historicamente”.<br />

Polêmicas à parte, o <strong>in</strong>teresse eleva-se, antes de tudo, da compreensão do<br />

que a crítica operou, para alcançar a proposta basilar de perceber o <strong>in</strong>dígena<br />

e suas <strong>in</strong>terrelações com o processo cultural brasileiro, que dialogam a partir<br />

de vários pontos de vista. Para perceber as nuanças desta travessia de leitura,<br />

serão analisados dois poemas: 1. Aos pr<strong>in</strong>cipais da Bahia chamados os Caramurus<br />

e 2. Ao mesmo assunto, por tencionarem a questão <strong>in</strong>dígena na <strong>in</strong>serção<br />

de vocábulos da língua tupi. Inseridos, passam a ser “material da sua realidade<br />

e da sua obra” e se transformam “em <strong>in</strong>strumento de desmascaramento”<br />

(Wisnik, 1975, p.17). O confl ito estabelecido entre a sociedade dita “normal”<br />

e a “absurda” desloca o olhar para símbolos da cultura local, na qual vivem<br />

os <strong>in</strong>dígenas que, antropofagicamente, re-signifi cam a devoração do outro e<br />

de si mesmos no resultado trazido pela fi dalguia não tão natural quanto vista<br />

pela noção de nobreza do passado colonizador. Esse confronto não se dá ape-


306 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

nas no plano temático dos poemas escolhidos, como também <strong>in</strong>stala-se no<br />

nível da l<strong>in</strong>guagem que, ironicamente, transita em mão dupla. Ao rebaixar o<br />

poder, por meio da palavra revestida de teor carnavalizante, evoca a presença<br />

da cultura <strong>in</strong>dígena no emprego de termos da língua, revelando a mestiçagem<br />

brasileira. É por esse curso que se pretende observar as estratégias de<br />

composição, pelas quais se articulam o <strong>in</strong>sulto ao poder e a acidez crítica.<br />

No rol dos autores brasileiros, Gregório de Matos eleva-se como um dos<br />

representantes do barroco setecentista, período que mais soa como eco do<br />

que se produziu no barroco ibérico e italiano, repet<strong>in</strong>do os traços mais expressivos.<br />

Dados os aspectos históricos e espaciais em que a cultura ibérica<br />

se <strong>in</strong>seria no século XVI, tais como a Contra-reforma, a Companhia de Jesus<br />

e a expansão mercantilista, o estilo barroco lançou raízes nas colônias<br />

por onde os ideais ideológicos foram dissem<strong>in</strong>ados, porém, “um barroco<br />

não-legítimo, já deteriorado num contexto de desilusão, problematizado<br />

pela impotência econômica e pela exploração baseada no trabalho escravo”,<br />

segundo Lucas (1989, p.25). No panorama geral dos conceitos que emergiram<br />

a partir do adensamento da l<strong>in</strong>guagem estética, encontram-se desde os<br />

que acusaram o barroco de esvaziamento de conteúdo aos que o enobreceram<br />

sob a égide formalista do rebuscamento.<br />

O universo social e político com o qual o escritor baiano depara na vida<br />

colonial brasileira, no entanto, é de um espaço iletrado, que encarcera a literatura<br />

nos auditórios, e de <strong>in</strong>stituições jurídicas que se alimentam da farsa<br />

para se manterem ao lado do poder. Tais fatores passam a ser fomento ao<br />

riso e à sátira, porém ressemantizados pela composição de sua poética, dada<br />

a feição que vai tomando diante do embate entre sua formação humanística<br />

e o perfi l da realidade contrastante que se esboçava. Assim, “encontrou no<br />

soneto outro <strong>in</strong>strumento bastante maleável para a expressão de seu espírito<br />

irrequieto, zombeteiro e maledicente” (Chociay, 1993, p.84).<br />

Refer<strong>in</strong>do-se a esse mesmo assunto, Wisnik (1976, p.17) aponta que<br />

a diferença da colônia obrigava o poeta a <strong>in</strong>cluir a mestiçagem na sua l<strong>in</strong>guagem<br />

poética, a <strong>in</strong>corporá-la, a aceitá-la como material da sua realidade e da sua obra,<br />

e a transformá-la, em certos casos, em <strong>in</strong>strumento de desmascaramento, como<br />

fez, ao denunciar as pretensões de nobreza dos “fi dalgos caramurus” <strong>in</strong>sem<strong>in</strong>ando<br />

no soneto europeu os elementos estranhos de uma espécie de patuá tupi<br />

(cobepá, aricobé, cobé, paí).


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 307<br />

Com a <strong>in</strong>serção dos elementos de cultura local trava-se uma luta entre o<br />

legado europeu, com sua constante presença no meio, e o descort<strong>in</strong>amento<br />

de uma das faces da cultura brasileira (e não a única e verdadeira) que se<br />

fundava. Nesse aspecto, a antropofagia é o viés pelo qual se estabelece a<br />

correlação dos dois universos presentes, “uma forma d<strong>in</strong>âmica de apreensão<br />

da realidade” (Helena, 1980, p.83), que promove o movimento contraideológico<br />

ao clássico. O termo antropofagia assume aqui o signifi cado que<br />

Lúcia Helena (1980, p.71) propõe como “parricídio conceitual”, marcado<br />

por uma<br />

devoração específi ca, [...] em que a palavra passa a não ser mais o estatuto que<br />

ofi cializa o poder, e através do qual ele se manifesta sob múltiplas formas de<br />

opressão. [...] Devorar o pai (o colonizador), devorar o discurso do pai, devorar<br />

a palavra que representa o estatuto do poder, ora através da paródia, ora pela<br />

ironia, ora pelo jocoso, ora pelo <strong>in</strong>tercâmbio e diálogo com o texto do poder, foi<br />

a tônica da produção satírica de Gregório de Matos.<br />

Tanto em Gregório de Matos quanto em Oswald de Andrade, a atitude<br />

antropofágica é tida como “um misto de <strong>in</strong>sulto e de sacrilégio <strong>in</strong>tencional<br />

e irreverente, usado como sucedâneo à agressão promovida pelo aparelhamento<br />

colonial politicamente repressor” (ibidem, p.83), aponta a autora. O<br />

alvo at<strong>in</strong>gido é a mestiçagem que se quer fazer nobre, pautada pela herança<br />

do passado histórico do colonizador. Pela poesia, Gregório desestabiliza a<br />

noção do europeu bem comportado, sério, alterando o resultado previsto de<br />

suas ações. Para Campos (1977, p.209) o poeta baiano “soube levar a mistura<br />

de elementos do Barroco à própria textura de sua l<strong>in</strong>guagem, através da<br />

miscigenação idiomática de caldeamento tropical”. Nos sonetos escolhidos<br />

estão marcados esses dois polos que dão o caráter carnavalizante da constituição<br />

da fi dalguia que ocupava lugares de destaque. Há que ressaltar, no<br />

entanto, que as imagens são construídas semanticamente em mão dupla,<br />

como foi ass<strong>in</strong>alado anteriormente. De um lado, a <strong>in</strong>serção do léxico tupi<br />

metaforiza uma l<strong>in</strong>ha constitutiva da cultura brasileira resgatando a presença<br />

do índio; de outro, o eixo alto versus baixo, que desmascara a fi gura<br />

do caramuru, mestiço, portanto. Assim, a construção poética pela carnavalização<br />

vai rebaixando as virtudes pela enumeração de palavras que suscitam<br />

degradação do <strong>in</strong>divíduo em relação as que nomeariam o cidadão digno


308 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

de exercer a posição ocupada pelos miscigenados: “Descendente do sangue<br />

tatu” (v.3 – soneto 1); “Cujo torpe idioma é cobepá?” (v.4 – soneto 1); “Em<br />

lugar de cotó, arco e taquara” (v.3 – soneto 2); “Penacho de guarás, em vez<br />

de gorra” (v.4 – soneto 2).<br />

Tais expressões assumem a duplicidade de função em seu signifi cado<br />

por estarem <strong>in</strong>dissoluvelmente ligadas aos elementos caracterizadores de<br />

ambas as culturas: o fi dalgo possui “sangue de tatu” e seu idioma é “torpe”,<br />

“cobepá”. Usa “arco e taquara”, “penacho de guará” em lugar de se apropriar<br />

de <strong>in</strong>strumentos de origem europeia, “gorra”, que lhe daria a condição<br />

de ser superior aos da colônia. O caramuru é o fruto do contato estabelecido<br />

com o que há de desprezível aos olhos do colonizador – a fusão do sangue<br />

europeu, nobre, com o <strong>in</strong>dígena, considerado <strong>in</strong>ferior e, portanto, não digno<br />

de assumir o poder.<br />

O processo de construção dos poemas é visivelmente metonímico, no<br />

que diz respeito aos fi dalgos. Eles são caracterizados pelo léxico tupi, tomados<br />

pela parte chamada Caramuru, mas representam, fi gurativamente,<br />

os políticos de modo geral, o todo, portanto. Assim, já não são <strong>in</strong>dígenas<br />

puros por conterem uma parcela de sangue não índio e são reduzidos por<br />

meio de elementos contrastantes dentro do contexto cultural e l<strong>in</strong>guístico,<br />

como percebidos em “arco e taquara”, “penacho de guará” e “gorra”, ou<br />

na fusão dos sangues: em “Paiaiá” (índio) e “Marau” (branco) que, juntos<br />

deram origem ao “abaité” (gente feia, repelente): “De Paiaiá tornou-se em<br />

abaité” v.11 – soneto 2.<br />

Onde reside o escândalo da imagem construída pelo poeta ao emitir essa<br />

voz libert<strong>in</strong>a e ambígua? Sua palavra é sua libertação, cheia de sensibilidade<br />

e fúria, demol<strong>in</strong>do os padrões normais, desvelando sua época por meio da<br />

língua que circulava ao seu redor, crua, do povo, na praça. As analogias<br />

envolvendo os contrastes desarticulam um estado de hipocrisia e rearticulam<br />

conscientemente, sob nova signifi cação, “as agudezas” do labir<strong>in</strong>to.<br />

Ao nomear e enumerar a mestiçagem, que ascende ao poder, passando pelo<br />

léxico tupi, o poeta contraria a própria lei do pensamento dialético. Assim,<br />

segundo Paz (1972, p.38), “a imagem resulta escandalosa porque desafi a o<br />

pr<strong>in</strong>cípio da contradição”.<br />

Ao trazer para a arte o elemento nativo, os poemas desmontam a fi gura<br />

do índio canibal, e abrem, pelo canal do lúdico, a possibilidade de se visualizar<br />

um espaço ass<strong>in</strong>tagmático, contrário, a<strong>in</strong>da, à ideia construída pelos ho-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 309<br />

landeses na p<strong>in</strong>tura, em que as imagens do novo mundo obedeciam ao olhar<br />

s<strong>in</strong>tagmático do estrangeiro. Gregório de Matos também tem um olhar estrangeiro,<br />

se considerada sua formação e experiência com a arte e com o<br />

exercício de sua profi ssão na Europa, mas é um olhar v<strong>in</strong>do de dentro, pelo<br />

contato com as transformações por que passava a Colônia. A transgressão,<br />

no entanto, provocada pela poesia, é a <strong>in</strong>serção dos elementos locais, vistos<br />

por outro ângulo. Existe aí um movimento polarizado, segundo Chociay<br />

(1993, p.150), que se estende da “tradição” (unidade formal e técnica) à<br />

“<strong>in</strong>satisfação” (busca <strong>in</strong>cessante de novos dizeres e novos resultados). A<strong>in</strong>da<br />

de acordo com o autor citado,<br />

há um Gregório <strong>in</strong>tegrado à cultura literária que o formou, de que a literatura<br />

espanhola é <strong>in</strong>grediente poderoso; [...]. Mas há também um Gregório irrequieto,<br />

nervoso, <strong>in</strong>capaz de se manter muito tempo em l<strong>in</strong>ha. É este o Gregório que<br />

faz bons e faz maus poemas, que tenta soluções novas e arrisca rupturas [...]<br />

um Gregório da viola, baianizado e vulgar; um enquadrado, outro desajustado.<br />

Essa dualidade que lhe fi cou como marca pode ser notada nos poemas,<br />

nos quais o índio é presença não em sua força física ou na fi delidade ao seu<br />

senhor, nem tampouco na execução de suas atividades rot<strong>in</strong>eiras de guerra,<br />

caça e pesca. Eles abreviam o curso de apropriação desses fatores e vão<br />

diretamente ao que o nativo tem como <strong>in</strong>stituição: a língua. É por ela que<br />

se reconhece a presença <strong>in</strong>dígena. Ele não é dito pelo eu do poema, visto e<br />

caracterizado a distância, mas mostrado por signos l<strong>in</strong>guísticos que o atualizam<br />

culturalmente, mesmo que seja sob um verniz satírico para mostrar<br />

a história de sua gente e de seu tempo. Segundo Feitosa (1991, p.3), a presença<br />

do léxico, que podia ser ouvido abertamente pelas ruas da Bahia, é<br />

uma “atitude antropofágica, de devoração do <strong>in</strong>imigo, uma devoração que<br />

transforma, que destrói para construir”.<br />

Por esse matiz, desconstrói o olhar eurocêntrico direcionado ao habitante<br />

sem caracteres e o constrói sob a palavra dita que, antropofagicamente,<br />

digere a língua-mãe trazida pelo europeu. Br<strong>in</strong>car literalmente com as palavras<br />

do léxico tupi é abrir a porta da brasilidade em suas diferentes facetas.<br />

A língua ocupa seu lugar dentro da formação da cultura brasileira,<br />

porém, faz-se <strong>in</strong>strumento, como numa sequência de degraus para alcançar<br />

ironicamente os que estão no poder. Aí reside o caráter de vanguarda de


310 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Gregório de Matos, que redimensionou, dentro do código do colonizador,<br />

os elementos existentes na terra em formação. Para Bosi (1992, p.101), “o<br />

que está em jogo não é uma forma irritada de consciência nacionalista ou<br />

baiana, mas uma rija oposição estrutural entre a nobreza, que desce, e a<br />

mercancia, que sobe”.<br />

Desse modo, a decadência da mestiçagem é fruto do rebaixamento de<br />

Paiaiá (pajé), empregado no soneto 1, para abaité (gente feia), no soneto 2.<br />

O que matiza o tom dentro do movimento de rebaixamento dos que ocupam<br />

o poder é o fato de serem produto de mistura consanguínea resultante<br />

do produto histórico da colonização. Em relação a essas formações histórico-sociais<br />

circunscritas na arte, Octávio Paz (1972, p.53) aponta para o<br />

papel da historicidade que alimenta o poema: “como toda criação humana,<br />

o poema é um aspecto histórico, fi lho de um tempo e de um lugar; mas<br />

também é algo que transcende o histórico e se situa em um tempo anterior<br />

a toda história, no pr<strong>in</strong>cípio do pr<strong>in</strong>cípio. Antes da história, mas não fora<br />

dela”.<br />

Esse é, sem dúvida, o liame da poesia gregoriana com a modernidade,<br />

uma polêmica que nega e que afi rma dentro da ambivalência do poema o<br />

duplo movimento de <strong>in</strong>serir o <strong>in</strong>dígena, torná-lo matéria do fazer literário,<br />

e debruçar-se, ao mesmo tempo, sobre os questionamentos da formação<br />

cultural do país a partir de sua presença étnica. Necessário observar que,<br />

mesmo utilizando a sátira para tratar do tema do nativo (há outros além dele<br />

que corroboram sua lista), o poeta tem consciência de que sua criação poética<br />

de rebeldia coloca-o ante a pressão histórica do momento. Uma postura<br />

que faz lembrar um ser tomado por iñaron (do tupi, designa um estado de<br />

fúria sagrada, associado a sofrimento excessivo). Não um sofrimento carnal,<br />

físico, mas um sofrimento cultural que o impele a lançar mão do que<br />

há de desprezível ao olhar do colonizador para dizer o local e a mistura de<br />

sangue que compõe a gente brasílica.<br />

E isso o faz destru<strong>in</strong>do o que tem ao redor, ou seja, anula os símbolos<br />

orig<strong>in</strong>ários <strong>in</strong>dígenas pela crítica à mestiçagem que se multiplica diante<br />

dos olhos de um “Doutor” atado às <strong>in</strong>stâncias patriarcais. Segundo Galvão<br />

(1981, p.173-4) “quando o colonizador coloniza o colonizado, o propósito é<br />

sempre a destruição. Essa destruição pode ser pessoal, genocida ou etnocida.<br />

O colonizador mata a pessoa, mata o povo, ou então mata a outra cultura<br />

mediante a imposição da sua e a escravização do colonizado, se acaso sobrou


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 311<br />

algum”. Como herdeiro do colonizador, Gregório poderia situar-se como<br />

um homem avesso à constituição do poder por vias mestiças, mas não é o<br />

homem e sua <strong>in</strong>dividualidade que o <strong>in</strong>tegra neste espaço de leitura, uma<br />

vez que a fi guração do <strong>in</strong>dígena resulta da articulação das imagens tecidas a<br />

partir de um contexto histórico e deságuam no fazer artístico, sustentadas<br />

pelas tonalidades retóricas capazes de dar conta do cam<strong>in</strong>ho a ser feito neste<br />

percurso. O que se nota, nesse sentido, de acordo com a leitura de Gomes<br />

(1985, p.17), é que “há um poeta único, que se desvela na familiaridade de<br />

uma convivência textual prolongada, [...], falando com dicção própria, mesmo<br />

quando a sua voz parece dissolvida no coro das convenções barrocas”.<br />

Diante disso, no segundo soneto, percebe-se a fi guração mais <strong>in</strong>tensa<br />

por meio da apresentação do fi dalgo mestiço: veste “calção de p<strong>in</strong>doba a<br />

meia zorra”/ “camisa de urucu, mantéu de arara”(v.1 e 2), tem “Furado o<br />

beiço” (v.5), é “bruto sem fé” (v.9). Nota-se que os elementos são postos<br />

sob outra ótica. Tal mecanismo de “artifi cialização da l<strong>in</strong>guagem”, conforme<br />

aponta Severo Sarduy (1979), faz que os signos do vestuário e costumes<br />

estabeleçam uma distância entre o signifi cado a que remetem e o signifi cado<br />

contextual erigido a partir do eixo paradigmático do soneto tradicional que<br />

não possuía nada de riso, mas um permanente chorar por este ou aquele<br />

motivo, desde o subjetivo, a distância da amada até a saudade da pátria ou<br />

os temores das descobertas. Somente o contexto em que o poema foi produzido<br />

fará que se note o processo de signifi cação construído entre as fendas<br />

abertas pelos signifi cantes nobre/mestiço.<br />

No entreposto, a metáfora que reconstrói o sentido é: “Só sei que deste<br />

Adão de massapé/ procedem os fi dalgos desta terra” (soneto 2, v. 14 e 15). O<br />

local do signifi cante traduzido nas vestes, costumes e adornos assume o valor<br />

de desmascaramento da falsa nobreza que se constitui como poder. Não<br />

se trata meramente de substituir apenas os signos pertencentes aos nobres<br />

pelos dos miscigenados. Há uma construção mais corrosiva que modifi ca a<br />

visualização da imagem do poder e metaforiza a condição de subalternos.<br />

Assim, a oposição, segundo Bosi (1992, p.103), está no par “nobre/ignóbil”<br />

e não no “brasileiro/estrangeiro”. Sua sátira conduz ao fi dalgo “‘Adão<br />

de Massapé’, símbolo daquela pequena, mas poderosa classe de senhores<br />

baianos nos quais já era considerável a dose de sangue <strong>in</strong>dígena”.<br />

A distância entre europeu e índio é preenchida por um novo signo: o<br />

mestiço, e, junto a ele, são agregados uma série de elementos que se referem


312 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

a diferentes núcleos de signifi cação. No soneto 1, Paiaiá/Caramuru/ tatu/<br />

Cobepá: o pajé, posto elevado dentro da cultura <strong>in</strong>dígena, é rebaixado ao<br />

se prezar como Caramuru. O esvaziamento dos atributos em ritmo decrescente<br />

parte da descendência do “sangue tatu” (<strong>in</strong>dígena, portanto), passa<br />

pela língua Cobepá (dialeto da tribo Cobé) e chega aos opostos Paiaiá/Caramuru.<br />

A l<strong>in</strong>ha mascul<strong>in</strong>a anunciada na primeira estrofe terá sua cont<strong>in</strong>uidade<br />

na fem<strong>in</strong><strong>in</strong>a (segunda estrofe) (Carimá/Muqueca/Pitit<strong>in</strong>ga e outros)<br />

e retorna à mascul<strong>in</strong>a da terceira (Aricobé/Cobé/Paí). Assim, o poema vai<br />

expondo, por meio dos signos enumerados, a falta dos elementos necessários<br />

para a composição do perfi l de um governante. Toda essa operação metonímica,<br />

fundida no decorrer do desmentido acerca do mestiço no poder,<br />

desemboca no último terceto em que o branco (Marau) e a índia (de Maré)<br />

fazem emergir a origem dos Caramurus, 1 que se pode compreender pelo<br />

contexto como <strong>in</strong>aptos ao poder. É por essa l<strong>in</strong>ha do “muito riso e pouco<br />

siso” que se elabora o discurso antropofágico de Gregório de Matos, no<br />

qual, segundo Helena (1980, p.73), “ele traumatiza a medula servil de uma<br />

cultura colonizada e oprimida pela matriz europeia”.<br />

O fechamento do soneto 1 obedece, formalmente, ao processo de dissem<strong>in</strong>ação<br />

e recolha do Barroco, ao agrupar os signos espalhados nas estrofes<br />

anteriores, que traduzem uma vez mais <strong>in</strong>strumentos oriundos dos nativos,<br />

alvos da maledicência do poeta. Como se pode notar, o nome Paiaiá, representante<br />

nato do sangue <strong>in</strong>dígena, não é colocado entre os que nomeiam<br />

simbolicamente os descendentes. Assim, a mestiçagem é colocada numa l<strong>in</strong>ha<br />

<strong>in</strong>ferior, disposta em l<strong>in</strong>ha horizontal e contínua, o que faz colocá-la no<br />

mesmo patamar de igualdade: “Cobepá/Aricobé/Cobé/ Paí”, diferente da<br />

posição ocupada no texto pelo Paiaiá, colocado no fi nal do primeiro verso do<br />

soneto, que fi gura como a gênese da constituição do mestiço. Segundo Feitosa<br />

(1991, p.52) o último verso revela que “a verdadeira origem dos pr<strong>in</strong>cipais<br />

da Bahia está na raça <strong>in</strong>dígena e não na nobreza de sangue azul dos<br />

europeus”. O jogo das oposições estabelecido por meio da sátira contribui<br />

para se entender que “a descendência do ‘sangue tatu’ vem ‘desazular’ o sangue<br />

do Paiaiá (pai, pajé) e perceber-lhe a origem selvagem” (ibidem, p.49).<br />

1 Segundo Segismundo Sp<strong>in</strong>a, citado por Susanna Busato Feitosa (1991, p.49): “‘descendente<br />

do famoso Álvares Correia’, e que por generalização é nome também dado ao europeu em<br />

geral no Brasil”.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 313<br />

Nota-se que os dois sonetos obedecem ao molde europeu no tocante à<br />

forma, como já foi dito anteriormente, mas ampliam sua confi guração ao<br />

<strong>in</strong>serir o universo l<strong>in</strong>guístico pertencente ao nativo. Com esse recurso, o<br />

efeito dos poemas tira as amarras da seriedade para estabelecer o v<strong>in</strong>co pr<strong>in</strong>cipal<br />

da satírica gregoriana no que lhe compete a agressão às <strong>in</strong>stituições e<br />

seus representantes pelo viés lúdico, provocando o riso pelo manejo verbal,<br />

trocando a convenção pela contestação.<br />

O jogo não opera apenas no âmbito da subjetividade (no ideal de Schiller),<br />

como também, alarga-se em direção às estruturas sociais. Assim,<br />

alcança a esfera da arte “aproximando e mediando, através dos canais de<br />

percepção e sensibilidade, a vontade de criação do artista e a nossa disponibilidade<br />

de fruição estética” (Ávila, 1971, p.27). Se o fruidor compactuar<br />

com o artista para concretizar o jogo por meio da mensagem do texto, certamente<br />

existirão alternativas que proporcionarão sua função efetiva.<br />

Nos sonetos, a ludicidade se faz presente, à primeira vista, na alternância<br />

das vogais fechadas /u/, /o/ e explosivas /a/, /e/, de modo especial, as<br />

oxítonas fi nais (Cobepá, Carimá, Massapé, dentre outras) que rompem a<br />

estrutura canônica das paroxítonas e fazem emergir uma sonoridade aberta<br />

à criação do jogo do disfarce no preenchimento do espaço pelo léxico tupi.<br />

Do jogo sonoro desliza o curso semântico construído em mão dupla ao <strong>in</strong>staurar<br />

certa elasticidade entre signifi cante e signifi cado, pois o movimento<br />

<strong>in</strong>s<strong>in</strong>ua um conjunto melódico, tudo em “harmonia imitativa”, diz Chociay<br />

(1993, p.137), na qual se encontra “a organização da matéria sonora dos<br />

poemas em acordo com ou como reforço para a camada semântica”.<br />

Nesse caso, o ritmo dos tambores, suscitado na alternância dos sons,<br />

torna-se um <strong>in</strong>strumento de rebeldia, fundando outra realidade, a da sátira<br />

aos caramurus. Esse poder absoluto de anular a pressão histórica e semântica,<br />

próprio do barroco, dilata as possibilidades de leitura e desnuda a<br />

consistência ideológica subjacente aos signos tal qual uma lâm<strong>in</strong>a de dois<br />

gumes. Assim, como um som puxa o outro, os aspectos de montagem dos<br />

poemas seguem o mesmo ritmo: estão entrelaçados pelo fi o condutor da essência<br />

irônica e do deboche, o que os põem num estado consciente de jogo.<br />

A consciência do poeta ante o elemento formador da cultura brasileira,<br />

revelada por meio do aspecto lúdico, traz consigo a carga ideológica impregnada<br />

em cada palavra selecionada para ocupar tal posição. A atualidade<br />

confl itiva presente no léxico nasce do próprio confl ito entre corpo/espírito,


314 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

ideal/real que o poeta vivencia, dada sua formação religiosa junto aos jesuítas.<br />

Diante disso, “as antíteses, os trocadilhos, os jogos verbais, jogos de<br />

homônimos, os pares antitéticos, constituem alguns dos recursos estilísticos<br />

que se enquadram na dualidade de que é construída a obra gregoriana”<br />

(Falcoski, 1983, p.53).<br />

Em suma, o amolecimento do sério é propósito para fragmentar a tradição<br />

temática. Estabelece um diálogo entre o elemento popular e a sua densidade<br />

semântica pontilhado pela metáfora a ser decodifi cada no traçado<br />

dos poemas que misturam a corporalidade do poder, e ao mesmo tempo<br />

a da escrita, por meio do registro do momento histórico e da permanência<br />

do texto artístico. É o lúdico o canal entre a cor local, o nativo e a expressão<br />

subjetiva do poeta que diz o Brasil por meio da palavra (léxico tupi) em<br />

contraposição aos aforismos da tradição. Mas é preciso considerar que, o<br />

que Gregório de Matos propõe em seu discurso, não são faces bifrontais de<br />

um mesmo tronco, “representam duas ordens opostas de <strong>in</strong>tencionalidade,<br />

porque opostos são os seus objetos” (Bosi, 1992, p.109).<br />

Após o breve excurso feito pelos sonetos e a suc<strong>in</strong>ta refl exão acerca da<br />

presença do <strong>in</strong>dígena, faz-se mister registrar o estado de descentramento<br />

dessas proposições acerca do valor de sua obra no contexto literário brasileiro.<br />

Nesse caso, o <strong>in</strong>teresse maior é o de observar a estrutura híbrida do<br />

objeto literário construído e os efeitos de atração e de repulsa, representados<br />

pelo léxico tupi, um lugar ocupado por signos que engenham a quebra do<br />

paradigma canônico e expõem o ponto de vista de um doutor <strong>in</strong> utroque jure<br />

em sua terra espoliada.<br />

O percurso de leitura dos poemas mostra a nervura central e autêntica<br />

de uma l<strong>in</strong>guagem dita por uma consciência crítica nacional que confl ita<br />

entre a fi losofi a do colonizador e a afi rmação do elemento gerador de uma<br />

nova ordem social: o mestiço. Está impressa na l<strong>in</strong>guagem carnavalizante e<br />

lúdica do poeta a feição do povo que emerge da realidade ácida de seu olhar.<br />

Por meio de sua ação <strong>in</strong>ventiva, criadora, o leitor é guiado ao encontro da<br />

cultura local alimentada pela oralidade explícita dos vocábulos do cotidiano<br />

e pela sonoridade com que o léxico tupi joga na construção semântica do<br />

eixo paradigmático. Todo o engenho composto, e não <strong>in</strong>genuamente, proporciona<br />

o redimensionar da leitura, pois diante do quadro sócio-políticoeconômico<br />

da colônia, uma voz dissonante permite <strong>in</strong>augurar a perspectiva<br />

nacionalista sob a curvatura da l<strong>in</strong>guagem local.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 315<br />

A presença do índio na obra gregoriana não é acidental. Censurá-lo<br />

por isso seria ignorar a tentativa de desenraizar “os brasões ass<strong>in</strong>alados”<br />

e arriscar-se na construção de uma realidade que vai além das observações<br />

da natureza exótica, fl ora, fauna, riquezas m<strong>in</strong>erais e selvagens nus usando<br />

cocares de penas. “Os índios não são passado e sim presente; e um presente<br />

que irrompe agora. Por outro lado, não são a natureza e sim realidades humanas”,<br />

afi rma Paz (1972, p.128). Assim, não se trata de uma imagem fantasiosa<br />

do autor baiano, quando busca o que os olhos veem e as mãos tocam.<br />

Propõe, antes de tudo, ultrapassar as fronteiras, pois o <strong>in</strong>dígena brasileiro<br />

e a mestiçagem, que se compunha aqui, não eram diferentes dos índios bolivianos,<br />

peruanos ou argent<strong>in</strong>os. Mesmo que fosse uma ideia criada pelos<br />

europeus, como aponta Paz (1972), na qual o nome América “engendrou<br />

a realidade”, a poesia satírica gregoriana nasce “adulta”, por se posicionar<br />

como resposta à realidade utópica, constituída no <strong>in</strong>terior do signo “novo<br />

mundo”.<br />

A riqueza poética do autor, analisada com muito mais <strong>in</strong>teresse pelos<br />

críticos a partir do século XX, marca, também, o estado de consciência e de<br />

reavaliação do que foram os rumos da literatura. Talvez houvesse a necessidade<br />

de comungar da ideia de Octávio Paz (1972, p.126), quando diz que a<br />

literatura hispano-americana já não pertence a um ramo secundário, cresceu<br />

e se tornou uma árvore, “com folhas mais verdes e frutos mais amargos”.<br />

Fato semelhante ocorre com a literatura brasileira em relação à aventura<br />

de Gregório de Matos. Não é apenas a mordacidade de sua técnica em captar<br />

a vida brasileira de seu século que o torna <strong>in</strong>fl uente na composição do<br />

quadro de nossa arte literária. Chociay (1993, p.152) entende que o poeta<br />

“não escreveu para um público universalizado e europeizado, mas cantou<br />

acompanhado de viola, para o seu tempo, a sua circunstância, a sua gente<br />

e para si mesmo”. Ele provoca uma rebelião desafi ante quando faz da diferença<br />

matéria-prima de seu artefato, o que o <strong>in</strong>dividualiza como escritor de<br />

um tempo e de uma cultura em que está <strong>in</strong>serido. Assim posto, e resguardados<br />

os seus dilemas, a língua fer<strong>in</strong>a do poeta baiano dilacerou o centro<br />

das atenções do poder, <strong>in</strong>augurando a vertente nacionalista consciente sob<br />

a batuta da sátira, e deixou como legado o cam<strong>in</strong>ho aberto para as gerações<br />

posteriores que beberam da fonte imagética e perturbadora de seu estilo<br />

<strong>in</strong>sidioso. Se o índio brasileiro vai sendo subtraído de sua condição primária<br />

e do poder local pela imposição da língua do <strong>in</strong>vasor, a literatura, de modo


316 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

particular, subverte essa língua. Nos poemas, esse aspecto fi ca referenciado<br />

no emprego dos vocábulos, como foi visto, pelo espírito de transgressão, de<br />

riso, específi co da sátira que emerge de uma circunstância em confl ito, aqui<br />

impressa na presença do mestiço no poder e que provém, também, de um<br />

poeta em confl ito com o sistema, o que fermenta a perspectiva l<strong>in</strong>guística na<br />

confi guração da imagem do brasileiro híbrido.<br />

Poemas-referência<br />

Aos pr<strong>in</strong>cipais da Bahia chamados os Caramurus<br />

Soneto<br />

Há coisa como ver um Paiaiá2 Mui prezado de ser Caramuru,<br />

Descendente do sangue tatu,<br />

Cujo torpe idioma é Cobepá? 3<br />

A l<strong>in</strong>ha fem<strong>in</strong><strong>in</strong>a é Carimá4 Muqueca, pitit<strong>in</strong>ga, 5 caruru,<br />

M<strong>in</strong>gau de puba, v<strong>in</strong>ho de caju<br />

Pisado num pilão de Pirajá.<br />

A mascul<strong>in</strong>a é um Aricobé, 6<br />

Cuja fi lha Cobé, 7 c’um branco Pai<br />

Dormiu no promontório de Passé.<br />

O branco é um Marau que veio aqui:<br />

Ela é uma índia de Maré;<br />

Cobepá, Aricobé, Cobé, Pai. (p.100)<br />

2 Paiaiá – Pajé.<br />

3 Cobepá – dialeto da tribo cobé, que habitava as cercanias da cidade.<br />

4 Carimá – bolo feito de mandioca-puba, posta de molho, utilizada para m<strong>in</strong>gau.<br />

5 Pitit<strong>in</strong>ga – espécie de peixes pequen<strong>in</strong>os.<br />

6 Aricobé – cobé (nome de uma tribo de índios progenitores do Paiaiá, a que se refere o poeta.<br />

7 Cobé – palavra que Gregório empregava para designar os descendentes dos <strong>in</strong>dígenas, pois<br />

no seu tempo o termo tupi não estava generalizado.


Ao mesmo assunto<br />

Soneto<br />

Um calção de p<strong>in</strong>doba8 a meia zorra, 9<br />

Camisa de urucu, 10 mantéu de arara,<br />

Em lugar de cotó, 11 arco e taquara,<br />

Penacho de guarás, em vez de gorra.<br />

O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 317<br />

Furado o beiço, e sem temor que morra<br />

O pai, que lho envasou cuma titara12 Porém a mãe a pedra lhe aplicara<br />

Por reprimir-lhe o sangue que não corra.<br />

Alarve sem razão, bruto sem fé,<br />

Sem mais leis que a do gosto, quando erra.<br />

De Paiaiá tornou-se em abaité. 13<br />

Não sei onde acabou, ou em que guerra:<br />

Só sei que deste Adão de Massapé<br />

Procedem os fi dalgos desta terra. (p.102)<br />

8 p<strong>in</strong>doba – palmeira, coqueiro.<br />

9 zorra – ca<strong>in</strong>do.<br />

10 camisa de urucu – o corpo p<strong>in</strong>tado de vermelho, com a t<strong>in</strong>ta do fruto.<br />

11 cotó – espada curta.<br />

12 titara – nome de palmeira, aqui vareta.<br />

13 abaité – gente feia, repelente.


2<br />

O ENGENHO VERBAL DA POESIA PAU-BRASIL:<br />

OPOSIÇÃO E EMBLEMAS<br />

(OSWALD DE ANDRADE)<br />

Já tínhamos o comunismo. Já tínhamos a<br />

língua surrealista. A idade de ouro.<br />

Catiti Catiti<br />

Imara Notiá<br />

Notiá Imara<br />

Ipeju<br />

A alegria é a prova dos nove.<br />

No matriarcado de P<strong>in</strong>dorama.<br />

Oswald de Andrade,<br />

Manisfesto antropófago<br />

Avesso aos cânones passadistas e a correlatos, Oswald de Andrade fi gura<br />

entre os modernistas como um escritor revolucionário, em seu modo de<br />

fazer poesia a partir dos fragmentos do cotidiano, lançados a uma s<strong>in</strong>taxe<br />

que não obedece à lógica do discurso, mas à lógica do “estranhamento”,<br />

do <strong>in</strong>comum, para provocar no leitor a necessidade de estabelecer conexões<br />

em favor do sentido. Na abertura de um de seus manifestos, o Manifesto da<br />

poesia Pau-brasil, encontra-se a l<strong>in</strong>ha dorsal de sua produção poética: “a<br />

poesia existe nos fatos” (Oswald de Andrade, 2003, p.41). E assim, somado<br />

o cotidiano aos objetivos modernistas, surge, segundo Campos (2003,<br />

p.23), a “efi caz poesia elíptica de visada crítica”, an<strong>in</strong>hada num “programa<br />

de dessacralização da poesia, através do despojamento da ‘aura’ de objeto<br />

único que circundava a concepção poética tradicional” (ibidem, p.25).


320 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Não provoca apenas a destruição dos moldes passadistas em nome de<br />

uma poesia de cunho autêntico, como pretendiam os modernistas da geração<br />

de 22, como também alarga o olhar perceptivo e de resposta às mudanças<br />

provocadas pela era <strong>in</strong>dustrial e à técnica de reprodução, que abriram<br />

os limites de acesso à arte. Assim, arraigado aos mestres do Dadaísmo e do<br />

Surrealismo, como também, ao pensamento da Psicanálise e do pré-logismo,<br />

Oswald é porta-voz de uma nova consciência histórica. Complexo e<br />

contraditório, polemizou com os próprios <strong>in</strong>tegrantes da Semana de Arte<br />

Moderna, no tocante aos rumos do Modernismo, o que lhe custou, muitas<br />

vezes, amizades antigas.<br />

Esse “fustigador” soube, entretanto, alavancar um projeto contra tudo o<br />

que lhe parecia carente de vitalidade, elegendo “o retorno ao passado, com o<br />

objetivo não só de compreender o presente [...], mas de repensar, também,<br />

a história em razão do maior grau de consciência adquirido no século XX”,<br />

como aponta Oliveira (2002, p.100), em relação a Pau-brasil. Do conjunto<br />

de sua obra, destaca-se, para este estudo, Pau-brasil, publicada em Paris<br />

em 1925, da qual são extraídos os poemas-referência. Os dois manifestos,<br />

Manifesto da poesia Pau-brasil (1924) e o Manifesto antropófago (1928), não<br />

são, necessariamente, o objeto deste estudo, mas impõem-se como norteadores<br />

para a compreensão do percurso em que se visualiza o conceito de<br />

primitivismo.<br />

O Manifesto da poesia Pau-brasil tem como ideal, segundo Nunes (1995,<br />

p.13), “conciliar a cultura nativa e a cultura <strong>in</strong>telectual renovada, a fl oresta<br />

com a escola num composto híbrido que ratifi caria a miscigenação étnica do<br />

povo brasileiro, e que ajustasse, num balanço espontâneo da própria história,<br />

‘o melhor de nossa tradição lírica’ com ‘o melhor de nossa demonstração<br />

moderna’”. Para Andrade (1995, p.44), era necessário “ser regional e<br />

puro em sua época”, para universalizar a aura exótica construída em torno<br />

do nativo. Desse modo, a poesia Pau-brasil nasceria “ágil e cândida. Como<br />

uma criança” (ibidem, p.42), desencadeando as funções de reeducar a sensibilidade<br />

e provocar o debate formador da teoria da cultura brasileira.<br />

A síntese oswaldiana, proposta no Manifesto de 1924, é, então, “o convite<br />

a reagir contra a mera cópia e a construir uma poesia <strong>in</strong>tr<strong>in</strong>secamente<br />

nacional”, como entende Oliveira (2002, p.75). Metaforicamente, o autor<br />

emprega o termo “pau-brasil”, alud<strong>in</strong>do à madeira abundante encontrada<br />

no país pelo colonizador e exportada em grandes quantidades, dado o valor


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 321<br />

econômico. O signifi cado estende-se à poesia: “uma única luta – a luta pelo<br />

cam<strong>in</strong>ho. Dividamos: Poesia de importação. E a Poesia Pau-Brasil, de exportação”<br />

(Andrade, 1995, p.42). Exportar a poesia Pau-brasil implicaria<br />

resgatar a gênese identitária do povo brasileiro, desestruturada pela colonização,<br />

que impôs sobre sua imagem um conjunto de características que a<br />

tornou servil.<br />

Enquanto o Manifesto da poesia Pau-brasil (1924) propõe construir uma<br />

poesia nacional, de exportação, o Manifesto antropófago (1928) exorta a<br />

“Revolução Caraíba”: “Maior que a Revolução Francesa. A unifi cação de<br />

todas as revoltas efi cazes na direção do homem. Sem nós a Europa não teria<br />

sequer a sua pobre declaração dos direitos do homem” (Andrade, 1995,<br />

p.48). Nota-se que a explosão de irreverência desse segundo Manifesto nega<br />

qualquer possibilidade conciliatória com o modelo de pensamento europeu<br />

em relação à colonização e aos povos submetidos à sua cultura. Segundo<br />

Campos (1983, p.109), a antropofagia, <strong>in</strong>stituída por Oswald de Andrade<br />

nos anos 20, fez emergir a<br />

necessidade de pensar o nacional em relacionamento dialógico e dialético com<br />

o universal. [...] Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma<br />

transculturação: melhor a<strong>in</strong>da, uma “transvaloração”: uma visão crítica da história<br />

como função negativa (no sentido de Nietzsche), capaz tanto de apropriação<br />

como de expropriação, desierarquização, desconstrução. Todo o passado<br />

que nos é “outro” merece ser negado. Vale dizer: merece ser comido, devorado.<br />

Ao proporem, ambos os Manifestos, a volta ao passado para exercitarem<br />

a releitura da história, elegem o primitivismo como âncora a sustentar o<br />

pensamento voltado à constituição do povo brasileiro, com feições oriundas<br />

de um “começo”, espécie de paraíso, do qual evoluiria, com mais <strong>in</strong>tensidade,<br />

o ideal antropofágico. Desse modo, o esforço para atualizar a origem<br />

e a história colide com as cosmogonias <strong>in</strong>dígenas brasileiras, que reúnem<br />

um conjunto de “histórias” primordiais reveladoras da concepção s<strong>in</strong>gular<br />

do homem arcaico. Ir ao homem primitivo brasileiro é refazer o cam<strong>in</strong>ho<br />

dos eventos históricos que deságuam na face do homem do século XX, uma<br />

forma de revelar a realidade sociocultural, “em decorrência do choque que<br />

a sua descoberta produziu na cultura europeia, do ‘pensamento selvagem’<br />

– pensamento mito-poético, que participa da lógica do imag<strong>in</strong>ário, e que é


322 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

selvagem por oposição ao pensar cultivado, utilitário e domesticado” (Nunes,<br />

1995, p.10).<br />

O que se pode <strong>in</strong>ferir do conteúdo dos dois Manifestos é que ambos se<br />

fundem no momento em que o Manifesto da poesia Pau-brasil s<strong>in</strong>tetiza a<br />

imagem da “fl oresta e da escola” (Andrade, 2003, p.44) como “base dupla”.<br />

De um lado, a colonização e sua arquitetura cultural hegemônica, a<br />

escola; de outro, “a fl oresta” distante, o Brasil pré-cabral<strong>in</strong>o, que se opõem<br />

como visão “ofi cial” da história. Dessas imagens, um salto ao Manifesto antropófago,<br />

no qual é estampado um diagnóstico para a realidade brasileira<br />

apresentada anteriormente. Se no primeiro concilia-se a cultura nativa e a<br />

cultura <strong>in</strong>telectual renovada, no segundo “misturam, numa só torrente de<br />

imagens e conceitos, a provocação polêmica à proposição teórica, a piada<br />

às ideias, a irreverência à <strong>in</strong>tuição histórica, o gracejo à <strong>in</strong>tuição fi losófi -<br />

ca” (Nunes, 1995, p.15). Assim é lançada a palavra “Antropofagia”, como<br />

“<strong>in</strong>strumento de agressão”, diz Nunes, para at<strong>in</strong>gir, canibalisticamente, o<br />

estatuto governamental, com sua moral e conduta, que submeteu a civilização<br />

brasileira ao arqueamento diante de sua opressão: “contra a realidade<br />

social, vestida e opressora, cadastrada por Freud – a realidade sem complexos,<br />

sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de<br />

P<strong>in</strong>dorama” (Andrade, 1995, p.52).<br />

Além disso, nota-se, no Manifesto antropófago, a <strong>in</strong>tenção crítica frente<br />

ao <strong>in</strong>dianismo de feição ufanista e romântica. O mergulho ao primitivo<br />

que promove é, antes de tudo, uma forma de articulá-lo à refl exão, fazendo<br />

emergir o pr<strong>in</strong>cípio de que, repudiando os modelos traumáticos da colonização,<br />

seria possível a libertação <strong>in</strong>telectual e a manifestação literária <strong>in</strong>dependente.<br />

Assim, nega-se o índio sublim<strong>in</strong>ar: “contra o índio tocheiro. O<br />

índio fi lho de Maria, afi lhado de Catar<strong>in</strong>a de Médicis e genro de D. Antônio<br />

de Mariz” (Andrade, 1995, p.51). Fica evidente a oposição ao emblema<br />

criado pela colonização, na referência à obra de José de Alencar, O Guarani,<br />

alud<strong>in</strong>do à personagem <strong>in</strong>dígena Peri, “genro de D. Antônio de Mariz”.<br />

Como se pôde notar no breve excurso pelos Manifestos, a proposta de<br />

Oswald de Andrade não passa somente pela importação de conceitos europeus<br />

em voga. À luz da tradição cultural importada, ele propõe a fusão de<br />

conceitos no entorno da cultura brasileira, que possui, a seu ver, uma orig<strong>in</strong>alidade,<br />

deturpada pelo produto alheio dos estrangeiros. Reler a história,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 323<br />

pelo viés da paródia, da ironia e do riso, seria, nas palavras de Nunes (1995,<br />

p.19), um “ato de re<strong>in</strong>tegração de posse” que “nos devolveria o impulso<br />

orig<strong>in</strong>ário”.<br />

Diante disso, é mister apontar, agora, os artifícios que dão sustentação à<br />

poesia Pau-brasil, pr<strong>in</strong>cipal elemento de análise neste trabalho. O primeiro<br />

item a ser relevado neste diálogo <strong>in</strong>tertextual que Oswald fornece é o encontro<br />

com os textos dos cronistas dos séculos XV e XVI. Esses textos não são<br />

destaques apenas no período modernista. É preciso lembrar que os românticos<br />

já efetuaram a travessia até a fonte de imagens de uma terra edênica, da<br />

qual emerge o sentimento nativista na formatação do conceito de nacionalismo,<br />

como já exposto em capítulo anterior. A imagem paradigmática que<br />

se alastrou, em relação à terra e ao nativo, é, sem dúvida, a do paraíso, vista<br />

pelos olhos dos viajantes que, até então, não possuíam elementos de comparação<br />

para um espaço de tal grandeza. Assim, conforme aponta Oliveira<br />

(2002, p.27), “no que concerne ao índio, que ocupa sempre grande espaço<br />

em tais textos e que é objeto de curiosidade quase espasmódica (sobretudo<br />

as índias), a iconografi a fi xada é ambivalente: ora descreve o idílico habitante<br />

do Éden reencontrado, ora como o feroz selvagem antropofágico”.<br />

Utilizado como matriz para a paródia de Oswald, o texto de Pero Vaz de<br />

Cam<strong>in</strong>ha é exemplar no que diz respeito ao perfi l do nativo que se fi rmará<br />

na concepção do europeu em relação ao novo mundo. Além desse, outros<br />

relatos, como os de Antonio Pigafetta, e as cartas de Américo Vespúcio, revelam<br />

o índio dócil e pacífi co, tal qual a Europa necessitava para cumprir<br />

as expectativas tanto de ocupação da terra como de <strong>in</strong>strumental da catequese<br />

cristã que se difundia. Oliveira (2002) suscita dois pontos relevantes<br />

acerca das primeiras fontes nas quais escritores brasileiros buscaram matéria-prima,<br />

quando ensaiaram conceitos relativos à identidade nacional. O<br />

primeiro ponto <strong>in</strong>daga a respeito das imagens colhidas pelos cronistas de<br />

um país a<strong>in</strong>da não contam<strong>in</strong>ado pelas <strong>in</strong>fl uências estrangeiras e, também,<br />

da bondade natural dos índios, sua <strong>in</strong>ocência, generosidade e coragem. Os<br />

cronistas não teriam utilizado as imagens recorrentes de seus mitos arcaicos<br />

e de seus monstros fantásticos? O segundo ponto, verifi cado pela pesquisadora,<br />

é que “tais viajantes, religiosos ou laicos, raramente ultrapassavam a<br />

faixa litorânea e que, paradoxalmente, isso não impediu que eles narrassem<br />

o mundo desconhecido do sertão, projetando aí suas expectativas de descoberta<br />

de pedras e metais preciosos” (Oliveira, 2002, p.30).


324 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Com a <strong>in</strong>tensifi cação dos contatos com o nativo, as descrições dos cronistas<br />

tomaram outra dimensão. A<strong>in</strong>da assim, alguns elementos da fl ora e<br />

da fauna, naturais aos habitantes, eram vistos como fantásticos, e o nativo<br />

passa a <strong>in</strong>dolente e preguiçoso por não aceitar as regras do colonizador<br />

que lhe impunha o trabalho forçado. Dos cronistas que se empenharam em<br />

apresentar aos europeus o perfi l dos povos da América, somente os não portugueses<br />

tiveram uma relação de empatia, “talvez porque menos envolvidos<br />

no esforço de ocupação da terra”, entende Oliveira (2002, p.31).<br />

Nas crônicas da colonização, que se dest<strong>in</strong>avam a outros <strong>in</strong>teresses, o<br />

que predom<strong>in</strong>a são as descrições detalhadas com o <strong>in</strong>tuito de satisfazer a<br />

necessidade de comércio dos que <strong>in</strong>vestiriam nas novas terras. O índio, segundo<br />

essa concepção, já não é mostrado como exótico, e sim, como possibilidade<br />

de mão-de-obra abundante a serviço da colonização, como se encontra<br />

em Gabriel Soares de Souza, por exemplo.<br />

Além desses, não se pode deixar de destacar a literatura jesuítica, já<br />

apresentada em capítulo anterior, que tem como programa a catequese. São<br />

textos pedagógicos, mas exemplares na dissem<strong>in</strong>ação do conceito da bula<br />

Sublimis Deus, do papa Paulo III, que afi rmava: os índios são homens e não<br />

animais sem alma. Certamente, os textos jesuíticos colocaram em choque<br />

os <strong>in</strong>teresses dos senhores de engenho, uma vez que defendiam a liberdade<br />

do nativo e sua permanência na terra. Mesmo receptivos em relação ao autóctone,<br />

há, em seus documentos, conceitos negativos como “terríveis animais<br />

ferozes, sedentos de v<strong>in</strong>gança e sangue”, como se encontra em Simão<br />

de Vasconcelos, padre Jesuíta.<br />

Não é objetivo primordial, aqui, comentar todos os autores cronistas.<br />

O <strong>in</strong>tento é mostrar, suc<strong>in</strong>tamente, a <strong>in</strong>tersecção desses autores com a obra<br />

de Oswald de Andrade, de modo especial, o texto de Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha<br />

com a poesia Pau-brasil, pela qual se fará um percurso de leitura a partir de<br />

agora.<br />

A primeira edição da obra Pau-brasil foi publicada em Paris pela Sans<br />

Pareil, em 1925, com prefácio de Paulo Prado. Republicada, no Brasil, em<br />

1945, como Poesias reunidas, e, em 1966, em nova edição, com prefácio de<br />

Haroldo de Campos. Outras edições sucederam-se à medida que a crítica<br />

teceu no seu entorno uma aura mítica como autor enfant terrible do modernismo.<br />

Para este trabalho, toma-se a edição de 2003, da Editora Globo,<br />

com os textos de Haroldo de Campos, Mário de Andrade e Paulo Prado,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 325<br />

elucidativos na caracterização da poesia oswaldiana no panorama modernista<br />

brasileiro.<br />

Está impresso em Pau-brasil o projeto de Oswald de Andrade de reconstruir<br />

uma poesia orig<strong>in</strong>al tanto na forma quanto no conteúdo. A surpresa,<br />

como queria o autor, está na característica s<strong>in</strong>gular do antilirismo, antagonista<br />

aos parâmetros da poesia da época. Diante da ruptura com os modelos<br />

vigentes, couberam afagos, como também, <strong>in</strong>compreensão diante do aspecto<br />

paródico que fez emergir sua crítica mordaz.<br />

Para Haroldo de Campos (2003, p.8), é “uma poética da radicalidade”,<br />

aferida no campo da l<strong>in</strong>guagem, “na medida que esta poesia afeta, na raiz,<br />

aquela consciência prática, real, que é a l<strong>in</strong>guagem”. Em meio à verborragia<br />

herdada dos “príncipes da retórica”, a poesia Pau-brasil surge como<br />

resposta tanto à renovação da l<strong>in</strong>guagem, colhida do “mal dizer” das ruas,<br />

como à <strong>in</strong>quietação do homem da fase <strong>in</strong>icial da <strong>in</strong>dustrialização, ocorrida,<br />

a pr<strong>in</strong>cípio, em São Paulo.<br />

No prefácio de Paulo Prado (2003, p.89), a poesia Pau-brasil é defi nida<br />

como “o ovo de Colombo”, por “renovar os modos de expressão e fontes<br />

<strong>in</strong>spiradoras do sentimento poético brasileiro, há mais de um século soterrado<br />

sob o peso livresco das ideias de importação”, uma imagem até então<br />

ofuscada aos olhos do poeta, revelada após o contato com a arte e o pensamento<br />

europeus.<br />

Ressalvados os apontamentos críticos que Mário de Andrade (2003,<br />

p.79) teceu a respeito dos defeitos da obra de Oswald, considera Pau-brasil<br />

nacionalizante e realista, une a imagem à realidade tornando aquela compreensível<br />

e sem deformar expressionistamente esta. [...] Além de mais completo<br />

entre os livros de O. de A. Pau-brasil é dos mais divertidos de nossa terra entre<br />

os de literatura séria. Se utiliza da anedota da pândega mais grossa porém é<br />

literatura séria no sentido em que o valor torna sérias até coisas de pagodeira e<br />

pornografi a como Gregório de Matos e Aret<strong>in</strong>o.<br />

“Em Pau-brasil começa o país de Oswald”, diz Antelo (1991, p.7), no<br />

sentido de que sua poesia, “contrária aos ornamentos beletristas e tardoparnasianos<br />

dos príncipes”, permite desconstruir uma verdade histórica<br />

de totalidade enredada na tradição, em favor do s<strong>in</strong>gular, trazendo consigo<br />

uma l<strong>in</strong>ha de <strong>in</strong>trigas que se lançam da fi cção ao poder do Estado e ao pró-


326 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

prio conceito de fazer literatura. Assim, “ser regional”, como apontara no<br />

Manifesto da poesia Pau-brasil, é adentrar o estado natural do primitivo que<br />

se constituiu no mito do paraíso, <strong>in</strong>spiração desde a descoberta, impresso<br />

nas imagens dos textos dos viajantes que serão regeneradas nos dilatados<br />

limites do moderno.<br />

Nesse aspecto, “transforma-se a paródia em modo efi caz de expressão,<br />

típico de uma civilização em estado de transição” (Boaventura, 1985,<br />

p.23), elaborada a partir dos textos do período colonial, que davam conta,<br />

dentro de seus muros, da visão do país recém-descoberto. Diante desses<br />

apontamentos, merece atenção o fato de que, na releitura de Oswald, tanto<br />

nos Manifestos quanto na poética, as imagens são manipuladas para que<br />

o questionamento provoque uma nova versão desses eventos. Para tornar<br />

efi caz esse <strong>in</strong>strumento de provocação, Oswald desce ao detalhe, para dar à<br />

paródia o poder de tratar, sobretudo, pelo cômico-satírico, os elementos e<br />

autores da fase colonial. A batalha contra a eloquência retórica dá-se numa<br />

l<strong>in</strong>guagem ágil, centrada no objeto, sem rodeios, nem ornamentos, o que<br />

desestabiliza não só a representação anacrônica do mundo e do país, em<br />

específi co, como também, eleva a disposição de renovar a própria estrutura<br />

social, pela l<strong>in</strong>guagem, dimensão pela qual Oswald realiza sua radicalidade.<br />

Na abertura de Pau-brasil, no “escapulário”, lê-se o anúncio do que deslizará<br />

nos demais poemas, como em estado de devoção à matéria-prima de<br />

seu fazer literário:<br />

No Pão de Açúcar<br />

De Cada Dia<br />

Dai-nos Senhor<br />

A Poesia<br />

De Cada Dia (Andrade, 2003, p.99)<br />

Em “falação”, o segundo poema-prosa da obra, resume as ideias do Manifesto<br />

da poesia Pau-brasil, no qual se opõem primitivismo e vanguarda,<br />

o branco, negro e índio, o colonizador e o colonizado, sob o s<strong>in</strong>cretismo de<br />

Oswald, que o tem como solução para tantos contrastes numa mesma cultura.<br />

O tema <strong>in</strong>trodutório é a baliza com que demarca o caráter de seu projeto:<br />

“contra a fatalidade do primeiro branco aportado e dom<strong>in</strong>ando diplomaticamente<br />

as selvas selvagens. Citando Virgílio para os tup<strong>in</strong>iqu<strong>in</strong>s” (ibidem,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 327<br />

p.101). Assim, de posse de recortes da história e da geografi a brasileiras,<br />

vai compondo um mosaico espacial e temporal, como cenas que dão visualidade<br />

a um enredo. É o resultado de um complexo exercício de viagem ao<br />

entorno da cultura que engat<strong>in</strong>ha como nação ante a anciã europeia.<br />

Nos dois textos de abertura de Pau-brasil não se verifi ca um título específi<br />

co que determ<strong>in</strong>e uma seção. Estão dispostos isoladamente, com estrutura<br />

diferente dos sucessivos. As seções posteriores são abertas por um título em<br />

maiúsculas, como “HISTÓRIA DO BRASIL”, “POEMAS DA COLO-<br />

NIZAÇÃO”, “SÃO MARTINHO”, dentre outros. As seções apresentam,<br />

também, disposições diferenciadas. Em “HISTÓRIA DO BRASIL”,<br />

por exemplo, oito séries nomeadas em maiúsculas aparecem dando relevo a<br />

oito personalidades históricas, dentre eles, cronistas que serão parodiados.<br />

Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha, por exemplo, é tomado como <strong>in</strong>tertexto, ao lado de<br />

Gandavo, O Capuch<strong>in</strong>ho Claude D’Abbeville, Frei Vicente do Salvador,<br />

Fernão Dias Paes, Frei Manoel Calado, J. M. P. S. (da cidade do Porto) e<br />

Príncipe Dom Pedro.<br />

Esses formam o conjunto de textos parodiados no que se refere, como<br />

anuncia a seção, à HISTÓRIA DO BRASIL, em seu descobrimento. Para<br />

cada nome parodiado, grafado em maiúsculo, segue-se o poema, com título<br />

em m<strong>in</strong>úsculo, disposto em forma de pequenos blocos como se tivessem<br />

sido colados a partir de recortes de outros textos. Nas demais seções, não<br />

são encontradas séries que recortam a temática, como em HISTÓRIA DO<br />

BRASIL. Os poemas seguem a mesma disposição gráfi ca, em pequenos<br />

blocos, precedidos de seu título em m<strong>in</strong>úsculo, mas não obedecem ao esquema<br />

anterior: seção/série/poema.<br />

Em HISTÓRIA DO BRASIL, os poemas que cedem referência a este<br />

trabalho, são, segundo Campos (2003, p.32), “verdadeiros desvendamentos<br />

da espontaneidade <strong>in</strong>ventiva da l<strong>in</strong>guagem dos primeiros cronistas e relatores<br />

das terras e gentes do Brasil, onde, por mero expediente de recorte e<br />

remontagem, [...] se convertem em cápsulas de poesia viva, dotados de alta<br />

voltagem lírica ou saboroso tempero irônico”. É, portanto, pelo mergulho<br />

no detalhe brasileiro que Oswald fez que a estampa do primitivo se fi zesse<br />

visível sob outro ângulo, a não ser o do exótico, do bárbaro antropófago<br />

ou do paisagístico, colocando, em l<strong>in</strong>ha de combate, a dimensão do país<br />

que transitava do latifúndio em direção à <strong>in</strong>dústria. Ao lado dessa vertente<br />

primitivista, pontilhou, também, o fecundo desnudamento da fi gura en-


328 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

carcerada que a l<strong>in</strong>guagem poética herdou e a pôs afl orada pelo viés crítico.<br />

Assim, diz Campos (2003, p.46), “assumia o mapa diacrônico dos vários<br />

Brasis coexistentes, em tempos (estágios) diversos, num mesmo espaço de<br />

l<strong>in</strong>guagem, e assumia-o <strong>in</strong>screvendo-se nele, observador observado de um<br />

contexto de confl ito”.<br />

No espaço do discurso da história, referendado pelo colonizador, como<br />

se encontra na série HISTÓRIA DO BRASIL, está impressa a crítica meditada<br />

por meio da paródia, emancipada, que dialoga com textos e contextos.<br />

A reconstrução das imagens parte dos fragmentos que se des<strong>in</strong>tegraram<br />

de uma realidade cultural, também estilhaçada pelo sistema até então imperativo,<br />

de uma só voz, sistematizado no olhar plural dos cronistas, para “um<br />

confronto entre vontade de poder do descobridor e disponibilidade gratuita<br />

do <strong>in</strong>dígena” (Chamie, 2002, p.43). Para se chegar à nova fala, esses dois<br />

cam<strong>in</strong>hos se tocam “numa encruzilhada obrigatória”.<br />

O primeiro a ser parodiado é Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha, do qual tomou posse<br />

de trechos da Carta de Achamento. Quatro poemas utilizam recortes do<br />

documento, como quadros emersos, a<strong>in</strong>da limitados, da primeira visão do<br />

país recém-descoberto. O que se nota, a pr<strong>in</strong>cípio, é que o nome do autor da<br />

carta sofre alteração em favor de uma nova leitura. O título anuncia: PERO<br />

VAZ CAMINHA, e não “de Cam<strong>in</strong>ha”, como nos manuscritos e textos<br />

ofi ciais. Tal artifício, segundo Feitosa (1999, p.63), “é fruto da ironia que<br />

sequestrou o de para emancipar o vocábulo da locução à condição de verbo e<br />

efetuar a ambiguidade do nome”. Cam<strong>in</strong>har é, sem dúvida, o que a própria<br />

obra oswaldiana determ<strong>in</strong>a em sua disposição. Abre-se com a perspectiva<br />

do descobrimento do Brasil, para, fechar-se, simbolicamente, com outro<br />

descobrimento, o do autor em relação a seu país, como se vê no decorrer da<br />

seção LOYDE BRASILEIRO, em que as imagens do Brasil dizem por si,<br />

de sua grandeza, e da vontade do eu poético vivenciar o que há.<br />

O “Cam<strong>in</strong>ha” está relacionado, então, à expansão do olhar sobre a própria<br />

terra, que agora é focada por um facho que <strong>in</strong>cide numa fi ssura que<br />

vai além da superfície romântica, ou exótica, nimbada pelos viajantes, mas<br />

presente no “progresso de São Paulo” (Andrade, 2003, p.193), nos “discursos<br />

de 22 câmaras de deputados/Silêncio sobre o mar do Equador/Perto de<br />

Alfa e de Beta/Perdão dos analfabetos que contam casos/Acaso” (ibidem,<br />

p.195). A poesia “cam<strong>in</strong>ha” por outra rota, não mais marítima, mas cultural<br />

e ideológica, de redescoberta, como se faz vista em “canto de regresso à


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 329<br />

pátria”, paródia à “Canção do Exílio”, em que a saudade se mistura a elementos<br />

de grandeza da pátria, sem a melancolia do autor romântico, revest<strong>in</strong>do<br />

a canção de uma visada irônica ao elencar, dentre outros, que “m<strong>in</strong>ha<br />

terra tem mais terra”:<br />

M<strong>in</strong>ha terra tem mais rosas<br />

E quase que mais amores<br />

M<strong>in</strong>ha terra tem mais ouro<br />

M<strong>in</strong>ha terra tem mais terra (ibidem, p.193)<br />

Em “a descoberta”, como o próprio vocábulo aponta, enfeixa o acontecimento<br />

da descoberta. O texto poético assume o andamento narrativo do<br />

texto do escrivão, mantendo algumas características da escrita do português<br />

arcaico, como “Paschoa” e “houvemos vista”:<br />

Seguimos nosso cam<strong>in</strong>ho por este mar de longo<br />

Até a oitava da Paschoa<br />

Topamos aves<br />

E houvemos vista de terra (ibidem, p.107)<br />

Na versão de Cam<strong>in</strong>ha (Cortesão, 2003, p.91-2) lê-se:<br />

e assim seguimos nosso cam<strong>in</strong>ho, por este mar, de longo, até que, terça feira das<br />

Oitavas de Páscoa, que foram v<strong>in</strong>te e um dias de abril, estando da dita ilha obra<br />

de 660 ou 670 léguas, segundo os pilotos diziam, topamos alguns s<strong>in</strong>ais de terra,<br />

os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os mareantes chamam<br />

Botelho, assim como outras a que dão nome de rabo-de-asno. E quartafeira<br />

segu<strong>in</strong>te, pela manhã topamos aves a que chamam fura-buxos.<br />

Neste dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! (grifo nosso)<br />

Como se nota, as frases do escrivão são recortadas de pontos dist<strong>in</strong>tos e<br />

formam um novo texto. A porta de entrada para se reconhecer o campo da<br />

ironia que o texto pontua encontra-se no título. A retirada da preposição<br />

de do sobrenome do autor faz que a leitura redirecione o contexto impresso<br />

na visão do cronista, transformando o sobrenome em verbo e o nome em<br />

frase. Suprimir a preposição coloca algo fora de seu lugar, portanto, (des)


330 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

encam<strong>in</strong>ha a maneira de ler e de <strong>in</strong>terpretar. Com isso, cam<strong>in</strong>ha passa a <strong>in</strong>terferir<br />

no andamento do próprio sentido diacrônico do texto. O que era,<br />

no passado, descrição do nascimento das terras brasílicas, sob os auspícios<br />

da descoberta marítima, passa a iconizar os fragmentos de uma cultura que,<br />

<strong>in</strong>dustrializada, também fragmenta o homem moderno. Antes de tudo, imprime<br />

o sentido que desliza em direção ao próprio sentido do “ir e vir” do<br />

discurso e não das viagens do cronista. Na visualidade gráfi ca do poema,<br />

isso é notório na disposição dos recortes do texto descritivo em versos de<br />

medida irregular, dispostos na forma de quadra tradicional, e deslocados<br />

de seu título. Retirados de um texto protocolar, os versos “vão e vêm”, entrelaçando<br />

passado e presente e projetando uma nova Idade do Ouro, pelo<br />

viés antropofágico.<br />

É possível, então, visualizar na ironia estabelecida, que, ao trazer o texto<br />

do cronista para a atualidade, dessacraliza por meio do “deslocamento”, segundo<br />

Sant’Anna (1991), um discurso elevado. Ou a<strong>in</strong>da, o texto paródico<br />

de Oswald teria a função, a partir da dessacralização, de dar cont<strong>in</strong>uidade,<br />

pois, como propõe Hutcheon (1989), o processo de transferência, presente<br />

na arte moderna, reorganiza o passado. Sendo assim, diz a autora, a paródia<br />

opera “como um método de <strong>in</strong>screver a cont<strong>in</strong>uidade, permit<strong>in</strong>do embora<br />

a distância crítica” (ibidem, p.32). Em sua ambivalência, “mesmo ao escarnecer,<br />

a paródia reforça; em termos formais, <strong>in</strong>screve as convenções escarnecidas<br />

em si mesmas, garant<strong>in</strong>do, consequentemente, a sua existência<br />

cont<strong>in</strong>uada” (ibidem, p.97).<br />

É preciso compreender que, para <strong>in</strong>screver essas convenções em sua<br />

obra, Oswald <strong>in</strong>veste-se, também, segundo Chamie (2002, p.81), de um<br />

duplo papel: “o Oswald-poeta e o Oswald/co-autor [...]. O Oswald-poeta<br />

exercerá o papel de persona <strong>in</strong>dígena. O Oswald/co-autor assumirá o papel<br />

de narrador coadjuvante de Cam<strong>in</strong>ha”. Nesse caso, em que há ambivalência<br />

também, o poeta (persona <strong>in</strong>dígena) “tomou-se de um tempo mítico, no<br />

qual se s<strong>in</strong>cronizam o passado, o presente e o futuro do tempo cronológico”.<br />

Assim, o discurso protocolar do cronista, constituído por frases coordenadas<br />

e subord<strong>in</strong>adas, pronomes relativos e constantes <strong>in</strong>tercalações explicativas,<br />

oferece ao “Oswald-cronista e co-autor” a possibilidade de desembaraçar<br />

esse efeito retórico para narrar o mesmo efeito da descoberta.<br />

Para alcançar tal objetivo, o cam<strong>in</strong>ho será o “da <strong>in</strong>ocência e da ignorância”<br />

do primitivo, no estágio anterior à <strong>in</strong>vasão. Isso parece visível, a pr<strong>in</strong>cípio,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 331<br />

uma vez que o poeta pau-brasil <strong>in</strong>sere-se em tal projeto. Mas, se considerada<br />

a Carta como um documento, que imprime ideais de repressão e arbítrio<br />

por meio do discurso do colonizador, alarga a visão do movimento, pois ir<br />

à pré-história, desconstruí-la, e chegar a uma cultura antropofágica, torna<br />

o texto de Pau-brasil híbrido, pela presença do texto matriz, e orig<strong>in</strong>al, pelo<br />

resultado da escavação realizada, que o legitima como obra <strong>in</strong>dividual do<br />

autor.<br />

Pode-se afi rmar, então, que as estratégias de apropriação, como a paródia,<br />

a colagem e a citação, não são tomadas de empréstimo meramente.<br />

Acima disso, entende Chamie (2002, p.87), “está a concepção de uma cultura<br />

primitiva que quer fazer ressurgir sua realidade genuína, encoberta e simulada<br />

no corpo do discurso de apropriação do colonizador”. Na condição<br />

de co-autor do cronista, o poeta retoma a fala do primitivo, deturpada pelo<br />

<strong>in</strong>vasor, que, segundo o mesmo crítico, construiu-se a partir “da paródia,<br />

da citação e da colagem da fala e dos gestos nativos, lidos equivocadamente”<br />

(ibidem, p.88). Se o cronista da Coroa parodiou o <strong>in</strong>dígena porque “isto<br />

tomávamos nós por assim o desejarmos” (Cortesão, 2003, p.97), a poesia<br />

Pau-brasil resgata do subterrâneo da Carta a orig<strong>in</strong>alidade da fala e dos gestos,<br />

<strong>in</strong>equivocamente. Por isso, a leitura de Pau-brasil não pode ser <strong>in</strong>gênua<br />

e feita apenas no âmbito da <strong>in</strong>tertextualidade, pois exige a compreensão de<br />

que o emaranhado do discurso ofi cial e culto (gramaticalizado) requer uma<br />

“raspagem” no texto, como sugere Chamie (2002, p.89), para remanescer<br />

“a fala e o gesto, <strong>in</strong>cultos e destituídos de quaisquer elocubrações letradas”,<br />

confer<strong>in</strong>do-lhe a confi guração de poesia híbrida e orig<strong>in</strong>al, ao mesmo tempo.<br />

Essas duas características podem ser denotadas na l<strong>in</strong>guagem escassa de<br />

conjunções e preposições, e em algumas m<strong>in</strong>úcias que o texto de Pau-brasil<br />

traz em sua estrutura. No discurso do <strong>in</strong>vasor ocorre um desdobramento<br />

de palavras e explicações, de forma l<strong>in</strong>ear, como se nota no trecho: “e assim<br />

seguimos nosso cam<strong>in</strong>ho, por este mar, de longo, até que, terça feira<br />

das Oitavas de Páscoa” (Cortesão, 2003, p.91). Nele, tempo e espaço estão<br />

defi nidos, segundo o saber do cronista, enquanto no poema “A descoberta”<br />

tais elementos são elim<strong>in</strong>ados. O que prevalece é, sem dúvida, o tempo e o<br />

espaço míticos, abr<strong>in</strong>do um leque de signifi cados que recaem na pluralidade<br />

da palavra “descoberta”, primeiramente alusiva à terra, como também,<br />

a qualquer outra <strong>in</strong>stância, que demande a surpresa, como se dá no próprio<br />

fazer poético de Oswald.


332 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

O segundo verso: “até a Oitava da Paschoa”, também desdobrado em<br />

explicações pelo cronista, assume, no poema, fronteiras imprevisíveis de<br />

signifi cado, pois não se aloja, necessariamente, no mito religioso cristão,<br />

mas sugere, pela rede sêmica, correlações com a imagem da travessia, implícita<br />

no ritual de retorno à vida, ou seja, simbolicamente, retorno ao primitivo,<br />

para sobrelevar o futuro da sociedade antropofágica.<br />

A mesma <strong>in</strong>tensidade de abertura polissêmica dá-se nos dois últimos<br />

versos, que se desnovelam das marcas temporais e geográfi cas da Carta<br />

para defi nirem em torno das palavras “aves” e “terra” uma l<strong>in</strong>ha que perfaz<br />

o cam<strong>in</strong>ho a “Oitava da Paschoa” e “mar de longo”, como em ordem decrescente<br />

de imagens oriundas da língua do <strong>in</strong>vasor, v<strong>in</strong>da de além-mar até<br />

encontrar o sentido puro dos que foram parodiados em seus gestos: “mar<br />

de longo > Oitava de Paschoa > aves > terra”. Assim, a escrita protocolar,<br />

fi liada à cultura erudita, é escavada degrau a degrau. Dá vistas à origem de<br />

uma cultura primitiva e subverte a gramática para descer “à realidade da<br />

taba”, substitu<strong>in</strong>do “to be or not to be” por “tupi or not tupi”.<br />

No segundo poema, “os selvagens”, eleva-se a dimensão do olhar do<br />

cronista em relação aos nativos: “fl agra o habitante natural da terra descoberta,<br />

colhendo deste os seus traços identifi cadores (a <strong>in</strong>ocência, o encantamento<br />

e a genu<strong>in</strong>idade)” (Chamie, 2002, p.65).<br />

Mostraram-lhes uma gal<strong>in</strong>ha<br />

Quase haviam medo della<br />

E não queriam pôr a mão<br />

E depois a tomaram como espantados (p.107)<br />

Diferente do bloco anterior, no qual as frases foram extraídas de fragmentos<br />

dist<strong>in</strong>tos dentro do texto, o excerto foi retirado na sequência, como<br />

se pode perceber no trecho da carta:<br />

Mostraram-lhes um papagaio pardo que o capitão traz consigo; tomaram-no<br />

logo na mão e acenaram para a terra, como quem diz que os havia ali. Mostraramlhes<br />

um carneiro: não fi zeram caso. Mostraram-lhes uma gal<strong>in</strong>ha; quase tiveram<br />

medo dela: não lhe queriam pôr a mão; a depois a tomaram como que espantados.<br />

Deram-lhe ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, farteis, mel e fi gos<br />

passados. Não quiseram comer quase nada daquilo; e, se alguma coisa prova-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 333<br />

ram, logo a lançavam fora. Trouxeram-lhes v<strong>in</strong>ho numa taça; mal lhe puseram a<br />

boca; não gostaram nada, nem quiseram mais. Trouxeram-lhes a água em uma<br />

albarrada. Não beberam. Mal a tomaram na boca, que lavaram, e logo a lançaram<br />

fora.<br />

Viu um deles umas contas de rosário, brancas; acenou que lhes dessem, folgou<br />

muito com elas, e lançou-as ao pescoço. Depois tirou-as e enrolou-as no<br />

braço e acenava para a terra e de novo para as contas e para o colar do Capitão,<br />

como dizendo que dariam ouro por aquilo.<br />

Isto tomávamos nós assim por assim o desejarmos. (Cortesão, 2003, p.96-7,<br />

grifo nosso)<br />

Ao estabelecer a tensão entre o passado e o presente, o poema é composto<br />

por algumas marcas que o faz preservar a semelhança sonora, mas<br />

o ritmo é alterado na fragmentação do texto em versos de metro irregular,<br />

considerando a expansão do quarto verso. Na ortografi a, grafa vocábulos<br />

como “gall<strong>in</strong>ha”, “quasi”, “della”, demarcando as características da Carta,<br />

com a escrita no português arcaico, que realça, no <strong>in</strong>terior do discurso do<br />

colonizador, a posse às avessas do discurso do apropriador e altera sua descrição<br />

e signifi cado.<br />

Além disso, o acréscimo da conjunção aditiva e, no terceiro verso, <strong>in</strong>sere<br />

um aspecto da coloquialidade, algo do presente do poema, próprio do dizer<br />

popular que acentua a repetição do conectivo e que legitima a fala dos<br />

dom<strong>in</strong>ados frente à gramática do dom<strong>in</strong>ador. A essa dupla presença de l<strong>in</strong>guagens<br />

na paródia, Chamie (2002, p.14) percebe duas vertentes da visão<br />

oswaldiana:<br />

uma é a vertente da percepção culta e gramaticalizada, de expressão e l<strong>in</strong>guagem<br />

submissas às regras ritualísticas do saber escolarizado. Outra é a vertente<br />

da percepção <strong>in</strong>culta, elementar e primitiva que, livre e anterior às convenções<br />

do saber, age e <strong>in</strong>terage, no <strong>in</strong>terior do discurso letrado, para ali deslocar e <strong>in</strong>verter<br />

suas signifi cações aparentes e supostas.<br />

As estratégias de “desentranhamento” do primitivo dentre o soterramento<br />

do discurso do <strong>in</strong>vasor acontecem com um expoente. Agora, o poeta<br />

assume a veste tupi para fazer emergir sua essência, e não a <strong>in</strong>vestida pelo<br />

civilizador, que a quer <strong>in</strong>fundida a partir de sua cultura. No trecho da Carta,


334 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

do qual é escavado o poema, nota-se a articulação do colonizador em <strong>in</strong>serir<br />

sua essência civilizada numa “suposta” não existência <strong>in</strong>dígena. As evidências<br />

elevam-se nas ações “de conquista do to be <strong>in</strong>vasor”, como aponta<br />

Chamie (2002, p.99), que se esboçam em dois pontos: o de “aproximação”<br />

e o de “distanciamento” entre colonizador e colonizado. Isso é resultado do<br />

confronto da “oferta histórica” e da “resistência nativa”. Desse modo, uma<br />

série de ofertas de essência civilizada é oposta às reações do nativo, que, de<br />

forma plural, obedece aos impulsos de sua natureza. No jogo entre sedutor/<br />

seduzido, o que permanece <strong>in</strong>alterado no campo do nativo são o temor e o<br />

encantamento.<br />

A cada oferta, um matiz de reação, reiterando a leitura do <strong>in</strong>vasor dos<br />

gestos e atos nativos, conforme lhe convém: “isto tomávamos nós nesse<br />

sentido, por assim o desejarmos” (Cortesão, 2003, p.97). As reações do <strong>in</strong>dígena<br />

encontram respaldo no signifi cado do que atribuem às ofertas, desde<br />

o des<strong>in</strong>teresse, como se nota a apresentação do papagaio pardo, que o tomam<br />

à mão e apontam para a terra, como se já o conhecessem, e o carneiro,<br />

que não suscitou qualquer mudança de reação, quebrando a expectativa do<br />

<strong>in</strong>vasor, que acreditava provocar admiração.<br />

E assim, sucede-se a <strong>in</strong>diferença, diante dos alimentos preparados e<br />

transformados pela experiência civilizada, como o pão, peixe cozido, confeitos,<br />

fartéis, mel e fi gos passados, como também a recusa do v<strong>in</strong>ho e da<br />

água. Ao apresentar as “contas do rosário”, há a manifestação de um gesto<br />

concomitante de “<strong>in</strong>teresse – troca”, pois, ao apropriar-se delas, abre a possibilidade<br />

de suposta troca por ouro.<br />

O trecho retirado por Oswald é de precisão cirúrgica, ao perceber dois<br />

aspectos fundamentais do sentimento <strong>in</strong>dígena: o temor e o espanto. Inicialmente,<br />

há o temor frente ao <strong>in</strong>usitado que lhe é oferecido, e este se transforma<br />

em coragem. O espanto, oriundo da ignorância natural, leva o nativo<br />

ao estado de encantamento. Assim, no poema, as duas reações conjugamse:<br />

“Mostraram-lhes uma gal<strong>in</strong>ha / Quase tiveram mêdo dela / E não queriam<br />

por a mão / E depois a tomaram espantados” (Andrade, 2003, p.107).<br />

Como se nota, os três primeiros versos abrigam o temor, um “quase medo”<br />

da oferta, enquanto o último verso aloja o espanto em tomar para si o desconhecido.<br />

É preciso, a<strong>in</strong>da, retornar ao topo do poema e resgatar-lhe o título: “Os<br />

selvagens”. Quem é o selvagem de Oswald de Andrade? A resposta vem


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 335<br />

pela esclarecedora leitura que Chamie (2002) faz da proposta de representação<br />

do <strong>in</strong>dígena na obra do poeta pau-brasil, como líder do movimento<br />

antropófago e teórico. Para o crítico, o selvagem<br />

não é o índio emasculado pela História, com a idealização de sua bondade natural.<br />

Não. O selvagem de Oswald, possuído pelo temor e pelo espanto, tem a<br />

sua bondade natural medida pela <strong>in</strong>ocência de seus <strong>in</strong>st<strong>in</strong>tos, de sua liberdade<br />

feroz, de seu sentimento de v<strong>in</strong>gança ou de seu igualitarismo tribal. O índio<br />

brasileiro (ou o selvagem), nos moldes do perfi l oswaldiano, é, por isso, o de<br />

Montaigne e não o de Rousseau; é o que devora (o que deglute o português no<br />

corpo do bispo Sard<strong>in</strong>ha) e não o que concilia e muito menos o que vampiriza<br />

– como o índio do verde/amarelismo ou do movimento da anta – o sangue do<br />

<strong>in</strong>vasor. (ibidem, p.105)<br />

O ponto de <strong>in</strong>cisão, no qual se percebe a correspondência do índio de<br />

Montaigne, dá-se na arquitetura de um índio portador de qualidades mitológicas,<br />

que o fazem sujeito de um período anterior à História, na Idade<br />

do Ouro, portanto, e de sujeito, ao mesmo tempo, de uma nova Idade do<br />

Ouro, pós-histórica, como aponta o Manisfesto antropófago, mediada pela<br />

revolução caraíba. Próximo à fonte de Montaigne, Oswald consubstancia<br />

a imagem do canibal, contrário ao de Rousseau, matizado pela imag<strong>in</strong>ação<br />

retórica do “bom selvagem”. No âmbito dessa questão, Campos (2003,<br />

p.59-60) considera que o índio de Oswald, “nada t<strong>in</strong>ha a ver com ‘os índios<br />

conformados e bonz<strong>in</strong>hos de cartão-postal e de lata de bolacha’. [...]<br />

Tratava-se de um <strong>in</strong>dianismo às avessas, <strong>in</strong>spirado no selvagem brasileiro de<br />

Montaigne (Des Canibales), de um ‘mau selvagem’, portanto, a exercer sua<br />

crítica (devoração) desabusada contra as imposturas do civilizado”.<br />

Até aqui, fez-se um percurso pelo <strong>in</strong>terior do discurso da crônica de Pero<br />

Vaz de Cam<strong>in</strong>ha, passando pelo momento da “descoberta” e pelo primeiro<br />

contato com o “selvagem” em sua imediatez antropológica. No terceiro<br />

poema: “primeiro chá”, encontra-se a sugestão do que poderia ser a relação<br />

entre o <strong>in</strong>vasor e o dom<strong>in</strong>ado:<br />

Depois de dansarem<br />

Diogo Dias<br />

Fez o salto real (p.107)


336 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

O trecho-matriz, propício à escavação ao poeta pau-brasil, apresenta o<br />

segu<strong>in</strong>te:<br />

Além do rio, andavam muitos deles dançando, folgando, uns diante dos ou-<br />

tros, sem se tomar pelas mãos. E faziam-no bem. Passou-se então além do rio<br />

Diogo Dias, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer; e<br />

levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita. E meteu-se com eles a dançar, tomando-os<br />

pelas mãos; e eles folgavam e riam, e andavam com ele muito bem ao<br />

som da gaita. Depois de dançarem, fez-lhes ali, andando no chão, muitas voltas ligeiras<br />

e salto real, de que eles se espantavam e riam e folgavam muito. E conquanto<br />

com aquilo muito os segurou e afagou, tomavam logo uma esquiveza como de<br />

animais monteses, e foram-se para cima. (Cortesão, 2003, p.106, grifo nosso)<br />

O primeiro ponto relevante no texto do cronista é a característica lúdica<br />

do <strong>in</strong>dígena, embora o texto tenha a simulação como pr<strong>in</strong>cipal artifício, ou<br />

seja, <strong>in</strong>terpreta os gestos a partir do ponto de vista do colonizador. No poema,<br />

duas l<strong>in</strong>has se projetam na signifi cação do termo “chá”, presente no<br />

título, e na expressão “salto real”. O chá é um emblema paradigmático que<br />

congrega a convivência civilizada, e está, portanto, ligado ao “<strong>in</strong>termezzo<br />

das mãos dadas”, conforme sugere Chamie (2002, p.208). Isso se explica<br />

pelo motivo que, na crônica, os <strong>in</strong>dígenas dançavam “sem se tomar pelas<br />

mãos”, o que s<strong>in</strong>aliza para o estado de “desarticulação social” do “<strong>in</strong>dividualismo<br />

anárquico”, visto pelo <strong>in</strong>vasor como um ato gratuito e <strong>in</strong>consequente,<br />

sem qualquer fi nalidade. Nesse espaço vazio é que o colonizador impõe<br />

sua identidade, para preencher essa “suposta” falta de origem. Assim, o<br />

“chá”, <strong>in</strong>tervalo de confraternização, é escavado no ato de Diogo Dias, ao<br />

passar para “a outra banda do rio”, onde os dançantes entrelaçam as mãos<br />

e, sedutor e seduzido, comungam do mesmo ato.<br />

Observa-se nesse fato que o <strong>in</strong>vasor olha “sem ver o que se passa, para,<br />

com o ‘olhar fechado’ de sua cegueira protocolar, autoatribuir-se a missão<br />

de ordenar o desordenado, reunir o disperso, e <strong>in</strong>stituir um centro de<br />

referência obrigatória à suposta desordem anárquica do folguedo” (idem,<br />

p.206). Na tentativa de seduzir, para anular o outro, o <strong>in</strong>vasor também ressurge<br />

com “resíduos” do conquistado, o que aponta, de certa forma, para o<br />

homem “cordial” do futuro, confi gurado a partir das relações entre colonizador<br />

e colonizado.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 337<br />

O “salto real”, tomado em seu íntimo, no discurso do colonizador, é<br />

apenas uma habilidade apresentada em sessões circenses, como “salto mortal”,<br />

e objetiva divertir a plateia. Inserir a expressão no contexto da poesia<br />

Pau-brasil é <strong>in</strong>screvê-la num complexo jogo de assédio, em que o <strong>in</strong>vasor<br />

centraliza na ação dispersa da dança o seu passo decisivo na catequese, um<br />

ato <strong>in</strong>tencional que neutraliza a gratuidade da alegria <strong>in</strong>dígena.<br />

Além disso, o “salto” é “real”, que, lido isoladamente, remonta à “realeza”,<br />

da qual Diogo Dias era servidor. Desse modo, expande-se o signifi cado<br />

de um ato circense para um universo ideológico, no qual se abriga a célula<br />

mater do poema – a dom<strong>in</strong>ação – entrelaçada nas mãos dos <strong>in</strong>dígenas e nos<br />

discursos que agora <strong>in</strong>teragem: o do cronista, com um “olhar fechado”, mas<br />

certo de sua estratégia de sedução, e o do co-autor Oswald, transgressor<br />

em sua essência, capaz de romper o escudo da simulação. Assim, segundo<br />

Chamie, o preenchimento feito pela vontade do colonizador confi gura-se<br />

como “’assalto da realeza’ à presa (<strong>in</strong>dígena)” (ibidem, p.211). Entre o “espanto”<br />

e a “esquiveza” do nativo <strong>in</strong>sere-se o não dito da Carta: depois de<br />

(os <strong>in</strong>dígenas) dançarem / Diogo Dias fez (o primeiro) “assalto” real. Ao se<br />

deixarem aliciar pela música da gaita e pelas piruetas do <strong>in</strong>vasor, o <strong>in</strong>dígena<br />

perde seu ritmo e, junto a ele, seu centro-referência, tornando-se vulnerável<br />

às gentilezas cordiais do colonizador, que, por meio do “chá” de sedução,<br />

desestabiliza o alicerce cultural.<br />

No quarto e último poema da HISTÓRIA DO BRASIL: “as men<strong>in</strong>as<br />

da gare”, no qual se faz a<strong>in</strong>da presente o duplo papel de Oswald, ocorre a<br />

transposição de tempo, da crônica de 1500 à atualidade do autor, 1924, ano<br />

de publicação de Pau-brasil:<br />

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis<br />

Com cabellos mui pretos pelas espadoas<br />

E suas vergonhas tão altas e tão sarad<strong>in</strong>has<br />

Que de nós as muito bem olharmos<br />

Não tínhamos nenhuma vergonha (p.108)<br />

O excerto de onde foi desentranhado é o segu<strong>in</strong>te:<br />

Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos<br />

muito pretos e compridos pelas espáduas, e suas vergonhas tão altas, tão cer-


338 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

rad<strong>in</strong>has e tão limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, não tínhamos<br />

nenhuma vergonha. [...] E uma daquelas moças era toda t<strong>in</strong>gida, de baixo a cima<br />

daquela t<strong>in</strong>tura; e certo era tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela<br />

não t<strong>in</strong>ha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais<br />

feições, fi zera vergonha, por não terem a sua como ela. (Cortesão, 2003, p.100)<br />

Do fragmento da narrativa gramaticalizada, que mostra um teor descritivo<br />

e uso abundante de advérbios e preposições, Oswald recria seu poema,<br />

desapropriando, na posse de sua fala de co-autor da Carta, o discurso torneado<br />

da retórica da crônica, que refl ete o cerco <strong>in</strong>sidioso na apropriação<br />

da cultura <strong>in</strong>dígena. A essa estratégia de enredamento, feita pelo <strong>in</strong>vasor,<br />

Oswald denom<strong>in</strong>a “lábia”, refer<strong>in</strong>do-se àquela retórica utilizada pelo mestre<br />

do artifício, Padre Vieira. Assim, na garimpagem que faz, o “torneio e<br />

circunlóquio”, próprios do discurso do <strong>in</strong>vasor, são desautorizados pelo<br />

poeta pau-brasil, num texto de verbalização substantiva. Isso se nota na<br />

comparação entre o andamento de “ali andavam entre eles três ou quatro<br />

moças, bem moças e bem gentis” (idem, ibidem), que, reescrito sob a égide<br />

do antropófago, elim<strong>in</strong>a as redundâncias a adereços num tom direto: “eram<br />

três ou quatro moças bem moças e bem gentis” (ibidem, 107-8). Nota-se no<br />

fragmento do poema que o adjetivo “nov<strong>in</strong>has”, qualifi cativo de “moças”, é<br />

substituído pela duplicação dos vocábulos “moças” e “bem”. Desse modo,<br />

as men<strong>in</strong>as da gare são, <strong>in</strong>equivocamente, “moças bem moças” e gentis<br />

“bem gentis”.<br />

A descrição redundante do cronista, que apresenta os “cabelos muito<br />

pretos e compridos pelas costas”, recai no fato de que se são compridos, obviamente<br />

escorrem pelas costas. Semelhante aspecto ocorre com a descrição<br />

das “suas vergonhas, tão altas e tão cerrad<strong>in</strong>has e tão limpas das cabeleiras”,<br />

que reforça a exposição das vergonhas, pois, se facilitam a visão do cronista,<br />

é porque estão limpas da cabeleira e permitem ser vistas “cerrad<strong>in</strong>has”.<br />

No poema, elim<strong>in</strong>ado o artefato da redundância explicativa, a construção<br />

imagética das “índias-men<strong>in</strong>as” proporciona um avanço no tempo –<br />

pós-histórico – e no espaço – a gare. Esta, segundo Chamie (2002, p.242),<br />

é “símbolo claro do progresso técnico do homem que, segundo a proposta<br />

pau-brasil e antropofágica de Oswald, deve avivar e concentrar, em si, as<br />

virtudes primitivas (<strong>in</strong>ocência, alegria e sensualidade) do selvagem que foi<br />

e do bárbaro tecnizado que poderá vir a ser”.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 339<br />

Visto por esse viés, o poema faz ocultar o discurso moralista da crônica<br />

para emergir uma atitude isenta de culpa. No texto protocolar, as comparações<br />

partem, primeiramente, do cronista e de seus amigos tripulantes, em<br />

direção às mulheres <strong>in</strong>dígenas, mas, envolvem, em segundo plano, uma visão<br />

que as mulheres portuguesas teriam, se as olhassem também: “tão graciosa,<br />

que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhes tais feições, fi zera<br />

vergonha, por não terem a sua como ela” (Cortesão, 2003, p.100).<br />

Infere-se, assim, que, aliadas à avaliação que as portuguesas fariam, duas<br />

leituras se depreendem: a de que as moças não se sentiam envergonhadas de<br />

serem olhadas e a de que o cronista e seus companheiros não t<strong>in</strong>ham pudor<br />

por isso. Tais afi rmações estariam <strong>in</strong>seridas no aspecto dúbio da culpa e do<br />

pecado, <strong>in</strong>vestidos pela cultura do <strong>in</strong>vasor, diante da <strong>in</strong>ocência e da pureza<br />

das mulheres <strong>in</strong>dígenas. Seduzidos por esse quadro, olham sem remorso,<br />

uma vez que, na recente terra descoberta, a atitude não lhe seria obscena ou<br />

<strong>in</strong>discreta.<br />

A substituição de “cerrad<strong>in</strong>has” por “sarad<strong>in</strong>has”, num tom mais coloquial,<br />

transfi gura a vergonha do texto protocolar em “saúde, vigor e frescor<br />

des<strong>in</strong>ibidos, qualidades apropriadas ao alegre <strong>in</strong>st<strong>in</strong>to pau-brasil” (Chamie,<br />

2002, p. 243), que se vê expresso no último verso: “não tínhamos nenhuma<br />

vergonha”, desalojando o jogo culpa-vergonha da crônica. Desse<br />

modo, o poema atualiza o tempo mítico num momento do tempo histórico<br />

que a palavra “gare” suscita. Sem esse vocábulo, seria apenas um trecho<br />

adaptado, porém, sua <strong>in</strong>serção no título simboliza o espaço em que o bárbaro<br />

tecnizado viveria sua liberdade como homem, cenarizado nas men<strong>in</strong>as<br />

nuas, exib<strong>in</strong>do seu sexo sem culpa nem pecado, e em seus observadores,<br />

que também as olhariam isentos de moralismos.<br />

Se, no primeiro poema, <strong>in</strong>icia-se a escavação em busca do tempo mítico;<br />

no quarto, por meio da gare, dá-se a conquista do tempo histórico, mediado<br />

pelo ritual da travessia do segundo e do terceiro poemas, que servem de <strong>in</strong>termezzo,<br />

tal qual o entrelaçamento das mãos de Diogo Dias com os <strong>in</strong>dígenas.<br />

Como a estrada de ferro, a que a palavra “gare” remete seu signifi cado<br />

primeiro, os quatro poemas, tomados aqui como referência, emblematizam<br />

um ciclo da história do Brasil, conforme as estações cósmicas, pelas quais<br />

o poeta pau-brasil percorreu, desembaraçando um discurso s<strong>in</strong>uoso e protocolar,<br />

imposto à nova terra, para denunciar o fi m da velha vergonha do<br />

código patriarcal outorgado pelo <strong>in</strong>vasor.


340 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Poemas-referência<br />

PERO VAZ CAMINHA<br />

a descoberta<br />

Seguimos nosso cam<strong>in</strong>ho por este mar de longo<br />

Até a oitava da Paschoa<br />

Topamos aves<br />

E houvemos vista de terra<br />

os selvagens<br />

Mostraram-lhes uma gal<strong>in</strong>ha<br />

Quase haviam medo della<br />

E não queriam pôr a mão<br />

E depois a tomaram como espantados<br />

primeiro chá<br />

Depois de dansarem<br />

Diogo Dias<br />

Fez o salto real<br />

as men<strong>in</strong>as da gare<br />

Eram três ou quatro moças bem moças e bem gentis<br />

Com cabellos mui pretos pelas espadoas<br />

E suas vergonhas tão altas e tão sarad<strong>in</strong>has<br />

Que de nós as muito bem olharmos<br />

Não tínhamos nenhuma vergonha (p.107-8)


PARTE V<br />

TRANSFIGURAÇÃO E EXPERIÊNCIA ESTÉTICA:<br />

A NARRATIVA PLURIDISCURSIVA<br />

DO INDIGENISMO LITERÁRIO


Apresentam-se, nesta parte, as obras que representam, com maior ênfase,<br />

o conceito de <strong>in</strong>digenismo literário, sob a vertente crítica, consideradas<br />

as características que pontuam acerca da visão do <strong>in</strong>dígena, como também<br />

a particularidade da construção dos elementos fundamentais em torno do<br />

conceito. Assim, <strong>in</strong>icia-se por Quarup, de Antonio Callado, publicado em<br />

1967, destacando da narrativa o elemento central para este excurso de leitura:<br />

o quarup realizado no X<strong>in</strong>gu. Dele desencadeiam-se os demais segmentos<br />

narrativos que se encontram ou se tangenciam por diferentes motivos,<br />

como se verá na análise do texto.<br />

Para o presente estudo, prioriza-se a biografi a da personagem Nando,<br />

construída no entorno da viagem ao X<strong>in</strong>gu, que fornece elementos para a compreensão<br />

do pensamento elaborado frente à questão <strong>in</strong>dígena. Nando pretende<br />

formar no X<strong>in</strong>gu, por meio da catequese católica, uma sociedade justa e<br />

harmônica, tendo como comunidade escolhida os nativos protegidos pelo Estado.<br />

Interessa-nos sua l<strong>in</strong>ha narrativa em razão de agregar elementos e personagens<br />

que atuam no sentido de afl orar as manifestações da cultura <strong>in</strong>dígena,<br />

e também de promover a <strong>in</strong>tersecção entre a l<strong>in</strong>ha narrativa de Francisca e<br />

Fontoura, duas personagens primordiais para visualizar o deslocamento dos<br />

espaços que confl uem para a representação do índio. Dadas essas circunstâncias,<br />

toma-se, então, como ponto de partida, a leitura de sua biografi a para ligá-la<br />

às demais que suscitam aspectos pert<strong>in</strong>entes ao enlevo do signifi cado do<br />

quarup x<strong>in</strong>guano e suas manifestações de espelhamento dentro da narrativa.<br />

Em Maíra, de Darcy Ribeiro, publicado em 1976, são desveladas as biografi<br />

as <strong>in</strong>dividuais e coletivas com mais profundidade do que em Quarup,


344 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

pelo fato de a obra exigir uma leitura mais detida frente à sua composição<br />

fragmentada. Se na obra de Callado é possível ter uma visão l<strong>in</strong>ear na<br />

formação do enredo e das personagens, em Maíra é necessário somar os<br />

conhecimentos espalhados ao longo dos 66 capítulos para dar visibilidade<br />

ao conteúdo da obra. Isso permitiu a Angulo (1988, p.7) considerar Maíra<br />

“um romance misto”, dadas as três l<strong>in</strong>has narrativas que o estruturam:<br />

“o mítico mairum, de herói coletivo”, “o mundo branco, também de herói<br />

coletivo, porém desprovido de identidade” e “o mundo de ligação, o da biografi<br />

a <strong>in</strong>dividual, constituído por ‘heróis problemáticos’”.<br />

Considerando a estrutura arquitetada na obra de Darcy Ribeiro, optouse<br />

por desnovelar os fi os narrativos com o <strong>in</strong>tuito de compreender o universo<br />

<strong>in</strong>dígena tecido da concepção mítica do nascimento dos gêmeos Maíra e<br />

Micura aos episódios que envolvem a sociedade dita não-índia. Uma viagem<br />

que percorre tanto o ritmo da cultura marg<strong>in</strong>alizada e mágica, como a<br />

metamorfose do corpo, projetada nas l<strong>in</strong>has de Isaías e Alma.<br />

No conto Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, publicado em 1969,<br />

elege-se o movimento da personagem na narrativa, no que diz respeito ao<br />

espaço cultural em que transita, para perceber como se processa a fi guração<br />

do <strong>in</strong>dígena. Por meio dele, devolve-se ao mestiço sua condição <strong>in</strong>dígena, o<br />

que, na estrutura do conto, engrena os demais núcleos confl itantes, gerando,<br />

assim, o embate <strong>in</strong>tracultural que desemboca no tiro agônico e simbólico<br />

da morte de sua cultura. Essa é, sem dúvida, a obra que mais se aproxima<br />

do <strong>in</strong>dígena propriamente, pois dá a ele a voz, que lhe fora suprimida nos<br />

textos anteriores, nos quais o narrador tem o papel de desvelar os cam<strong>in</strong>hos<br />

da fi guração pelos seus olhos.<br />

Há, no entanto, nas três obras, um fi o condutor que as <strong>in</strong>sere aqui neste<br />

conjunto. Embora teçam de forma diferenciada a fi gura do <strong>in</strong>dígena, fazemna<br />

emergir, em comum, do aspecto mítico, em maior ou menor grau, para<br />

deslizar em direção a outras dimensões. Quarup centra-se na imagem do<br />

ritual de celebração dos mortos e desemboca no aspecto político brasileiro<br />

da ditadura, da morte de Getúlio Vargas e dos confrontos entre camponeses<br />

e donos de engenho no nordeste, dentre outros, que revelam a cont<strong>in</strong>uação<br />

do mito nas imagens literárias e no plano histórico. A ação expressa na<br />

experiência do mito x<strong>in</strong>guano percorre a obra em suas imagens simbólicas<br />

e repercute nas ações das personagens que reeditam seu signifi cado. Notavelmente,<br />

esse aspecto está no episódio do jantar oferecido por Nando à


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 345<br />

memória de Lev<strong>in</strong>do, no Recife, após seu retorno do centro do país e na luta<br />

entre convidados e opositores. Entende-se que a memória do guerrilheiro<br />

é celebrada tal qual na manifestação <strong>in</strong>dígena, resguardadas as diferenças<br />

histórico-sociais em que se erige. Além da d<strong>in</strong>âmica de comb<strong>in</strong>ação de episódios,<br />

personagens e situações em que se reconhece a atualidade do mito,<br />

há que se destacar o diálogo estabelecido com o aspecto cotidiano subentendido<br />

na estrutura em razão do contexto histórico e sociocultural.<br />

As <strong>in</strong>fl exões modifi cadoras do esquema mítico orig<strong>in</strong>al são as molas confl<br />

itantes que vão guiar a narrativa em sua solução. Em Quarup, por exemplo,<br />

a identidade de Nando resolve-se da esfera <strong>in</strong>dividual para a coletiva,<br />

no episódio do jantar em que, comendo e bebendo, antropofagicamente,<br />

Lev<strong>in</strong>do assume seu nome e sua condição de guerrilheiro. À maneira do<br />

quarup <strong>in</strong>dígena, o jantar dá, então, a simbiose entre mito e sociedade, uma<br />

solução encontrada pela fi cção para o caráter de verdade simbólica.<br />

Outro exemplo vem de Maíra, ao atualizar o mito dos gêmeos nos fi lhos<br />

de Alma, encontrada morta junto a eles na praia do Iparanã, estrategicamente<br />

no primeiro capítulo, para recuperar, ao longo da narrativa, a orig<strong>in</strong>alidade<br />

da criação e da morte dos deuses Maíra e Micura, como representantes<br />

do bem e mal e <strong>in</strong>stituídos de poderes na cosmogonia mairuna. A<br />

dualidade implícita no mito está associada, também, à personagem Isaías,<br />

enredada em seus dois lados confl itantes, o de ser índio e o de ser missionário<br />

educado sob concepções católicas. Nos exemplos de Quarup e Maíra,<br />

a solução encontrada para o confl ito vem da vertente simbólica, seja pelo<br />

traço tênue que a liga ao ritual primitivo, ou pela importância que assume<br />

a fi gura mítica na atualização do enredo. Percebem-se, em ambos os textos,<br />

modifi cações quanto ao alcance simbólico das ações das personagens,<br />

nas quais é <strong>in</strong>serido certo tipo de histórias que lhe alteram a confi guração.<br />

São imagens renovadas, construídas de acordo com o conjunto cultural do<br />

presente, das quais os escritores lançam mão para conservar alguns traços<br />

pertencentes ao campo ritualístico.<br />

O texto rosiano, por sua vez, além de reeditar as imagens do mito primitivo<br />

do fogo, trata a questão do nativo com um grau maior de elaboração<br />

estética, articulada na própria voz <strong>in</strong><strong>in</strong>terrupta do narrador-protagonista,<br />

senhor do conhecimento em relação às onças. Nesse aspecto, pode-se considerar<br />

que a atualização do mito coexiste com a representação do <strong>in</strong>dígena,<br />

de dentro para fora, de sua voz para o contexto do outro. A busca pela


346 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

identidade é traçada em direção à oralidade, da qual o mestiço se apropria<br />

como <strong>in</strong>strumento de retorno à sua condição primitiva. Voltar a ser onça (ao<br />

totem) signifi ca retornar às suas raízes clânicas, ao pr<strong>in</strong>cípio de sua essência<br />

como índio.<br />

Para tanto, o percurso do narrador-protagonista é cuidadosamente arquitetado<br />

dentro dos limites da l<strong>in</strong>guagem que o cerca: o mundo civilizado,<br />

com o qual não possui afi nidades; o tupi, do qual é herdeiro de sua ascendência<br />

materna, mas afastado pela <strong>in</strong>terdição do civilizado, e o universo<br />

mítico, o da onça, com o qual encontra sua identidade. Das três obras escolhidas<br />

para formar este núcleo, o conto rosiano possui os elementos que<br />

caracterizam, com excelência, o olhar renovado acerca da cultura <strong>in</strong>dígena.<br />

Isso se <strong>in</strong>fere da preocupação em outorgar ao nativo o direito à voz, mesmo<br />

que seu retorno ao mundo totêmico seja impedido pela morte, um artifício<br />

de l<strong>in</strong>guagem entendida como a morte de sua cultura, agônica, silenciosa,<br />

como o tiro disparado pelo <strong>in</strong>terlocutor, que ouve a história do mestiço no<br />

tempo decorrido de uma noite.<br />

As três obras representam, dessa maneira, o deslocamento do conceito<br />

de <strong>in</strong>dianismo para a esfera do <strong>in</strong>digenismo literário, no qual o <strong>in</strong>dígena é<br />

posto em constante confl ito perante a comunidade nacional que não o <strong>in</strong>tegra<br />

como cidadão e não o reconhece como povo diferenciado em seus costumes<br />

e crenças. Do conjunto de fatores <strong>in</strong>tr<strong>in</strong>cados pelo jogo econômico e<br />

cultural emerge a representação de um índio desarticulado de sua mentalidade<br />

primitiva e acorrentado a uma condição de desajustamento, o que o<br />

caracteriza como “genérico”, na expressão de Ribeiro (1996).


1<br />

QUARUP: O BRASIL-CENTRO PELAS<br />

VEREDAS DO JOGO E MÁSCARAS<br />

(ANTONIO CALLADO)<br />

Quarup saiu grande na p<strong>in</strong>tura e no desenho, nas<br />

m<strong>in</strong>úcias e no todo, em fundo e na superfície. Colosso.<br />

João Guimarães Rosa<br />

A palavra quarup, 1 do Kamaiurá – kwaryp –, designa uma cerimônia sociorreligiosa<br />

<strong>in</strong>tertribal de celebração dos mortos, ligada ao ciclo mitológico<br />

de um herói cultural conhecido entre os povos <strong>in</strong>dígenas como Maivots<strong>in</strong><strong>in</strong><br />

(ou Mavuts<strong>in</strong><strong>in</strong> – Waytsó it – o antepassado dos índios do X<strong>in</strong>gu). Além da<br />

celebração da memória de um morto, pode-se atribuir, também, o sentido<br />

de festa da “ressurreição, de pranto e força, de luto e júbilo”, conforme en-<br />

1 No mito narrado pelos Kamaiurá aos <strong>in</strong>digenistas Cláudio e Orlando Villas-Bôas, Mavuts<strong>in</strong>im<br />

(o primeiro homem – Waytsó ìt) queria que os seus mortos voltassem à vida. Para isso,<br />

tomou três toros de madeira, p<strong>in</strong>tou-os e os adornou com penachos, colares, fi os de algodão<br />

e braçadeiras de penas de arara. Colocou-os no centro da aldeia, convidou o sapo-cururu e<br />

a cotia para cantarem junto aos Kuarup, enquanto os convidados comiam peixes e beijus. O<br />

objetivo de Mavuts<strong>in</strong><strong>in</strong> era de fazer com que os quarups virassem gente. Para isso, impediu<br />

a todos de verem tal metamorfose. Quando a transformação estava quase completa, ordenou<br />

que o povo saísse das casas para promover alegria. Somente os que haviam tido relação<br />

sexual com as mulheres deveriam permanecer em suas casas. Um, apenas, t<strong>in</strong>ha tido, e por<br />

curiosidade saiu. Assim, a metamorfose dos quarups não aconteceu e Muvots<strong>in</strong><strong>in</strong>, zangado<br />

profetizou: “– Está bem. Agora vai ser sempre assim. Os mortos não reviverão mais quando<br />

se fi zer Kuarup. Agora vai ser só festa”. Depois mandou que retirassem os toros de Kuarup<br />

dos buracos e, com os enfeites, fossem lançados na água ou no <strong>in</strong>terior da mata (cf. Villas-<br />

Bôas, 1984, p.118). O termo quarup quer dizer tronco ao sol, por isso a cerimônia representa,<br />

simbolicamente, o período em que as fi guras criadas em madeira são transformadas pelo Sol<br />

em pessoas.


348 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

tende Moraes (1983, p.16). Na obra homônima de Antonio Callado, são<br />

atualizados os rituais <strong>in</strong>dígenas simultaneamente às biografi as fi ccionais e<br />

históricas, confer<strong>in</strong>do-lhes, assim, o caráter de morte e renascimento, como<br />

se nota no episódio de Getulio Vargas, e na biografi a da personagem Nando<br />

em relação à memória de Lev<strong>in</strong>do, morto em luta a favor dos camponeses<br />

no Nordeste.<br />

É a partir do encontro dos signifi cados que molduram tanto o contexto<br />

da narrativa de Quarup, quanto a cosmogonia <strong>in</strong>dígena dos quarups que<br />

se pretende fazer a leitura da fi guração em torno do nativo e sua função<br />

no <strong>in</strong>terior dos elos narrativos. A necessidade de um recorte nessa refl exão<br />

deriva justamente da complexidade estampada nas <strong>in</strong>úmeras biografi as <strong>in</strong>dividuais<br />

e coletivas que se <strong>in</strong>terseccionam no enredo. Diante disso e da<br />

proposição que percorre este trabalho, faz-se mister recolher-se apenas às<br />

unidades signifi cativas que fi gurativizam o índio e as l<strong>in</strong>has que o ligam a<br />

um projeto de maior tensão dentro da obra.<br />

Publicado em 1967, Quarup assume o posto de divisor de águas entre<br />

a obra de Callado. Isso se deve às características centrais recorrentes, tais<br />

como a política, a história e a religiosidade. Ligadas a essas, estão a utopia,<br />

o desencanto e a ironia, características emersas de um olhar preciso do jornalista<br />

que <strong>in</strong>terpretou a realidade brasileira sem fazer dist<strong>in</strong>ção de classe<br />

social. As vertentes marcadas em sua fi cção constituem-se, antes de tudo,<br />

na dicotomia ausência/presença, vista desde suas produções jornalísticas.<br />

Segundo Jablonski (2005, p.72), essa manifestação se revela<br />

ora no fortalecimento da dimensão utópica, ora no seu esvaziamento; ora na<br />

<strong>in</strong>terpretação marxista da história, ora na identifi cação das forças retrógradas<br />

da realidade; ora na sugestão de que o potencial da humanidade levado a seu<br />

extremo traria fraternidade e igualdade sociais, ora na percepção de que este<br />

mesmo potencial levado ao extremo traria uma sociedade violenta e perversa.<br />

Suas narrativas são fomentadas por esse embate sociopolítico, oriundo<br />

de sua leitura do Brasil. Da experiência na Inglaterra e na França, onde trabalhou<br />

como repórter entre 1941 e 1947, resultou um apurado senso de nacionalidade<br />

ante os cam<strong>in</strong>hos que o país tomava depois da Segunda Guerra<br />

Mundial, colocando a fi cção como meio de declarar-se a favor da transformação<br />

social.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 349<br />

Assim edifi ca-se a narrativa de Quarup como uma aldeia vista de cima<br />

com suas <strong>in</strong>úmeras habitações dispostas em círculo, que guardam em si um<br />

signifi cado próprio, mas que <strong>in</strong>terferem de modo signifi cativo no resultado<br />

fi nal. Considerado como romance de “aprendizagem ou formação”, seu<br />

enredo abarca o período entre o governo Getulio Vargas, em torno de 1954,<br />

e culm<strong>in</strong>a no governo militar, em 1964, após a deposição de João Goulart,<br />

além de revisitar o período das torturas e perseguições da junta militar presidida<br />

por Castelo Branco. Os sete capítulos que compõem a obra conduzem<br />

a diferentes espaços, como se nota na forma circular que os enfeixa:<br />

Pernambuco ao Rio de Janeiro, ao X<strong>in</strong>gu e o retorno ao Nordeste.<br />

Nesse espaço geográfi co-histórico, encontram-se personagens da realidade<br />

brasileira e as fi ccionais, que circulam entre o debate político e existencial:<br />

a mudança de perspectiva da Igreja em relação às questões sociais,<br />

a luta de estudantes e camponeses, a revolução sexual, o fem<strong>in</strong>ismo, a proteção<br />

aos índios, a guerrilha, as drogas, dentre outros temas universais pontuados<br />

nos entremeios locais. Conforme Jablonski (2005, p.106), “Quarup,<br />

como romance, é produto da hibridação, um compósito das culturas branca,<br />

<strong>in</strong>dígena e dos discursos heterogêneos que constroem uma imagem do<br />

Brasil como país <strong>in</strong>completo, que está constantemente sendo <strong>in</strong>ventado”.<br />

Dentre o universo multifacetado de temas e de planos que se entrelaçam,<br />

encontra-se a biografi a <strong>in</strong>dividual e geradora da tensão maior, que desencadeia<br />

os demais núcleos confl itantes. É a saga do padre Nando, <strong>in</strong>iciada em<br />

Pernambuco, onde é defensor da causa das primeiras Ligas Camponesas que<br />

se organizam em torno do projeto de melhores condições de vida. Ali, <strong>in</strong>iciase<br />

sua outra missão, mais relevante na constituição da personagem, a de ir<br />

ao X<strong>in</strong>gu com o objetivo de transformar os <strong>in</strong>dígenas, segundo os pr<strong>in</strong>cípios<br />

cristãos, em cidadãos de uma sociedade perfeita e harmonicamente justa.<br />

A cadeia de relações simbólicas de sua narrativa biográfi ca eleva-se a<br />

partir do movimento que faz no it<strong>in</strong>erário entre a partida de Pernambuco,<br />

a estada no Rio de Janeiro, o seu redimensionamento dentro do complexo<br />

cultural do X<strong>in</strong>gu e seu retorno ao Estado primeiro. A saga que se estende<br />

nesse espaço geográfi co e nesse tempo marcado (1954 a 1964) co<strong>in</strong>cide com<br />

a ruptura de um espaço <strong>in</strong>terior emerso pelo embate do desejo de ser padre<br />

e ser homem. Assim, a paixão secreta por Francisca e o envolvimento sexual<br />

com a <strong>in</strong>glesa W<strong>in</strong>ifred e Vanda impelem o protagonista ao exercício<br />

da missão rumo ao centro do país.


350 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Fundamentado muito mais na visão mítica que possui das Missões Jesuíticas<br />

do Rio Grande do Sul, Nando depara com uma série de contradições<br />

ao desnudar uma realidade adversa no X<strong>in</strong>gu, o que provoca em si<br />

mesmo uma transformação progressiva mediante a imagem que vai constru<strong>in</strong>do<br />

da miséria cultural e material do índio brasileiro. Assim, ele pode<br />

visualizar, segundo Moraes (1983, p.43), “a descoberta de que o Paraíso<br />

está muito próximo do <strong>in</strong>ferno, a descoberta de que não há muito sentido no<br />

projeto civilizador, a revelação de que o índio não é um animal sem confl itos<br />

e consciência, mas que tem convenções, suas <strong>in</strong>justiças, e que sobretudo,<br />

tem consciência do sofrimento, da doença e do prazer”.<br />

A viagem ao centro do país, e de forma ambivalente, ao centro de si mesmo,<br />

demonstra o processo que percorre toda a sua l<strong>in</strong>ha biográfi ca até o fi -<br />

nal da obra, pelo qual descobrir-se implica a descoberta do outro, deixando<br />

a visão hermética da Igreja para conjugar a <strong>in</strong>tegração de um mundo aberto<br />

à vida e à aprendizagem. No movimento de transgressão do <strong>in</strong>terior e exterior,<br />

a personagem se molda entre faces paralelas: “da sexualidade à luta<br />

de classes; das tramóias da vida política à rot<strong>in</strong>a da burocracia brasileira;<br />

dos labir<strong>in</strong>tos da alma de homens e mulheres aos tabus, medos, esperanças,<br />

limitações e sabedoria dos camponeses, das prostitutas, dos pescadores”<br />

(ibidem, p.47).<br />

É a experiência vivida no X<strong>in</strong>gu, tanto coletiva quanto <strong>in</strong>dividual, que<br />

irá revelar, no entanto, o confronto entre a visão utópica do Brasil, vista<br />

pelo padre idealista, e o Brasil do ponto de vista do homem Nando, após o<br />

abandono do sacerdócio; um quadro-síntese do projeto representativo de<br />

Callado ao propor, pela narrativa engajada, uma revolução condensada no<br />

presente e no futuro.<br />

O embate entre esses dois fatores centra-se na presença paradoxal de<br />

Francisca, personagem-chave que desliga Nando da ilusão de um projeto<br />

a serviço da Igreja e o liga à sua própria teoria sobre o país, curiosamente<br />

construída sobre recortes da experiência dos que o cercam, mas, de modo<br />

particular, do aprendizado que vem de sua sexualidade. Assim, sexualidade<br />

e política fusionam-se na teoria do ex-padre, que dá às prostitutas a tarefa<br />

de formar chefes da nação. Uma defi nição que parte, <strong>in</strong>icialmente, do ato<br />

de re<strong>in</strong>ventar-se para exteriorizar a revolução de que a nação necessitava<br />

para consolidar-se como tal. Nesse aspecto, Gullar (1968, p.255) considera<br />

que


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 351<br />

Nando vai se afastando de Deus e se aproximando da História. Através da experiência<br />

sexual, ele se re<strong>in</strong>tegra na aventura comum. Por amor à Francisca,<br />

aproxima-se dos camponeses que lutam por uma vida melhor e sofre a crua<br />

realidade da repressão. Depois do golpe militar, sente-se exilado em sua própria<br />

terra e não vê outro cam<strong>in</strong>ho senão cavar dentro de si mesmo.<br />

A utopia que quisera construir junto aos <strong>in</strong>dígenas vai se dissolvendo à medida<br />

que observa o cotidiano tribal, compreendendo como se constitui o ideal<br />

de pureza e de naturalidade, antes conhecido apenas pelos livros. É o <strong>in</strong>ício de<br />

uma nova fase de sua formação como personagem, pois a sociedade utópica<br />

é deixada para outro tempo, e adere ao projeto de luta, ao lado de Fontoura<br />

(<strong>in</strong>digenista) e dos índios, contra grileiros e burocratas, não mais como padre,<br />

e sim como funcionário do Serviço de Proteção ao Índio (SPI, hoje, Funai).<br />

A pacifi cação dos <strong>in</strong>dígenas <strong>in</strong>sere o protagonista numa situação rot<strong>in</strong>eira<br />

que dura de seis a sete anos, vivendo sob forte neurose sexual, resolvida<br />

somente quando se reencontra com Francisca. Novamente a presença da<br />

mulher <strong>in</strong>dividualizada sobrepõe-se à mulher geral, alegoricamente representada<br />

por W<strong>in</strong>ifred, Vanda, Sônia e Lídia, com as quais teve relacionamentos<br />

íntimos. Conforme já foi dito, Francisca desempenha um papel de<br />

mola propulsora na construção do percurso de Nando e contribui de forma<br />

essencial no desenvolvimento do enredo.<br />

Isso se faz notório, dentre outros episódios, a partir de sua chegada ao<br />

X<strong>in</strong>gu, quando é formada uma equipe para demarcar o Centro Geográfi co<br />

do Brasil, de onde coletaria uma porção de terra, conforme prometera ao<br />

seu noivo Lev<strong>in</strong>do, assass<strong>in</strong>ado em luta junto aos camponeses do Nordeste.<br />

Cumpriria, assim, algumas das evidências já <strong>in</strong>dicadas no <strong>in</strong>ício da obra: o<br />

desejo de ir ao X<strong>in</strong>gu em lua-de-mel com o noivo, algo que não se realiza<br />

em razão de sua morte. Tal situação faz emergir o equilíbrio entre o amor<br />

espiritual de Nando e o amor físico pela mulher desejada desde os tempos<br />

em que habitava o ossuário do mosteiro em Ol<strong>in</strong>da.<br />

A união desses dois polos confl itantes dar-se-á num dos microrrelatos<br />

reveladores da narrativa que abarca o centro em diferentes dimensões. Trata-se<br />

do encontro dos dois numa ilha de orquídeas:<br />

Mais para dentro da margem havia orquídeas claras, quase brancas. Nando<br />

e Francisca não falaram. Apenas se voltaram um para o outro, braços abertos, e


352 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

o breve <strong>in</strong>stante em que se separaram foi para deixarem cair no chão as roupas<br />

sobre as quais se deitaram debaixo das orquídeas pálidas, separados do rio por<br />

um cort<strong>in</strong>ado de orquídeas coloridas. (Callado, 1984, p.319)<br />

Encontram-se, assim, implícitos nesse episódio, diferentes centros a que<br />

a narrativa se propõe alegorizar, conforme elucida Moraes (1983, p.59):<br />

a planta, (orchidion, do grego – testículo), símbolo de fertilidade, aparece no<br />

centro da fl oresta tropical, com muita água e muita cor, no momento do encontro<br />

de Nando e Francisca, e no centro do livro. É quando o herói, fund<strong>in</strong>do<br />

numa só Francisca real com a Francisca de sua imag<strong>in</strong>ação, deixa de ser impotente<br />

para encontrar-se na sua mascul<strong>in</strong>idade, encontrando o seu complemento<br />

fem<strong>in</strong><strong>in</strong>o. A <strong>in</strong>tegração dos amantes com a natureza é completa, a mulher se<br />

funde com as fl ores e a cena reatualiza o mito de Adão e Eva, <strong>in</strong>ocentes, a descobrir<br />

o amor no paraíso.<br />

A metáfora do centro alude a um ponto-referência sobre o qual pousa<br />

o equilíbrio da sexualidade da personagem, revelada no centro do livro,<br />

mas também, alegorizada no projeto de se marcar o centro do país. Daquele<br />

ponto irradiaria a formação de uma sociedade do futuro, com a presença<br />

dos <strong>in</strong>dígenas, sem deixar de considerar as bases nacionalistas de onde parte<br />

sua concepção utópica de nação.<br />

É no centro, também, que se desenvolve a percepção de Nando a respeito<br />

da <strong>in</strong>viabilidade de se pensar a nação a partir da <strong>in</strong>tegração dos povos “<strong>in</strong>ocentes”.<br />

Segundo Ávila (1983, p.284), “tão s<strong>in</strong>gular projeto não resiste, porém,<br />

à prova da realidade do X<strong>in</strong>gu e, talvez por causa disso, Nando se torna<br />

um crítico bastante lúcido de quase todas as formulações nacionalistas que<br />

outras personagens façam na sua presença”. Cabe ass<strong>in</strong>alar que Nando não<br />

fi gura entre as personagens como um defensor da causa <strong>in</strong>digenista, vista<br />

sua falta de comunicação entre os índios. O que se pode atribuir a ele, como<br />

fator favorável na fi guração do <strong>in</strong>dígena, é o movimento constante que realiza<br />

na narrativa como portador de um centro pelo qual o narrador leva o leitor<br />

a visualizar situações bem mais profundas que as reveladas pela sua óptica.<br />

Visto no conjunto, o romance parece não dar a Nando um caráter de<br />

personagem pr<strong>in</strong>cipal, a não ser que se considere sua frequência nas ações.<br />

Entende-se que ele exerce muito mais uma função de catalisador entre os


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 353<br />

episódios e personagens, pela qual se congregariam as demais visões do it<strong>in</strong>erário<br />

narrativo e ideológico. Há algo em aberto, tanto na leitura de Nando<br />

ante a realidade cultural com que depara, quanto à sua própria constituição<br />

como personagem, que não se fecha em determ<strong>in</strong>ado ponto de vista a respeito<br />

dos índios e em relação ao projeto de uma nação justa: “Nando não<br />

é um caráter <strong>in</strong>teiriço, desde sempre votado a um determ<strong>in</strong>ado sistema de<br />

valores, mas sim uma personagem em formação, durante longo percurso”<br />

(Ávila, 1983, p.365).<br />

Ao mesmo tempo, considera os <strong>in</strong>dígenas ilógicos quanto aos hábitos de<br />

se comunicarem, mas imita-os quanto à pureza e <strong>in</strong>genuidade em relação ao<br />

sexo, quando reúne jangadeiros em Recife, ens<strong>in</strong>ando-lhes a arte de fazer as<br />

mulheres felizes; uma relação natural que atualiza em ação o que presenciou<br />

nas aldeias do X<strong>in</strong>gu. Não se pode, no entanto, com essas evidências, deixar<br />

de considerar a importância de seu papel como o fi o condutor que leva à<br />

metáfora do centro, elemento que, segundo Gullar (1968, p.257),<br />

é, a um só tempo, a carência da unidade nacional, da <strong>in</strong>tegração do País, como<br />

o símbolo de um sentido para a vida de cada um – vida essa que não se desliga<br />

do dest<strong>in</strong>o global da Nação. [...] Essa identifi cação da mulher com a terra, do<br />

sexo com o centro do país e do centro do País com o centro da vida – o sentido<br />

da existência – defi ne a necessidade de <strong>in</strong>tegração global que o romance propõe<br />

e exprime.<br />

Considerado por esse viés, Nando desempenha papel signifi cativo no<br />

que diz respeito à presença da cultura <strong>in</strong>dígena na obra. O Centro do país,<br />

no qual se constituiria uma nação ideal, é antes um projeto ambicioso e<br />

utópico do então padre de Ol<strong>in</strong>da. Assim, ao deslocar-se geografi camente,<br />

<strong>in</strong>fi ltra-se num sertão que o conduz a repensar determ<strong>in</strong>ados conceitos e a<br />

construir um aprendizado em torno da cultura que conhecia apenas pelos<br />

livros. É pelo olhar de Nando que o narrador vai registrando as imagens<br />

alegóricas que acolhem o desconcerto do dest<strong>in</strong>o do país, como a morte de<br />

Getulio Vargas, a queda de Jango, dentre outros.<br />

Aí se estabelece o jogo de olhar e de olhar-se. Olhar o <strong>in</strong>dígena e sua<br />

condição de brasileiro expurgado da terra e à mercê da expansão pecuária<br />

e agrícola; olhar-se como homem e cidadão ante o complexo ideológicocultural<br />

que permeia o repensar a história e seu legado. Nesse entrelaça-


354 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

mento de dizeres e atitudes encontram-se Nando e Fontoura, duas faces<br />

que marcam com maior nitidez a representação fi ccional do discurso ante a<br />

cultura <strong>in</strong>dígena. Cabe destacar que há uma diversidade de pontos de vista<br />

a respeito do índio entre as demais personagens, porém, o que se pretende<br />

mostrar em relação a Nando e a Fontoura são as vertentes fi gurativas elaboradas<br />

a partir de suas experiências, o que as tornam, a nosso ver, mais<br />

relevantes para o estudo em questão.<br />

Segundo Ávila (1983, p.156), a proposição do <strong>in</strong>digenista Fontoura é<br />

“defender os índios de todas as ações e projetos que ameacem a harmonia<br />

cultural em que vivem há muitos séculos”, o que se opõe aos ideais <strong>in</strong>dianistas<br />

<strong>in</strong>viáveis de Nando. Para melhor compreender as duas faces desse jogo<br />

de <strong>in</strong>tenções, transcreve-se abaixo um dos trechos que revela a posição dos<br />

dois acerca da questão <strong>in</strong>dígena. O excerto é extenso, mas faz-se necessário<br />

pela abrangência do contexto e por caracterizar exemplarmente a mentalidade<br />

formada em relação à cultura e à preservação da vida dos índios:<br />

– Os índios estão quase mortos – disse Fontoura. – O importante é que não<br />

morram todos. A única coisa que importa é dar a eles os meios para sobreviver.<br />

– Exatamente – disse Nando. – Eu tenho a impressão de que o que desagrada<br />

você é a idéia de <strong>in</strong>tegrar o índio nas populações do <strong>in</strong>terior, não é? Eles se<br />

despersonalizariam, desapareceriam como índios.<br />

Fontoura assentiu com a cabeça.<br />

– Portanto – cont<strong>in</strong>uou Nando se entusiasmando – o que se pode fazer é<br />

educá-los de modo a que contribuam para seu sustento com a pesca, a caça, a<br />

lavoura, as artes plumárias cont<strong>in</strong>uando a se desenvolver como índios. Poderíamos<br />

montar aqui peixarias, serrarias...<br />

Fontoura fez que não com a cabeça.<br />

– Não? – disse Nando.<br />

– Não, nunca.<br />

Fontoura se levantou da rede, foi até ao escritório e de lá voltou com um<br />

sovado mapa do Mato Grosso onde se delimitara, a lápis de cor vermelho, o<br />

Parque Nacional do X<strong>in</strong>gu, entre 10 e 12 graus de latitude sul e 53 e 54 graus<br />

de longitude oeste de Greenwich. A forma <strong>in</strong>cl<strong>in</strong>ada acompanhava o curso do<br />

X<strong>in</strong>gu, das cabeceiras dos seus três formadores até a cachoeira de pedras.<br />

– Este – disse o Fontoura batendo com o dedo em cima da área do Parque – é<br />

o Estado dos Índios.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 355<br />

Montoya, Catald<strong>in</strong>o, Rodrigues, pensou Nando, o coração a lhe bater<br />

apressado. Ave, República dos Guaranis.<br />

– Magnífi co – disse ele – o estado Indígena.<br />

– Sim, magnífi co – disse Fontoura – se fosse realizável. E se fosse possível,<br />

de acordo com meus sonhos, estender aqui – e seu dedo passou como se abrisse<br />

uma vala pelo contorno do Parque – uma cerca de arame farpado.<br />

– Arame farpado? – disse Nando.<br />

– Sim – disse Fontoura. – Eletrifi cado. Contra o Brasil.<br />

– E educar os índios de que maneira? Que fazer deles? Que espécie de gente?<br />

– O Estado seria de índios, de bugres, do que eles são – disse Fontoura martelando<br />

as sílabas. – Eu não quero transformar índios em nada. Parques imensos,<br />

cuidadosamente vigiados, fi zeram os <strong>in</strong>gleses para girafas e zebras em Quênia<br />

e Tanganica. Não para educar girafas ou zebras. Para preservá-las vivas.<br />

– Mas os índios têm como nós uma alma imortal – disse Nando.<br />

– Os índios não sei se têm. Ou se a<strong>in</strong>da têm. Nós eu sei que não temos. No<br />

mundo <strong>in</strong>teiro as reservas <strong>in</strong>dígenas são simples arapucas para extermínio de<br />

índios. (Callado, 1984, p.160-1)<br />

No confronto dos discursos de Nando e Fontoura é visível a marca do<br />

pensamento distanciado não só geográfi ca, mas historicamente do primeiro,<br />

que entende o índio como um personagem idílico, ao estilo José de Alencar<br />

e Gonçalves Dias, como ancestral generoso, e o caráter de denúncia,<br />

crítico, do segundo, no qual demonstra a tomada de consciência frente à<br />

<strong>in</strong>vasão da cultura e a necessidade de uma <strong>in</strong>tervenção precisa do governo<br />

em sua preservação.<br />

De um lado, Nando é o representante de uma das correntes que se preocupou<br />

na defesa da catequese católica como única solução compatível com<br />

a formação do povo brasileiro; de outro, Fontoura é o porta-voz leigo que<br />

argumenta em favor da assistência protetora ao índio para assegurar-lhe a<br />

liberdade de crença, uma vez que a corrente católica se pauta pela experiência<br />

passada dos missionários para defender o malogro de suas ações. Há, em<br />

Fontoura, um discurso próximo ao que se construiu no Brasil pelos positivistas<br />

na formulação da política <strong>in</strong>digenista, feição da experiência pessoal<br />

de Rondon, que se baseava na “autonomia das nações <strong>in</strong>dígenas na certeza<br />

de que evoluiriam espontaneamente, uma vez libertadas de pressões externas<br />

e amparadas pelo governo” (Ribeiro, 1996, p.154). O que difere nos


356 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

ideais da personagem em relação aos positivistas é que acredita na efi cácia<br />

da proteção do Estado para com a preservação da cultura. Essa face revela,<br />

em certa medida, uma mentalidade utópica, porque o histórico do Serviço<br />

de Proteção ao Índio no Brasil mostra que, em determ<strong>in</strong>ados momentos,<br />

foram registrados mais problemas com o enfrentamento dos índios do que<br />

sua proteção propriamente efi caz. Mesmo os resultados de Rondon, considerados<br />

exemplares na “pacifi cação” dos <strong>in</strong>dígenas, são passíveis de outra<br />

leitura no que compete aos métodos persuasórios de que se utilizou para<br />

alcançar as tribos mais aguerridas como os Nambikwara.<br />

Embora as personagens tenham papel relevante no enredo e na construção<br />

da fi gura do <strong>in</strong>dígena, sua l<strong>in</strong>guagem permanece exterior, é formulada<br />

de fora para dentro, como se a<strong>in</strong>da prevalecesse a visão europeia do colonizador.<br />

São vozes em defesa do índio, presas a diferentes concepções, porém<br />

não é a voz do índio. O comportamento do nativo, segundo Ávila (1983,<br />

p.364), “não chega a ‘merecer’ uma forma estética nobre. O grotesco denuncia<br />

agressivamente as <strong>in</strong>justiças, mas não suscita qualquer sentimento<br />

de simpatia”. É o que ocorre no episódio da contam<strong>in</strong>ação dos cren-acárore<br />

pela epidemia de sarampo e disenteria. A situação não é tratada como um<br />

comportamento trágico, e sim, como uma forma grotesca da morte, concretizada<br />

na fuga covarde da aldeia com medo do espírito do pajé assass<strong>in</strong>ado<br />

em função de não ter dado conta do restabelecimento da saúde de seus pacientes.<br />

Tudo observado de forma grotesca, também, pela perspectiva do<br />

narrador e das personagens, conforme se pode notar no fragmento abaixo:<br />

Adiantaram-se pelo acampamento adentro cambaleantes e foram aos jiraus<br />

enfi ando na boca a comida e a far<strong>in</strong>ha e o arroz que encontravam e outros vieram<br />

e em pouco tempo o que havia de comida t<strong>in</strong>ha sumido.<br />

– Fam<strong>in</strong>tos! – disse Fontoura.<br />

– Mas não é só isto – disse Vilaverde. – Estão morrendo de alguma outra<br />

coisa também. (Callado, 1984, p.356)<br />

[...]<br />

Um cren meio morto, de olho revirado, ia se afastando de quatro para o<br />

mato mais perto mas não teve tempo de chegar e se aliviou assim mesmo, joelhos<br />

e mãos no chão, e ali fi cou de rabo p<strong>in</strong>gando, olhando Ramiro e Olavo que<br />

se afastavam carregando os rifl es.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 357<br />

– Como fazem cocô! – disse Olavo.<br />

– Estes índios realmente exageram na disenteria – disse Ramiro. (ibidem,<br />

p.361)<br />

[...]<br />

A história do chefe cren era que o pajé t<strong>in</strong>ha dito que sabia mas não sabia<br />

curar doença trazida pelos brancos. Então os cren t<strong>in</strong>ham assass<strong>in</strong>ado o pajé e<br />

não t<strong>in</strong>ham outro à mão. (ibidem, p.363)<br />

[...]<br />

Eles estão na última lona. Vi mortos praticamente em todas as malocas.<br />

Acho que até alguns dos que estiveram aqui voltaram para morrer. Estavam<br />

quentes a<strong>in</strong>da. (ibidem, p.364)<br />

Em toda a trajetória de degradação dos cren-acárore não há manifestações<br />

que possam ser consideradas como sua voz. O que se ouve do narrador<br />

e personagens é um conjunto de dizeres que respondem, antes de tudo, a<br />

uma denúncia grotesca da ext<strong>in</strong>ção progressiva por que passam os índios<br />

que entraram em contato com os ser<strong>in</strong>gueiros, desde a negação de seus ancestrais,<br />

por meio da morte do pajé, à <strong>in</strong>tegração ao grupo dos civilizados<br />

que rumavam ao Centro Geográfi co do Brasil.<br />

A mesma representação degradante em relação ao contágio, resultado<br />

do contato com o civilizado, ocorre com a personagem Aicá, presente no<br />

mesmo capítulo em que se narra o quarup:<br />

– O que é que tem esse índio?<br />

– Venha ver. É parte do seu mistério.<br />

[...]<br />

– Aicá? – perguntou Lídia.<br />

– Aica, Aicá – disse uma das mulheres apontando para um canto.<br />

De uma rede na penumbra levantou-se um rapagão dos seus v<strong>in</strong>te e poucos<br />

anos. Parecia em tudo e por tudo qualquer dos índios do acampamento que<br />

Nando vira até agora. Lídia tirou do bolso um embrulho.<br />

– Para Aicá – disse ela.<br />

O índio se aproximou e começou a lutar com o barbante na ânsia de abrir o<br />

embrulho da caixa de anzóis e l<strong>in</strong>ha de pesca que lhe trazia Lídia. Então Nando


358 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

viu como estava coberto de feridas. Jó t<strong>in</strong>ha mais anos do que Aicá, pensou<br />

Nando, mas não pode ter tido mais chagas.<br />

– Aicá está assim há bem uns dez anos – disse Lídia. – Fogo selvagem.<br />

– Fogo selvagem – repetiu Aicá, familiarizado com o nome dado pelos brancos<br />

à sua moléstia.<br />

[...]<br />

– Coitado – disse Nando – que horror de moléstia!<br />

– Imag<strong>in</strong>e agora a dor de que Aicá e de tantos mais que pegam o fogo selvagem<br />

– disse Lídia.<br />

– Deus me livre de achar que Aicá não sofre, mas sofrerá como um de nós?<br />

Com a mesma sensibilidade? E com o mesmo horror da chaga em si e da chaga<br />

vista pelos outros? (ibidem, p.175)<br />

O episódio dos cren-acárore é a manifestação de uma das fendas que<br />

Callado abriu para mostrar o país do centro, como também o é a presença<br />

da moléstia em Aicá. É sempre a voz do outro que julga, analisa e sugere ao<br />

leitor, e não a visão do índio ante as situações de penúria que atravessa. São<br />

dois episódios, dentre outros, que retiram a máscara do conceito formado a<br />

respeito da cultura <strong>in</strong>dígena, do homem selvagem perfeito e resistente às <strong>in</strong>vasões<br />

dos civilizados. Isso é representado tanto nas falas das personagens<br />

diretamente reproduzidas quanto nas <strong>in</strong>termediações do narrador, abrigado<br />

em suas mentes. Nando, na verdade, mudará lentamente sua percepção<br />

do mundo <strong>in</strong>dígena a partir das experiências, como a da doença dissem<strong>in</strong>ada<br />

entre as aldeias pelos <strong>in</strong>vasores, mas possui, a<strong>in</strong>da, a visão <strong>in</strong>dianista<br />

trazida de seu projeto anterior, que arraigada, não se dissipa totalmente.<br />

Se os exemplos aqui demonstram o lado sombrio e degradante da cultura,<br />

a celebração do quarup concentra uma rede simbólica de esperança (por<br />

isso utópica, de renascimento), que tece tanto o sentido do título Quarup,<br />

quanto a derivação do signifi cado em direção a diferentes eventos nos quais<br />

se lê a manifestação do culto a um espírito. O primeiro e mais importante<br />

para este trabalho é a realização do evento enquanto ritual <strong>in</strong>dígena. Dele<br />

partem os demais fi os de signifi cação que vão compor o quadro geral do romance,<br />

traduz<strong>in</strong>do os vários quarups que ocorrem na construção das personagens<br />

fi ctícias e históricas. A festa propriamente dita, e mencionada no<br />

<strong>in</strong>ício deste texto, “é um ritual em que há danças, lutas e – para usar um<br />

termo de Mário de Andrade que Callado adota – um despotismo de comida.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 359<br />

As imagens talhadas em madeira, p<strong>in</strong>tadas e enfeitadas, representam os ancestrais<br />

mortos, que são evocados durante a festa e a comilança, e <strong>in</strong>corporados<br />

nos vivos” (Gullar, 1968, p. 257).<br />

No ritual está implícita a ideia do retorno à vida, por isso os toros de madeira,<br />

dispostos no centro da aldeia durante o período de celebração, serão<br />

lançados à água evocando o renascimento que dela provém, lugar de domínio<br />

dos peixes, servidos abundantemente durante o ritual. Segundo Bastos<br />

(2001, p.344), “no Kwarup, as efígies (ta’angap, ‘imitação’) dos mortos,<br />

pranteadas com austeridade, são enviadas para a fertilização-cont<strong>in</strong>uidade<br />

das águas. [...] O Kwarup, assim, seria ‘tragédia’ (imitação da ação de seres<br />

superiores), ‘pr<strong>in</strong>cípio’ [...]”, se comparado à festa denom<strong>in</strong>ada Jawari,<br />

em que as efígies são queimadas, representando uma agressão ao morto, o<br />

que lembraria a comédia (seres <strong>in</strong>feriores). Essa comparação, essencial para<br />

o entendimento da atualização do mito na obra, faz com que se estenda o<br />

conceito de Aristóteles à evocação do “tempo mítico” e do “tempo histórico”,<br />

que Bastos dist<strong>in</strong>gue “entre ‘pr<strong>in</strong>cípio’ e ‘meio’ (‘mito’ e ‘história’) [...]<br />

diferenciação entre ‘poderosos’ e ‘comuns’” (ibidem). Assim, o quarup está<br />

<strong>in</strong>tr<strong>in</strong>secamente ligado à consciência mítica, pois retorna ao arquétipo do<br />

tempo orig<strong>in</strong>al, ao pr<strong>in</strong>cípio, portanto.<br />

Na narrativa de Callado, em especial no capítulo terceiro, “A maçã”,<br />

tomado aqui como referência por narrar a celebração do quarup, diferentes<br />

olhares estão entrelaçados em direção ao índio. No primeiro plano tem-se o<br />

ritual de festa na aldeia sob o comando de Fontoura, no Posto Capitão Vasconcelos,<br />

localizado no X<strong>in</strong>gu. Ali estão fi guradas as <strong>in</strong>úmeras etnias que<br />

formam o complexo cultural <strong>in</strong>dígena. É importante destacar que o evento<br />

quarup é de origem kamaiurá, mas, na narrativa, a etnia aparece como convidada<br />

para a festa, e não como a que organiza, o que revela nitidamente a<br />

presença do civilizado e suas <strong>in</strong>terferências no ritual.<br />

Os preparativos <strong>in</strong>iciam-se nos últimos dias de julho, antes do <strong>in</strong>ício das<br />

chuvas, e contam com a presença, <strong>in</strong>icialmente, do <strong>in</strong>digenista Fontoura,<br />

do padre Nando, recém-chegado em companhia de Olavo, o piloto do Correio<br />

Aéreo Nacional e dos índios que moram sob os cuidados do Posto. Os<br />

demais <strong>in</strong>dígenas convidados são apresentados pelo nome de suas respectivas<br />

etnias a partir do momento em que são feitos os convites para a festa.<br />

Mais tarde, são <strong>in</strong>corporadas outras personagens que chegam ao local em<br />

função da suposta visita do presidente Getulio Vargas que, na ocasião, faria<br />

a criação do Parque <strong>in</strong>dígena.


360 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

A preparação do quarup começa com o ritual da pesca e da caça nos dias<br />

antecedentes ao encontro das tribos. Na pesca, utilizam a técnica do timbó,<br />

uma droga espalhada na água que entorpece os peixes e os deixa à facilidade<br />

das mãos. Todos os <strong>in</strong>tegrantes da tribo participam em diferentes atividades,<br />

para que os convidados sejam tratados como de costume. Neste episódio,<br />

ocorre nitidamente uma violação do ritual de pesca coletiva. Rolando<br />

Vilar, o engenheiro, faz estourar d<strong>in</strong>amite no rio, para acelerar a coleta dos<br />

peixes. Uma mudança nos padrões de vida e de costumes, uma descaracterização<br />

do evento que leva a entender que “os <strong>in</strong>dígenas perderam a capacidade<br />

primitiva de organizarem soz<strong>in</strong>hos o ritual” (Jablonski, 2005, p.104).<br />

Em meio à troca de objetos, animais e comida, o espírito de morte e renascimento<br />

do quarup desencadeia uma série de temas que ali se encontram<br />

para, posteriormente, abrirem-se em leque no desfecho da obra. Além de<br />

colocar o X<strong>in</strong>gu como centro do país, onde um presidente pisaria pela primeira<br />

vez, e que de lá surgiria um projeto de nação, os índios fi guram por<br />

entre múltiplos quadros.<br />

Tem-se, à primeira vista, a naturalidade entre homens e mulheres no<br />

que diz respeito ao corpo, como ilustrado no excerto a seguir:<br />

Combra e Auaco t<strong>in</strong>ham se sentado ao pé do tronco central da casa, no banqu<strong>in</strong>ho<br />

que o circundava. Distraídos, olhando ora para o lado de Lídia ora para<br />

o lado de Nando. Auaco deixou-se escorregar até o chão, encostada à perna de<br />

Combra, cuja mão fi cou sobre seu ombro esquerdo. Combra alerta, esquadr<strong>in</strong>hava<br />

tudo com os olhos. Auaco, l<strong>in</strong>da, sonolenta, olhava em frente. A mão de<br />

Combra estava naturalmente na altura do seio esquerdo de Auaco e ele começou<br />

a acariciá-lo. Era impossível a Nando não olhar disfarçadamente a estranha<br />

cena, que Lídia sem dúvida olhava também. Dois jovens índios, noivos ou lá o<br />

que fossem, nus em pêlo, ele acariciando o peito dela e, no entanto, ela quase<br />

adormecida e ele olhando as modas ao redor, sem dar o menor s<strong>in</strong>al de excitação.<br />

(Callado, 1984, p.173)<br />

[...]<br />

– São curiosos esses índios, não são? – disse a<strong>in</strong>da Lídia v<strong>in</strong>do ao encontro<br />

de Nando.<br />

– Aquém do bem e do mal – disse Nando.<br />

– Hum...


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 361<br />

– Fazem com naturalidade os atos naturais, não têm consciência nem do<br />

prazer nem da dor. (ibidem, p.174)<br />

A cena apresentada, escolhida dentre outras que evidenciam a naturalidade<br />

do contato entre homens e mulheres <strong>in</strong>dígenas, pode demonstrar as<br />

múltiplas faces do signifi cado de quarup, anunciado anteriormente. Dela<br />

emerge um dos aspectos participativos em relação ao renascimento de Nando,<br />

a partir do abandono do sacerdócio e enfrentamento de seus medos,<br />

dentre eles, estar diante das índias nuas, tal qual revelou ao amigo no Rio<br />

de Janeiro, antes de sua partida. É, também, no seio da mata amazônica que<br />

ele e Francisca se despem, como que se deixassem cair suas máscaras, e se<br />

encontram <strong>in</strong>timamente no episódio das orquídeas, já mencionado neste<br />

texto.<br />

Além disso, ao retornar ao Recife, monta uma casa à beira da praia, onde<br />

ens<strong>in</strong>a aos jangadeiros a arte de amar por meio de suas próprias atitudes:<br />

“naquela noite Nando amou pela primeira vez uma mulher no mais puro<br />

espírito de caridade. [...] A mão com que lhe despertou por dentro da blusa<br />

os seios era para ele a mão que sara e consola embora fosse para ela a mão do<br />

amante” (ibidem, p.481). Há, então, uma mudança progressiva de comportamento,<br />

pautado na observação dos atos naturais entre os índios, em sua<br />

maneira natural e festiva de viver, o que desencadeia sua revolução <strong>in</strong>terna.<br />

Há, também, do ponto de vista estrutural do romance, um espelhamento<br />

na própria narrativa, ao duplicar os episódios em dois espaços diferentes,<br />

notado nos excertos apontados acima, em que as ações observadas no X<strong>in</strong>gu<br />

são <strong>in</strong>corporadas ao seu cotidiano. No entanto, existem leituras diferentes<br />

em relação à cena do ponto de vista cultural: a primeira natural a outra <strong>in</strong>tencional<br />

e consciente, mas que se <strong>in</strong>terseccionam quando vistas no conjunto<br />

complexo da formação da personagem como uma forma de quarup que se<br />

realiza em seu <strong>in</strong>terior.<br />

Como se nota, há, na personagem, uma evolução que a diferencia das<br />

demais, pelo fato de re<strong>in</strong>ventar suas teorias a cada momento, ligando passado,<br />

presente e futuro. Desde o projeto de <strong>in</strong>tegração dos índios à transformação<br />

de seu ponto de vista frente à realidade em que vivem, a visão de<br />

mundo renovadora constrói-se de forma acelerada, a partir dos fragmentos<br />

que vão se compondo até o fi nal da obra, mas que não se fecham, em razão<br />

do caráter utópico que o romance sustenta.


362 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Assim, o espírito evocado no quarup x<strong>in</strong>guano é duplicado no quarup<br />

do Nordeste, em sua dimensão antropofágica, entendida na celebração da<br />

memória a Lev<strong>in</strong>do, morto na luta em defesa dos camponeses. Há, no episódio<br />

do jantar oferecido aos jangadeiros, prostitutas e amigos das Ligas<br />

Camponesas, duas faces do jogo encenado na concepção do quarup. Segundo<br />

Moraes (1983, p.52),<br />

no br<strong>in</strong>de a Lev<strong>in</strong>do, Nando <strong>in</strong>corpora a<strong>in</strong>da um pouco da visão do Brasil doente<br />

de Ramiro, mas sem o ranço europeizante. [...] Esse o signifi cado público do<br />

jantar; o signifi cado privado, outro lado da moeda, é a devoração da lembrança<br />

de Lev<strong>in</strong>do, para fi nalmente conquistar Francisca, porque “n<strong>in</strong>guém” se lembrava<br />

mais, mas Francisca se lembrava todos os dias e pr<strong>in</strong>cipalmente a cada<br />

aniversário da morte heróica no pátio do engenho e Lev<strong>in</strong>do deitava-se na cama<br />

entre os dois como a espada entre Tristão e Isolda. [...] Ia devorar a lembrança<br />

de Lev<strong>in</strong>do, devorar Lev<strong>in</strong>do, <strong>in</strong>corporá-lo, nutrir-se dele.<br />

Diante disso, entende-se que a atualização do quarup contém duas refl<br />

exões apropriadas: a primeira diz respeito ao aspecto histórico que subjaz<br />

ao rito no sentido de agredir o sistema repressivo tido como morto pelos<br />

<strong>in</strong>tegrantes do jantar, uma vez que o devoram para fazer emergir novas<br />

perspectivas de luta, como o foi a retirada para o sertão, posterior ao episódio.<br />

A segunda, e mais evidente, é a que celebra a memória de Lev<strong>in</strong>do,<br />

desencadeando o retorno ao mito propriamente, como lembrança de<br />

um líder:<br />

– Estamos aqui reunidos em espírito de festa para lembrar o único brasileiro<br />

morto em luta por uma idéia. Brasilidade é o encontro marcado com o câncer.<br />

Brasilidade é a espera paciente da tuberculose. Brasilidade é morrer na cama.<br />

À frente de um grupo de camponeses, morrendo pelo salário do camponês,<br />

Lev<strong>in</strong>do morreu uma bela morte estrangeira. Estamos hoje aqui para comer o<br />

sacrifício de Lev<strong>in</strong>do, comer sua coragem e beber seu rico sangue de brasileiro<br />

novo. (Callado, 1984, p.552)<br />

A referência está nítida quando sugere “comer o sacrifício”, “sua coragem”<br />

e “beber seu rico sangue”, um ritual antropofágico pela memória de<br />

um homem chamado pelo nome durante a celebração, tal qual no mito cris-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 363<br />

tão, em relação ao sacrifício de Cristo. Segundo Jablonski (2005, p.111), “as<br />

diferenças entre o jantar para Lev<strong>in</strong>do e o quarup que lhe serviu de modelo<br />

são também, importantes: o morto festejado não é o chefe de uma sociedade<br />

já existente, que deve empenhar-se na sua sobrevivência, e sim o herói da<br />

sociedade futura, pela qual todos os explorados precisam lutar”.<br />

O fato de chamar o morto pelo nome diferencia-se do mito em razão de<br />

os índios não o pronunciarem, como relatam os irmãos Villas-Bôas (1984,<br />

p.81): “porque vem à lembrança o jeito que ele falava, andava, ria. [...] o<br />

i-ã (alma) pode surgir atendendo o chamado. E, se de repente aparece na<br />

nossa frente, a gente pode morrer também, ou ser levado por ele”. De certa<br />

forma, abrem-se duas possibilidades de atualização: a de celebrar o espírito<br />

do morto, identifi cado pelo nome, e, a partir daí, a de renascimento de um<br />

novo líder, pois há de ocorrer a morte simbólica de Nando para que se recupere<br />

o nome e o ideal de Lev<strong>in</strong>do, como se pode observar no trecho a seguir,<br />

que fi naliza a obra e a biografi a de Nando:<br />

Só t<strong>in</strong>ha como sensação de cont<strong>in</strong>uidade o fi o de ouro de Francisca, assim<br />

mesmo porque era o fi o fi ado de astúcia na trama do mundo a vir.<br />

[...]<br />

Nando já a cavalo mal ouvia Manuel tropeiro. Sentia que v<strong>in</strong>ha v<strong>in</strong>do a<br />

grande visão. Sua deseducação estava completa. O ar da noite era um escuro<br />

éter. A sela do cavalo um alto pico. Da sela Nando abrangia a Mata, o Agreste<br />

e sentia na cara o sopro do fi m da terra sa<strong>in</strong>do das furnas de rocha quente. E<br />

viu: aquele mundo todo com sua cana, suas gentes e seus gados era Francisca<br />

molhando os pés na praia e de cabelos ardendo no Sertão.<br />

[...]<br />

– Com seu perdão, seu Nando, a roupa preta não fez o senhor padre. Esse<br />

gibão de couro não vai fazer o senhor cangaceiro não.<br />

Nando riu:<br />

– Não se assuste, Manuel. Eu agora viro qualquer coisa.<br />

[...]<br />

– Sempre ouvi meu pai falar num tal de Adolfo Meia-Noite, cangaceiro importante<br />

– disse Manuel. – E o seu nome qual vai ser? Já pensou?<br />

– Já – disse Nando. – Meu nome vai ser Lev<strong>in</strong>do.<br />

E Nando viu o fi o fagulhar ligeiro entre as patas do cavalo como uma serpente<br />

de ouro em relva escura. (Callado, 1984, p.600-1)


364 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

A<strong>in</strong>da em relação ao mito, é notável sua atualização por meio do ritual da<br />

comida, da música e do embate entre os que promovem o jantar e os que se<br />

opõem a ele. O quarup <strong>in</strong>dígena serve aos seus convidados somente a carne<br />

de peixe e beijus, segundo o relato dos kamaiurá. Callado <strong>in</strong>sere, na obra,<br />

a carne da caça de animais selvagens, um elemento estranho ao que o mito<br />

preserva, porém, não lhe esvazia o sentido primordial de celebrar o espírito<br />

do morto. No jantar, também se enumeram diversas espécies de peixes que<br />

compõem a mesa, tais como: “lagostas e lagost<strong>in</strong>s à traíra cor de salmão; ao<br />

jacundá amarelo de listras pretas; ao sapé vermelho-escuro com bol<strong>in</strong>has<br />

pretas; ao camurupim branco-c<strong>in</strong>za-dourado, de escamas medalhonas que<br />

servem para fazer fl ores; ao beija-moça miúdo, foc<strong>in</strong>ho miúdo, boca pequetit<strong>in</strong>ha<br />

[...]”, dentre outros. Todos preparados pelas mãos das coz<strong>in</strong>heiras<br />

baianas, Diacuí e Manuela, Sever<strong>in</strong>a alagoana, Mariana maranhense, Marta<br />

Branca amazonense, dentre outras donas de bordéis e prostitutas, como a<br />

reverenciar a festa profana em oposição à Marcha da família (católica) com<br />

quem iriam se confrontar mais tarde.<br />

A presença abundante do peixe no jantar é um elemento importante na<br />

atualização do ritual do quarup, porém a música assume, também, um lugar<br />

signifi cativo. No quarup <strong>in</strong>dígena, o som das fl autas enormes e a batida<br />

dos pés no chão, dançando e correndo ao redor do fogo, anunciam a presença<br />

do espírito no canto:<br />

– Ho-ri-ri, Icatô! Ho-ri-ri, Icatô!<br />

Velhas carpideiras respondem:<br />

– Nei- mahon, nei-mahon! (ibidem, p.243)<br />

Enquanto no quarup, os maracá-êp (cantadores) entoam seus cantos em<br />

forma de lada<strong>in</strong>ha, sacud<strong>in</strong>do os maracás na mão direita, no jantar são utilizados<br />

<strong>in</strong>strumentos locais para acompanhar o canto em memória de Lev<strong>in</strong>do:<br />

“Num canto o violeiro Epifânio do P<strong>in</strong>ho cantava os versos que t<strong>in</strong>ha<br />

feito em louvação de Lev<strong>in</strong>do, cercado de Libânio, Bonifácio Torgo, Sever<strong>in</strong>o,<br />

Firm<strong>in</strong>o Campelo e Manuel Tropeiro [...] seis violas, quatro sanfonas<br />

de lavradores [...] tocavam fogo no baile” (ibidem, p.553-4).<br />

O terceiro elemento de atualização é o embate entre os que oferecem o<br />

jantar e os que não o aceitam como ritual. No episódio, que marca o deslizamento<br />

para o fi nal da narrativa, manifesta-se o caráter grotesco coletivo, ao


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 365<br />

estilo rabelaisiano, em que se contrabalançam a força otimista e a subversora,<br />

enfatizada no poder do riso decorrente das armas utilizadas durante o<br />

enfrentamento:<br />

O chefe do bando <strong>in</strong>vasor deu um tapa em Peito de Pomba que passou a<br />

mão numa terr<strong>in</strong>a de vatapá e despejou na cara dele. [...] Vieram reforços de homens<br />

e mulheres da marcha armados de círios e cassetetes, rosários e soco <strong>in</strong>glês<br />

[...]. Manuel Tropeiro meteu uma frigideira de camarão pelo blusão do chefe<br />

do bando. Jandira escoou um tacho de baba-de-moça pela opa dum sacristão.<br />

Zefer<strong>in</strong>o rabeou de arraia dois cabras de cassetete. Amaro em cima da mesa com<br />

a travessa de dourado foi part<strong>in</strong>do umas cabeças. Sever<strong>in</strong>a tomou a vela acesa de<br />

uma dona toda arreiada de fi tas de irmandade e tocou fogo em duas opas com<br />

álcool da espiriteira. (ibidem, p.557-8)<br />

Como se pode notar, o que sugeria um fi nal trágico ao evento, s<strong>in</strong>aliza,<br />

antes de tudo, para o festivo e alegre, mas que “coloca cont<strong>in</strong>uamente o homem<br />

em confronto com a sociedade, num antagonismo dialético”, como<br />

afi rma Lucas (1976, p.121). As qualidades da categoria dos heróis trágicos<br />

que sobrelevam a honra e coragem são abrasileiradas grotescamente pelo<br />

uso de peixes, frigideiras e travessas como armas de combate. Há, no entanto,<br />

sob a máscara do riso, a dimensão <strong>in</strong>dígena confrontada com a católica,<br />

ao mesmo tempo em que se duplica o ritual do X<strong>in</strong>gu, no qual a luta acontece<br />

apenas com o <strong>in</strong>tuito de divertir: “Icatuíssimos em pleno sol os reluzentes<br />

quarups o que queria dizer que estava o mundo criado ou no caso repovoado<br />

e Maivots<strong>in</strong><strong>in</strong> podia cobrar das suas crianças a paparicação mas óxente que<br />

começaram a fazer os índios mil? Huka-huka” (Callado, 1984, p.255).<br />

O huka-huka 2 é uma luta desportiva entre os homens jovens das diferentes<br />

tribos presentes e é realizado na manhã do último dia do quarup. Assim,<br />

reafi rmam, pela alegria vital da luta, a necessidade de assegurar o poder e o<br />

mistério:<br />

2 Segundo os estudos do antropólogo Rafael José de Menezes Bastos, “em kamayurá, a luta<br />

corporal é conhecida como yuetyk, seu ‘campeão’, como makariat. No português de contato,<br />

seu apelido de ‘huka-huka’ possivelmente resulta da onomatopéia dos sons da respiração dos<br />

lutadores em confronto (aproximadamente ‘u’a repetidas vezes). Ela está largamente presente<br />

no Kwarup e no Jamurikumalu. A luta de dardos caracteriza o Jawari” (Franchetto &<br />

Heckenberger, 2001, p.355).


366 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Canato derrubou Quaganamum, Iró derrubou Tacuni, Itacumã derrubou Iró,<br />

Apucaiaca derrubou Capiala, Pilacui derrubou Suiá, Itacumã derrubou Pilacui,<br />

Apucaiaca derrubou Suiá e Tacuni, Itacumã derrubou Apucaiaca e se encheu de<br />

fúria ao ser desafi ado por fedelho cuicuro e derrubou ele feito quem quer matar e<br />

depois nem olhou o bolo de Cuicuro enroscado no chão depois da porrada na terra<br />

e Itacumã saiu da r<strong>in</strong>ha e foi tocar fl auta e dançar. Huka-huka estava no fi m e<br />

pajés desenterravam Uranaco e demais quarups que agora eram cascas vazias mas<br />

em todo o caso respeitáveis porque t<strong>in</strong>ham tido mistério dentro. (ibidem, p.258)<br />

A<strong>in</strong>da sob o signifi cado do quarup, vê-se relatado, paralelamente à sua<br />

narrativa, o registro histórico da morte de Getulio Vargas, a quem a personagem<br />

Fontoura devotava sua esperança na fundação do Parque <strong>in</strong>dígena.<br />

Enquanto os jovens lutavam o huka-huka, com suas quedas estrondosas no<br />

meio da poeira, Fontoura bebe a notícia da morte de Vargas com os goles de<br />

cachaça. Simetricamente, as quedas são expostas tanto no sentido de fi gurar<br />

o ritmo acelerado da luta em que os corpos caem, como se nota no excerto<br />

acima, quanto na narrativa <strong>in</strong><strong>in</strong>terrupta dos fatos, no excerto abaixo, com<br />

escassa pontuação, suger<strong>in</strong>do a mimese da queda, pela morte, em meio à<br />

agitação dos <strong>in</strong>tegrantes do Posto:<br />

Os índios da huka-huka e do moitará e javari só ouviram porque conheciam<br />

muito bem a voz do Fontoura mas ligar não ligaram o grito dele não, porque<br />

não queria dizer nada que índio soubesse e viram logo que só podia ser lá coisa<br />

entre caraíba o Fontoura berrando o velho se suicidou, o velho se matou, o velho<br />

morreu e nem <strong>in</strong>teressava também que o Cícero berrasse junto dizendo meteu<br />

uma bala no coração e morreu, Getúlio morreu. Otávio saiu correndo como<br />

um doido do campo de pouso e encontrou diante da casa do Posto Cícero aos<br />

soluços e Fontoura repet<strong>in</strong>do Getúlio morreu e Nando e Vanda e Lídia de caras<br />

transtornadas também e todos a perguntarem se seria que era verdade mesmo<br />

quem é que t<strong>in</strong>ha ouvido no rádio e não havia a menor dúvida o velho t<strong>in</strong>ha metido<br />

uma bala no coração e quando Otávio chegou ao pé do rádio no escritório<br />

sentiu aquele cheiro forte de éter e Falua e Ramiro estavam ao pé de uma mala<br />

aberta onde t<strong>in</strong>ha caixa de rodo metálico e os dois t<strong>in</strong>ham lenços na mão e balbuciavam<br />

um para o outro coisas onde o nome de Sônia aparecia o tempo todo<br />

mas Sônia não t<strong>in</strong>ha ouvido nem o nome dela e nem as notícias berradas e nem<br />

nada andando e andando na trilha do Anta [...]. (ibidem, p.258-9)


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 367<br />

Afora a queda fi gurada metaforicamente nos dois movimentos, há que<br />

se notar, também, o sentido de celebração de um morto ilustre, co<strong>in</strong>cidentemente<br />

Uranaco e Getulio. De um lado o mito ameríndio atualizado pela<br />

fi cção; de outro, o homem histórico convertido em mito pela mesma fi cção,<br />

ao resgatar sua saga construída no poder e a <strong>in</strong>fl uência exercida sobre<br />

os <strong>in</strong>tegrantes do Posto, salvas as diferenças das ações praticadas entre o<br />

chefe <strong>in</strong>dígena e o de Estado. Enquanto os índios celebram festivamente<br />

a memória do chefe, sobressa<strong>in</strong>do a ideia de cont<strong>in</strong>uidade, de fertilização,<br />

Getulio é “devorado”, no sentido antropofágico, pela cachaça e pelo éter,<br />

revelando tanto o entorpecimento da situação política nacional, quanto a<br />

manifestação de um possível rompimento do projeto de reconstituição<br />

do país.<br />

Além das refl exões feitas em torno do sentido do quarup expostas até<br />

aqui, há outra considerada relevante para compreender a visão do não índio<br />

ante a naturalidade do <strong>in</strong>dígena, posteriormente assimilada como forma de<br />

ação renovadora. É o que se pode perceber no percurso de Sônia, personagem<br />

prostituta russa que, tal como Alma, do romance Maíra, envolvese<br />

com um <strong>in</strong>dígena. Se considerado o quarup como a celebração de algo<br />

renascente, Sônia traduz em ação o próprio renascimento, ou a tentativa<br />

de realizar algo novo. Interessante observar em sua biografi a que há uma<br />

progressiva ruptura de seus valores até alcançar a transformação total. Ela<br />

rompe conceitos herdados de uma vida cercada de luxo e de pessoas <strong>in</strong>fl<br />

uentes no Rio de Janeiro para <strong>in</strong>serir-se num universo em que o relacionamento<br />

entre homem e mulher toma outra dimensão, como se pode notar<br />

no episódio abaixo, no encontro íntimo com Anta, o <strong>in</strong>dígena que vivia sob<br />

a proteção de sua mulher, sem a preocupação dos demais em realizar as atividades<br />

rot<strong>in</strong>eiras:<br />

Sônia tirou o vestido pelos ombros, depois o resto da roupa e sentiu um gostoso<br />

arrepio pela <strong>in</strong>curiosidade que sua nudez despertava. Será que os índios<br />

não iam falar naquilo? Mulher branca em rede de índio devia valer pelo menos<br />

uma fofoca x<strong>in</strong>guana. Mas ali estava ela nua em pêlo no meio da maloca diante<br />

de homens e mulheres e todo mundo cont<strong>in</strong>uava balouçando em rede de buriti,<br />

dormitando, esfregando t<strong>in</strong>ta no corpo. Sônia entrou na rede do Anta feito fêmea<br />

índia e deixou ele deitar em cima e pensou que só queria estar ali na maloca<br />

com um homem desencrencado por cima e que era só isso. (ibidem, p.244)


368 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

A partir do momento em que se despe não apenas como mulher, mas<br />

culturalmente, seu perfi l de personagem toma outra direção, rumo ao centro<br />

de si mesma, na fuga do mundo civilizado ao mundo a ser descoberto,<br />

do quarup ao <strong>in</strong>terior da mata, tal qual de sua condição de mulher prostituta<br />

ao seu <strong>in</strong>terior:<br />

Sônia saiu quando nem Ramiro prestava atenção e nem n<strong>in</strong>guém ia saber se<br />

ela não estava na sua rede. Podia ir em frente. E não ia levar nada.<br />

[...]<br />

– Anta – disse Sônia. Anta abriu os olhos, viu Sônia, riu, quis logo puxar ela<br />

para a rede.<br />

– Levanta, preguiçoso, vamos embora – disse Sônia.<br />

– Ir onde?<br />

– Embora. Longe. Ramiro vai dizer ao Falua que sou mulher do Anta. Vai<br />

dar encrenca. [...]<br />

Sônia a<strong>in</strong>da ia fazer umas perguntas mas Anta andava como quem sabe onde<br />

vai e foi com suspiro de alívio que ela saiu atrás dele, quieta e satisfeita sent<strong>in</strong>do<br />

nos pés nus e nas canelas o capim orvalhado. [...] O ruído do quarup, que Sônia<br />

e o Anta não ouviam mais há muito chão, subiu de novo nos ares com grande<br />

esforço para galgar tamanho mundo de espaço. (ibidem, p.251-2)<br />

A presença de Sônia na narrativa, tida como uma l<strong>in</strong>ha secundária à<br />

primeira vista, transforma espontaneamente o pormenor em expressão<br />

relevante, e se conjuga com as demais biografi as que propõem uma visão<br />

constante dos desejos humanos na <strong>in</strong>teligibilidade da construção das personagens,<br />

tornando-as reconciliáveis com seus atos. Próximo ao que se pode<br />

chamar de personagens realistas, salvas as diferenças de comportamento<br />

e de classifi cação, são construídas ao longo do romance sem excesso, sem<br />

muitas ambiguidades, mas postulam despir não somente sua <strong>in</strong>timidade,<br />

como também as relações sociais que emergem do sentido conservado em<br />

seu esboço.<br />

Além de Sônia, outras personagens adquirem relevo em torno do núcleo<br />

<strong>in</strong>dígena e contribuem na visualização dos diversos discursos que a narrativa<br />

contempla ao trazer a lume a questão. Nando, portador de um ideal<br />

romântico, como fora apontado neste texto anteriormente, alimenta seu desenvolvimento,<br />

como personagem, em torno da ideia de criar, com os índios


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 369<br />

do X<strong>in</strong>gu, uma sociedade utópica, sonhada no passado pelos jesuítas, uma<br />

república teocrática e comunista, um novo éden.<br />

Por outro lado, o sertanista Fontoura, chefe do posto do SPI, é o defensor<br />

da assistência aos índios e da <strong>in</strong>tervenção do Estado sobre suas condições.<br />

Vive no meio, porém <strong>in</strong>stala-se como porta-voz do domínio “civilizado”<br />

sobre a cultura, conforme notado no episódio em que manda Canato, como<br />

se fosse uma criança, convidar os viz<strong>in</strong>hos camaiurá. É ele “quem fornece<br />

a verdadeira autoridade e confi ança para que o quarup seja levado a bom<br />

termo” (Ávila, 1983, p.245). Deriva de suas atitudes a ideia de que o poder<br />

da palavra passa para o domínio do <strong>in</strong>vasor, sob a máscara de sertanista,<br />

destitu<strong>in</strong>do o <strong>in</strong>dígena de sua liberdade de ação e de organização tribal.<br />

Mesmo dependente do álcool e vivendo sua medíocre condição de herói<br />

às avessas, solitário em seu celibato espontâneo, não abandona a luta e<br />

assume suas limitações. A<strong>in</strong>da que não aparentasse, o nacionalista morre,<br />

bêbado, com o rosto voltado sobre um gigante formigueiro de saúvas, no<br />

Centro Geográfi co do Brasil, descrente da eternidade e das suas próprias<br />

forças, como a renunciar os resultados de seu trabalho frente à salvação humana<br />

dos índios. Assim, na <strong>in</strong>terpretação de Ávila (1983, p.287), no momento<br />

da morte, o <strong>in</strong>digenista confessa seu amor à pátria: “não é que beije<br />

a terra, gesto já muito desgastado, mas deita-se no chão e encosta o ouvido<br />

para sentir palpitar o ‘coração’ do Brasil, querendo assim transformar a<br />

conhecida metáfora num signo vivo, tomado no mais consequente sentido<br />

próprio”.<br />

Vilaverde também pertence ao universo representativo do X<strong>in</strong>gu ao<br />

ocupar o cargo de substituto de Fontoura no Posto do SPI. Sua <strong>in</strong>serção no<br />

espaço <strong>in</strong>dígena dá-se por meio da Expedição ao Centro Geográfi co do Brasil.<br />

Conhecedor da região amazônica e de seus rios, desempenha a função de<br />

<strong>in</strong>digenista como chefe da Expedição ao Centro, que dura em torno de três<br />

meses, ao lado dos demais <strong>in</strong>tegrantes: Nando, Francisca, Fontoura, Olavo,<br />

Ramiro e alguns índios de diferentes etnias. Avesso à formação religiosa,<br />

devota-se, antes de tudo, ao exemplo de Rondon, em sua doação gratuita<br />

e de abnegação. Disso resulta sua implacável luta, tal qual seu antecessor,<br />

pela criação do Parque do X<strong>in</strong>gu. Durante a expedição, auxilia no contato<br />

com tribos isoladas, como os suiá e os txucarramãe, temidos por sua violência<br />

com os civilizados, e os doentes cren-acárore, afetados, violentamente,<br />

por doenças trazidas pelos viz<strong>in</strong>hos ser<strong>in</strong>gueiros, como o sarampo. Sua bio-


370 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

grafi a culm<strong>in</strong>a com o sepultamento de Fontoura no Centro Geográfi co e o<br />

retorno ao Posto do SPI.<br />

Dentre as personagens desse núcleo, há o sociólogo e etnólogo Lauro.<br />

Sua biografi a se tece com a da Expedição ao Centro na condição de estudioso<br />

do fabulário <strong>in</strong>dígena: “– espero colher material sufi ciente para provar<br />

uma teoria psicológica que já tenho, sobre o <strong>in</strong>dígena como formador da<br />

mentalidade brasileira” (Callado, 1984, p.286). Verifi ca-se, no entanto, que<br />

seu conhecimento provém muito mais dos livros do que da realidade brasileira,<br />

tal como se nota nos apontamentos de escritores dos quais colheu <strong>in</strong>formações<br />

a respeito da história do jabuti: “eu devia ter trazido pelo menos<br />

meu Couto Magalhães, ou o Hartt, com suas histórias de jabuti” (ibidem,<br />

p.287). Sua fi losofi a é motivo de ironia, de modo especial de Nando, pelo<br />

fato de não conseguir sequer identifi car, no campo, o jabuti, o taperebazeiro<br />

e o tucumã de que trata a fábula:<br />

– Como é o tucumã? É uma árvore? – disse Francisca.<br />

– Sim – disse Lauro – é uma árvore...<br />

– É uma palmeira – disse Nando.<br />

– Claro – disse Lauro – Astrocaryum Tucumã, classifi cada pelo Martius,<br />

esse da cachoeira.<br />

– Gr<strong>in</strong>go – disse Nando.<br />

– Mas eu quero saber – disse Francisca – como é o tucum, o caroço.<br />

– Bem – disse Lauro. – O tucumã, pela descrição de Von Martius...<br />

Vilaverde que escutava deu uma risada:<br />

– Se você sair andando bem direito em frente bate com a cabeça numa palmeira<br />

de tucum.<br />

Lauro deu um salto:<br />

– É mesmo?<br />

– Aquilo ali, olha – disse Vilaverde. (ibidem, p.324)<br />

Do nacionalismo retirado da fi losofi a da astúcia do jabuti “programático”<br />

e “sem<strong>in</strong>al” (ibidem, p.293-4), entendida por Ávila (1983) como uma<br />

“reedição cômica do <strong>in</strong>dianismo”, Lauro evolui para a valorização de outros<br />

aspectos que revelam, também, a mentalidade brasileira, segu<strong>in</strong>do as<br />

teorias do mexicano José Vasconcelos e do brasileiro Gilberto Freyre, no<br />

que este se refere à mestiçagem:


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 371<br />

Ramiro queria um Brasil afrancesado, engalicado. Eu quero um Brasil bra-<br />

sileiro de verdade, liderando o mundo, um Brasil nosso, mulato. Nossa existência<br />

ocorre fora de nós mesmos. Somos alienados, como dizem os comunas. De<br />

Pedro II a Marta Rocha vivemos embebidos na contemplação de caras estrangeiras.<br />

Precisamos de mulatas em nossos selos, nos monumentos públicos, nas<br />

notas de d<strong>in</strong>heiro. (ibidem, p.305)<br />

A<strong>in</strong>da presente no núcleo em que se encontram os <strong>in</strong>dígenas, de modo<br />

especial o ritual do quarup, estampa-se a conduta do engenheiro Rolando<br />

Vilar, ao estourar d<strong>in</strong>amite no rio, imped<strong>in</strong>do o costume tribal da morte dos<br />

peixes por asfi xia com timbó. É, sem dúvida, conforme aponta Jablonski<br />

(2005, p.107), “um signo do esvaziamento da cultura <strong>in</strong>dígena”, uma vez<br />

que viola parte importante do ciclo cerimonial.<br />

A ira de Fontoura contra a atitude de Vilar, ao presenciar o fato, somente<br />

reforça a veleidade do primeiro frente à função que exerce no posto, uma<br />

máscara que encobre a ideologia da sustentação da cultura, mas que permite<br />

a <strong>in</strong>vasão sem impor-se como defensor propriamente. Sua reação, certamente,<br />

não devolve ao índio sua condição de sujeito livre para tomar suas<br />

decisões, nem tampouco o impedirá de ter contato com técnicas de domínio<br />

da natureza, como quer o marxista Otávio: “– Fontoura ens<strong>in</strong>ando os índios<br />

a se manterem selvagens” (p.187). São situações que levam a pensar<br />

as formas de <strong>in</strong>vasão, nas quais todos querem dar sugestões, impondo seu<br />

conhecimento e sua cultura, sem observarem que as consequências colidem<br />

de forma destrutiva com a cultura primitiva.<br />

Segundo a análise de Ávila (1983, p.157), os objetivos de Vilar “limitam-se<br />

a impedir a ação dos grileiros sobre as terras dos índios e sobretudo<br />

a construir a Transbrasiliana”, porém, como herói, “não vai além do desenvolvimento<br />

com algumas t<strong>in</strong>tas de preocupação social”. Dada a sua obsessão<br />

por construção de estradas e pontes, como meio de acelerar o desenvolvimento,<br />

tem um olhar contrário ao de Fontoura em relação ao trabalho dos<br />

índios. Visualiza neles uma possibilidade de mão de obra abundante, além<br />

de acusá-los de serem submissos às ordens do chefe do posto:<br />

– Mas são uns mandriões, esses teus índios – disse Vilar. – Nem para dar de<br />

comer aos convidados conseguem trabalhar feito gente.<br />

Fontoura emburrou.


372 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

– Quando eles t<strong>in</strong>ham as terras férteis de outrora davam seus quarups com<br />

facilidade. Depois de séculos de exploração e de roubo dos civilizados precisam<br />

da nossa ajuda para recuperarem os hábitos e a alegria de outrora. Nem tudo é<br />

fazer cidade e abrir estrada.<br />

– Eu não veria mal nenhum em botar latagões como Canato e Sariruá <strong>in</strong>clusive<br />

no trabalho de estradas – disse Vilar. – Eles também são brasileiros e devem<br />

ajudar o Brasil a crescer.<br />

– Não são merda nenhuma de brasileiro – disse Fontoura – e não têm de<br />

ajudar merda nenhuma de Brasil a crescer. Nós é que devemos a eles e não o<br />

contrário. Vejo com maior consternação que você a<strong>in</strong>da não entendeu nada do<br />

Parque.<br />

– Já, já – disse Vilar – já entendi, mas vivo lutando com falta de gente para<br />

fazer a Transbrasiliana e me dá pena de ver tanto índio dobrado sem poder pegar<br />

numa picareta.<br />

– Para trabalho escravo não tenho índio não – disse Fontoura. – Bem vou<br />

trabalhar. (Callado, 1984, p.186-7)<br />

Segu<strong>in</strong>do a l<strong>in</strong>ha que constitui o universo de personagens no entorno<br />

<strong>in</strong>dígena, Ramiro Castanho, diretor do SPI, é o que satiriza constantemente<br />

o ideal nacionalista. Ao perder sua amada Sônia para o m<strong>in</strong>istro Gouveia<br />

e, posteriormente, para o índio Anta, impetra uma busca <strong>in</strong>cessante pelo<br />

sertão que o leve a ela. Assim, imbuído muito mais pelo desejo <strong>in</strong>dividual,<br />

participa da experiência no X<strong>in</strong>gu e da demarcação do Centro Geográfi -<br />

co. Dentre os ideais pessimistas de sua tese pode-se destacar o nacionalismo<br />

às avessas, que teria <strong>in</strong>iciado com a tese de Paulo Prado, enfatizando<br />

a vocação para a doença: “o brasileiro quer que doa tudo, naturalmente”<br />

(ibidem,p.129), e a teologia cristã que propõe a grandeza do homem pela<br />

limitação do sofrimento: “Só a doença sensibiliza, compreende, só ela enobrece<br />

e humaniza. Sem o homem o que é o mundo? Um planeta bruto,<br />

cheio de brutos e de árvores. De repente deu o homem” (ibidem, p.126).<br />

Assim, Ramiro vai constru<strong>in</strong>do sua biografi a desde o Rio de Janeiro, em<br />

meio aos milhares de frascos de remédios antigos, ao X<strong>in</strong>gu e ao Centro<br />

Geográfi co, no qual hasteia como pavilhão nacional um pedaço do último<br />

vestido de Sônia que sobrara. Segundo Ávila (1983, p.288), “dessa troca<br />

desrespeitosa uma coisa é possível concluir: assim como Ramiro não desiste<br />

de procurar Sônia, apesar de ela sempre o ter repelido, assim também o


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 373<br />

nacionalismo e a realidade brasileira estariam condenados a um perpétuo<br />

desencontro”.<br />

Entrelaçadas às biografi as apresentadas até aqui estão as de Lídia, psicanalista,<br />

e Vanda, sobr<strong>in</strong>ha de Ramiro. Ambas vão ao X<strong>in</strong>gu, mas os propósitos<br />

são diferentes. Vanda projeta a viagem em razão da visita do presidente<br />

Vargas e Lídia, esposa de Olavo, passa uma temporada em meio aos índios,<br />

na certeza de que sai de lá “apaziguada”: “os índios fasc<strong>in</strong>am a gente porque<br />

são anteriores ao tempo” (Callado, 1984, p.171). Apesar de objetivos<br />

adversos, têm em comum o fato de serem mulheres com que Nando mantém<br />

relacionamento íntimo, tal como acontecera com W<strong>in</strong>ifred, uma espécie<br />

de preparação para o encontro com Francisca na ilha das orquídeas. Lídia<br />

demonstra uma relação mais profunda quanto à cultura <strong>in</strong>dígena, como<br />

se pôde notar no episódio analisado anteriormente, em que mostra a Nando<br />

o índio Aicá, portador da doença fogo selvagem, em meio às festividades do<br />

quarup, fazendo emergir o aspecto antagônico do ritual: de um lado a festa<br />

para evocar o espírito de um morto; de outro, a doença que mata o <strong>in</strong>dígena<br />

e, por extensão, a sua cultura.<br />

Nos diversos excertos trazidos para este texto como ilustrativos, o quarup<br />

centraliza o núcleo semântico da obra por excelência. Dele irradiam-se<br />

as estruturas signifi cativas que tecem as biografi as até o fi nal da narrativa.<br />

Mesmo as situações grotescas, presentes em alguns episódios <strong>in</strong>dividuais<br />

ou coletivos, são resolvidas de modo a não concretizar a visão trágica da realidade<br />

brasileira. No caso do protagonista Nando, por exemplo, a transformação<br />

acontece em meio à festa de carnaval, da qual parte para a guerrilha<br />

do sertão. A<strong>in</strong>da que não comungue dos rituais do quarup, comparando-os<br />

constantemente ao saber adquirido na erudição, desemboca sua realização<br />

pessoal no coletivo, suscitando, mais uma vez, não a imagem de um herói<br />

<strong>in</strong>dividual problemático, mas a de um conjunto construído a partir dos<br />

diferentes discursos, jogos e máscaras, permeados ao longo do romance, e<br />

lançados ao projeto de guerrilha do sertão.<br />

Se em pr<strong>in</strong>cípio parece ao leitor que o quarup, narrado apenas em um<br />

capítulo, é <strong>in</strong>cidente isolado, na totalidade da leitura é possível destacar que<br />

sua posição central na narrativa põe a nu as realidades ideológicas e utópicas,<br />

dentre as quais encontra-se a questão <strong>in</strong>dígena, alicerçada no que há de<br />

mais <strong>in</strong>tenso em sua cultura: a presença do mito. Pelo mito falam os índios,<br />

não por sua voz de desespero frente à aniquilação de sua cultura rompida


374 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

pela <strong>in</strong>serção de valores não índios, mas pela voz da oralidade de Tamo<strong>in</strong><br />

(avô), de Mavots<strong>in</strong><strong>in</strong> e de tantos outros contadores de histórias, permit<strong>in</strong>do<br />

à fi cção possibilidades de retorno aos arquétipos. São eles os fi os que ligam<br />

os <strong>in</strong>tervalos do tempo com a realidade impressa na fi cção. Assim, a narrativa<br />

de Quarup conjuga a dimensão histórica e a mítica, imprim<strong>in</strong>do a cosmologia<br />

ameríndia como ancoragem dos demais segmentos <strong>in</strong>terpretativos.<br />

Episódio-referência<br />

Capítulo III – “A maçã”<br />

A festa do Quarup começou com um moitará. Ou seria talvez mais certo<br />

dizer o moitará se efetuou antes, durante e depois do Quarup e que o trabalho<br />

mágico de Maivots<strong>in</strong><strong>in</strong> começou a borbulhar nos seios dos quarups<br />

a despeito ou com a ajuda de uma <strong>in</strong>frene troca de xerimbabos quatis por<br />

xerimbabos mutuns, de cães por papagaios, de arcos camaiurá por fi os de<br />

miçangas, de cestos de beiju por colares de caramujos calapalo e de pena,<br />

comida, rede, castanha de piqui, erva aquática de fazer sal, macacos, harpias,<br />

pimenta e bordunas por panelas, panel<strong>in</strong>has, panelões, travessas e<br />

chapas de barro dos uaurá e juruna.<br />

Ao lado de Nando, Vanda lavada e fresqu<strong>in</strong>ha como naquela manhã em<br />

que t<strong>in</strong>ha tomado um segundo banho.<br />

– Se lembra? – disse ela r<strong>in</strong>do.<br />

– Se lembro! – disse Nando. – Você chegou bem atrasada ao SPI, aposto.<br />

– Esquisito a gente dizer isto aqui, não é? – disse Vanda. – Serviço de<br />

Proteção aos Índios. É bem verdade que há o Fontoura.<br />

– Este protege mesmo – disse Nando.<br />

– Daqui a pouco está precisando de proteção. Não larga o rádio e a garrafa<br />

de cachaça.<br />

Em torno do rádio no pequeno escritório, o chão estava juncado de pontas<br />

de cigarro e não havia somente o copo do Fontoura ao lado do litro de<br />

cachaça mas igualmente os de Otávio e Falua. Otávio e Fontoura às vezes<br />

pareciam prestes a chorar.<br />

– Incrível! – disse Otávio – mais que um dia <strong>in</strong>teiro aqui, feito uns eremitas,<br />

enquanto se muda a sorte do país.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 375<br />

– Qual – disse Ramiro – não se torture assim Otávio. A sorte ou má sorte<br />

do Brasil vem de outros tempos, quando alteramos o tipo nacional. Você<br />

conhece m<strong>in</strong>has teses e...<br />

– E sou capaz de assass<strong>in</strong>á-lo se me vier com abstrações no <strong>in</strong>stante em<br />

que o governo do Brasil é derrubado em Wash<strong>in</strong>gton, aquele posto de gasol<strong>in</strong>a<br />

disfarçado de templo grego.<br />

Ramiro deu de ombros e olhou para o lado de Nando, como pedido de<br />

socorro.<br />

– Nando é a<strong>in</strong>da pior – disse Otávio – Acha que os homens não devem<br />

mais fazer nações desde que o Império desapareceu. É um ser arcaico. Um<br />

verdadeiro sacerdote. Devia estar fumando com os pajés lá fora. Graças a<br />

Deus vocês não são o povo. O povo está com Vargas e Vargas vai resistir.<br />

Fontoura se levantou, bêbado de pernas, olhos <strong>in</strong>jetados de cachaça e<br />

<strong>in</strong>sônia.<br />

– Acho bom, Otávio, você sair com o Falua no bote. Eu vou precisar de<br />

todos os lugares do avião quando chegar o Olavo.<br />

– Todos os lugares para quê? – disse Otávio.<br />

– Vou levar índios comigo – disse Fontoura. – Vou do Santos Dumont ao<br />

Catete a pé com eles.<br />

– Começou a doideira – disse o Falua. – Índios armados de quê? Arco e<br />

fl echa? Borduna?<br />

– Armados de culhões – disse Fontoura.<br />

– A ideia em si é curiosa – disse Ramiro. – Tratamento de choque. Estive<br />

meditando, Otávio, sobre aquele suposto erro de Paulo Prado. Cheguei<br />

à conclusão de que Paulo Prado talvez tivesse tido razão, ou melhor, que<br />

<strong>in</strong>formantes como Gabriel Soares de Souza não houvesse mentido.<br />

– De que é que você está falando, Ramiro? – disse Otávio. – Que mox<strong>in</strong>ifada<br />

é essa?<br />

– O que me ocorre como possível – disse Ramiro – é que os brancos tenham<br />

encolhido de pênis desde os tempos do Descobrimento. Bem possível<br />

mesmo. Parte do geral desconcerto do mundo civilizado. Um capítulo que<br />

Spengler não escreveu na Decadência do Ocidente.<br />

Otávio cuspiu no chão, sem responder.<br />

– E enquanto o país apodrece dentro de nós todos – disse Otávio – essa<br />

odiosa reunião m<strong>in</strong>isterial do Rio onde só dá generais, com o Zenóbio já do<br />

lado entreguista. Interm<strong>in</strong>ável, a lista de generais presentes! Canrobert, Fi-


376 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

úza, Juarez, Etchegoyen, Ciro Cardoso, Brayner, Nélson de melo, Castelo<br />

Branco, Kruel, Magessi e por aí vai.<br />

– Também, velh<strong>in</strong>ho – disse o Falua – vamos deixar de pieguice. O relatório<br />

do Adil é fogo. Entre os implicados no tiroteio ao Lacerda a fi gura<br />

mais afastada do catete é a do motorista dos pistoleiros, Nélson Raimundo<br />

de Souza, que fazia ponto a c<strong>in</strong>quenta metros do portão pr<strong>in</strong>cipal do Catete.<br />

O mais era Gregório, Mendes, Danton, Lodi, Vargas, Vargas, Vargas.<br />

– Mesmo licenciado eu trago ele para o X<strong>in</strong>gu – disse Fontoura. – Ele<br />

funda o Parque...<br />

– E reassume – disse Otávio – garantido por mil índios x<strong>in</strong>guanos.<br />

– Sônia! Sônia! – disse Falua. – Eu preciso convencer Sônia. Preciso voltar<br />

ao Rio.<br />

Ramiro falou calmo, autoritário.<br />

– Deixe isso comigo, que sou um estranho ao caso. Eu falo com Sônia.<br />

A queda da noite trouxe ao quarup uma irrupção de fogo: da maloca<br />

de Canato saíram brand<strong>in</strong>do palmas acesas de buriti os índios anfi triões,<br />

uialapiti, me<strong>in</strong>aco, aueti, bichos convocados por Maivots<strong>in</strong><strong>in</strong> para animar<br />

os quarups com ritmo e fogo. Velhos descarnados fumando seus longos cigarros<br />

e sentados entre os quarups entoam:<br />

– Ho-ri-ri. Icatô! Ho-ri-ri. Icatô!<br />

Velhas carpideiras respondem:<br />

– Nei-mahon! Nei-mahon!<br />

Os índios em tropel de fogo estão p<strong>in</strong>tados da cabeça aos pés e os cabelos<br />

cortados rente são agora um sólido barrete de urucum. Da grossa barra<br />

de t<strong>in</strong>ta vermelha sobem e se encontram no alto riscas rubras. Os índios<br />

dançam ao som das fl autas enormes e quando marretam o chão com o pé<br />

de pilão o cabelo sólido de t<strong>in</strong>ta bate-lhes nas orelhas como asas escarlates.<br />

– Ho-ri-ri!<br />

– Nei-mahon! (p.241-4)<br />

[...]<br />

R<strong>in</strong>do saiu ele (Ramiro) por ali ao lado de Sônia vestida e ao Posto chegaram<br />

quando um novo bando de pássaros de fogo saía da maloca de Canato.<br />

Pajés camaiurá, cuicuro e uaurá sentados no terreiro fumavam com<br />

os pajés anfi triões, apontando os mortos do quarup e chorando Uranaco,


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 377<br />

relembrando como se mudou de rio para rio, como passou as malocas da<br />

tribo de uma margem para outra, como pescou uma pirarara e num dia de<br />

huka-huka deu com as costas de v<strong>in</strong>te adversários no pó.<br />

– Ho-ri-ri, Icatô! – dizem os velhos.<br />

– Nei-mahon, nei-mahon! – dizem as carpideiras.<br />

Também convocados por Maivots<strong>in</strong><strong>in</strong> os visitantes camaiurá, cuicuro,<br />

uaurá atroam os ares batendo pé no chão, dançando e correndo em volta do<br />

fogo. Na casa do Posto, ao pé do rádio, os brancos. (p.248-9)<br />

[...]<br />

Icatuíssimos em pleno sol reluzentes os quarups o que queria dizer que<br />

estava o mundo criado ou no caso repovoado e Maivots<strong>in</strong><strong>in</strong> podia cobrar<br />

das suas crianças a paparicação mas óxente que começaram a fazer os índios<br />

mil? Huka-huka. De <strong>in</strong>ício fi cou claro que Itacumã não ia sujar as costas no<br />

terreiro pois ai dos tristes uialapiti o campeão sariruá não querendo crer na<br />

esguia força de Itacumã deixara-se muito empanturrar de beiju durante o<br />

ano e mesmo quando os lutadores estavam a<strong>in</strong>da de quatro no chão olhando-se<br />

feito duas onças Sariruá a gente sentia que t<strong>in</strong>ha começado a virar pau<br />

de quarup roliço e dobrado mas que sem sol não vai enquanto Itacumã-<br />

Nilo a gente quase via uma corda retesa por trás dele e um bico de fl echa na<br />

tonsura do cabelo. Se Sariruá arredasse na hora do bote Itacumã era capaz<br />

de sair silvando e varar a garça que apontava no céu lá embaixo. Antes da<br />

corda ser largada Sariruá gadunhou o pescoço de Itacumã e levantando num<br />

repelão foi de saída atropelando o outro terreiro afora enfunado pelos uivos<br />

uialapiti. Quando Itacumã fi rmou calcanhar no chão um cipoal de músculo<br />

descarnou ele todo e Sariruá de braços desgalhados no terreiro fi cou<br />

feito um pau d’arco abraçado num relâmpago. [...] Os uialapiti ouviram<br />

como grande estrondo o tremor de terra, o baque dos costados de Sariruá no<br />

chão. Parrudo e grosso. Quaganamum Capitão me<strong>in</strong>aco mal deixa Itacumã<br />

se afastar e já o chama à luta e Itacumã como querendo variar a bossa leva o<br />

Quaga ao chão aos poucos como quando verga em tre<strong>in</strong>o seu irmão menor<br />

e a um palmo do chão ergue o Quaga de novo. Tamapu bêbado com vitória<br />

do fi lho sobre campeão Sariruá nem olha a segunda luta de Itacumã e vai<br />

para a primeira velha uialapiti que vê e segurando o membro fode o ar na<br />

frente dela como se quisesse ens<strong>in</strong>ar a fazer campeão de huka-huka. Canato


378 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

sai agora para o cuicuro Taculavi e restabelece prestígio uialapiti derrubando<br />

Taculavi como quem vira uma cadeira no chão pela perna. [...] Pajés e<br />

velhas que a noite <strong>in</strong>teira t<strong>in</strong>ham cantado feito bacuraus a<strong>in</strong>da piavam sabe<br />

Deus o quê em volta dos quarups. Velha Carumá terrível marchou direta<br />

para o fi lho que t<strong>in</strong>ha levado surra de Canato e tirou os br<strong>in</strong>cos das orelhas<br />

dele. Sariruá depois da luta com Itacumã disse não a todos os desafi os<br />

sabendo que só perdia de Itacumã mas pra que ganhar dum outro? Ficou<br />

parado, olhando sem ver as muitas lutas travadas entre tantos. [...] Quando<br />

o irmão de Itacumã deu com as costas de Cravi no chão, o tuxaua Tamapu<br />

dançou em círculo diante dos índios exib<strong>in</strong>do nas mãos em concha membros<br />

e bagos e riscando em torno de si mesmo e das suas armas de garanhão<br />

de campeões de huka-huka uma roda de gargalhadas que se propagou pela<br />

huka e foi morrer em moitará e javari distante. Canato derrubou Quaganamum,<br />

Iró derrubou Tacuni, Itacumã derrubou Iró, Apucaiaca derrubou<br />

Capiala, Pilacui derrubou Suiá, Itacumã derrubou Pilacui, Apucaiaca derrubou<br />

Suiá e Tacuni, Itacumã derrubou Apucaiaca e se encheu de fúria ao<br />

ser desafi ado por fedelho cuicuro e derrubou ele feito quem quer matar e<br />

depois nem olhou o bolo de Cuicuro enroscado no chão depois da porrada<br />

na terra e Itacumã saiu da r<strong>in</strong>ha e foi tocar fl auta e dançar. Huka-huka estava<br />

no fi m e pajés desenterravam Uranaco e demais quarups que agora eram<br />

cascas vazias mas em todo o caso respeitáveis porque t<strong>in</strong>ham tido mistério<br />

dentro. Os índios da huka-huka e do moitará e javari só ouviram porque<br />

conheciam muito bem a voz do Fontoura mas ligar não ligaram o grito dele<br />

não, porque não queria dizer nada que índio soubesse e viram logo que só<br />

podia ser lá coisa entre caraíba o Fontoura berrando o velho se suicidou, o<br />

velho se matou, o velho morreu e nem <strong>in</strong>teressava também que o Cícero<br />

berrasse junto dizendo meteu uma bala no coração e morreu, Getúlio morreu.<br />

Otávio saiu correndo como um doido do campo de pouso e encontrou<br />

diante da casa do Posto Cícero aos soluços e Fontoura repet<strong>in</strong>do Getúlio<br />

morreu e Nando e Vanda e Lídia de caras transtornadas também e todos a<br />

perguntarem se seria que era verdade mesmo quem é que t<strong>in</strong>ha ouvido no<br />

rádio e não havia a menor dúvida o velho t<strong>in</strong>ha metido uma bala no coração<br />

e quando Otávio chegou ao pé do rádio no escritório sentiu aquele cheiro<br />

forte de éter e Falua e Ramiro estavam ao pé de uma mala aberta onde t<strong>in</strong>ha<br />

caixa de rodo metálico e os dois t<strong>in</strong>ham lenços na mão e balbuciavam um<br />

para o outro coisas onde o nome de Sônia aparecia o tempo todo mas Sônia


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 379<br />

não t<strong>in</strong>ha ouvido nem o nome dela e nem as notícias berradas e nem nada<br />

andando e andando na trilha do Anta que t<strong>in</strong>ha graças a Deus entendido<br />

naquela cabeça bonita por fora e esquisita por dentro que t<strong>in</strong>ha que andar<br />

muito e que ir bem longe para guardar a fêmea branca que t<strong>in</strong>ha arranjado<br />

com sua tesão e sua malandragem e Sônia que não escutou nada só que t<strong>in</strong>ha<br />

que seguir a musculosa traseira castanha com miçanga azul e cada vez<br />

entraram mais na mata ele e ela como um fi <strong>in</strong>ho de Tuatuariz<strong>in</strong>ho de nada<br />

se perdendo para todo o sempre no marzão verdão do matagal e Otávio empurrou<br />

para o chão Ramiro e Falua e esguichou o lança-perfume bem na<br />

cara dos dois que protestaram não faz isso Sônia volta Sônia e saíram quase<br />

tropeçando nos quarups que v<strong>in</strong>ham rolando, rolando pelo declive tocados<br />

pelos pajés e plaf plaf plaf um atrás do outro foram entrando n’água e o<br />

maior de Uranaco mergulhou um pouco, emergiu, saiu boiando com sua<br />

faixa de algodão t<strong>in</strong>to e suas penas de arara e de gavião (p.255-9).


2<br />

MAÍRA: OS AFLUENTES REPRESENTATIVOS<br />

NO ENCONTRO DO INDÍGENA<br />

COM A EXPERIÊNCIA DA CIVILIZAÇÃO<br />

(DARCY RIBEIRO)<br />

Maíra é desafogado, mas cheio de estranha solenidade.<br />

Antonio Candido<br />

Maíra, romance de Darcy Ribeiro (2001), teve sua primeira tentativa de<br />

elaboração em meio às escritas de O processo civilizatório, no exílio, quando<br />

um médico o obrigou a um período de descanso: “escrevi por razões terapêuticas”,<br />

afi rma Darcy na Introdução, “escrevi para sair da surmenage<br />

em que caíra no meu exílio uruguaio, e que já não me dava paz nem para<br />

dormir ou para fi car acordado” (ibidem, p.19). Numa hospedaria italiana,<br />

entre um bom v<strong>in</strong>ho e uma lareira, começou a escrever Maíra: “creio que<br />

ele preexistia dentro de mim, como uma possibilidade, pronto a ser vomitado”<br />

(ibidem, p.20).<br />

A segunda versão surgiu numa prisão brasileira, em 1969: “creio que<br />

o fi z para ter com quem conviver, já que me condenavam ao isolamento<br />

<strong>in</strong>terno, proibido de falar com qualquer centena de soldados e sargentos<br />

que rondavam por ali. [...] comecei a reescrever Maíra desde o ponto zero,<br />

porque não t<strong>in</strong>ha qualquer anotação da tentativa anterior” (ibidem, p.20).<br />

A última versão foi escrita, também, em tempos de exílio do autor, em<br />

Lima, no decorrer de 1975, quando se fi xou no Peru, como <strong>in</strong>tegrante da<br />

equipe do presidente Velasco Alvarado: “tive longos tempos vazios a preencher.<br />

Um dia me voltou a ideia de reescrever Maíra. Outra vez não tendo<br />

anotação nenhuma dos exercícios anteriores, tive que recomeçar. Foi uma<br />

beleza” (ibidem, p.21). A liberdade vivida durante a reescritura, pelo jo-


382 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

vem de v<strong>in</strong>te e poucos anos, era a mesma sentida na aldeia, convivendo com<br />

o povo silvícola, “recordando episódios, conversas, observações, milhares<br />

delas que eu não podia supor jamais que estivessem depositadas em m<strong>in</strong>ha<br />

memória” (ibidem, p.22). Foi publicado no Brasil, em 1976, quando Darcy<br />

retornou ao país, 13 anos depois.<br />

Para este trabalho, tomou-se a 14ª edição, publicada em 2001, como edição<br />

especial comemorativa dos v<strong>in</strong>te anos da obra, que <strong>in</strong>clui, além da biografi<br />

a do autor, dez textos escritos pelos nomes mais signifi cativos da crítica<br />

literária brasileira e estrangeira. Além da fortuna crítica presente nesta edição,<br />

estão <strong>in</strong>seridas as ilustrações de Poty, suprimidas na edição de 1980.<br />

Maíra foi, certamente, um marco importante para o corpus da literatura<br />

nacional que presenciava a <strong>in</strong>auguração de uma narrativa v<strong>in</strong>da da memória<br />

de um dos mais “trepidantes” homens que conseguiu reunir, a seu modo,<br />

o saber oriundo da etnografi a com os moldes da fi cção. A essa <strong>in</strong>venção,<br />

Ellen Spielmann (2001, p.423) chamou de etnotexto: “em Maíra, Darcy<br />

ultrapassa a fronteira entre literatura e etnografi a, entre romance e texto etnográfi<br />

co. [...] me parece ser a co<strong>in</strong>cidência do momento etnográfi co com a<br />

época em que o livro foi escrito”.<br />

Dados os aspectos históricos e temáticos, sua publicação sofreu todo tipo<br />

de desconfi ança pelo fato de ser o autor “malvisto pelo regime ditatorial imperante”<br />

(Castro, 2001, p.391), como também pelo clima de desconfi ança<br />

diante de um texto produzido a partir da “sucata de material antropológico”.<br />

Quando foi publicado, Moacir Werneck de Castro saudou-o com um<br />

artigo em 4 de fevereiro de 1977, sob o título “De etnólogo a romancista”,<br />

num órgão da imprensa perseguido pelo regime, o semanário Op<strong>in</strong>ião.<br />

Transcreve-se, abaixo, um trecho em que Castro (2001, p.391-2) retoma o<br />

assunto ao comentar a obra na ocasião dos seus v<strong>in</strong>te anos:<br />

o romance de Darcy Ribeiro foi recebido num ambiente de estranha <strong>in</strong>diferença.<br />

Salvo uma ou duas resenhas, não houve comentarista de livros que identifi -<br />

casse na safra de 1976 o vigor, o nível, a orig<strong>in</strong>alidade de uma obra que, provavelmente,<br />

marcará a segunda metade do século XX na literatura brasileira assim<br />

como Macunaíma, de Mário de Andrade, marcou a primeira metade. Não tendo<br />

obrigação de escrever sobre produção literária corrente, fi quei na expectativa<br />

de que algum crítico soltasse gostosamente o grito da descoberta. Mas em vão.<br />

O lançamento de Maíra passou praticamente em brancas nuvens. [...] Temo


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 383<br />

que o reconhecimento do valor desse livro nos venha de torna-viagem, quando<br />

ele for traduzido nas línguas das metrópoles culturais, ou quando algum brazilianist<br />

chamar a atenção para o grande romance que é Maíra – e então a turma<br />

cá de casa, pasmada, acorde para o óbvio.<br />

Cabe ressaltar que as profecias de Castro se cumpriram. Em 2001, aos<br />

v<strong>in</strong>te anos de idade, o romance contava com 48 edições em oito línguas. A<br />

transição entre a etnografi a e a literatura foi assunto suscitado, também, por<br />

Antonio Candido (2001, p.381-2), nas mesmas circunstâncias de Castro,<br />

quanto às preocupações com o resultado da fusão de relatos e análises com a<br />

matéria da fi cção, conforme se percebe no excerto que segue:<br />

no tempo em que lia certos antropólogos que, como Darcy Ribeiro, escrevem<br />

bem, eu especulava sobre o que aconteceria se eles criassem fi cções a partir dos<br />

seus relatos e análises, para extrair da realidade aquilo que só a imag<strong>in</strong>ação perfaz.<br />

[...] Digo isso, porque senti, lendo Maíra, que Darcy Ribeiro t<strong>in</strong>ha correspondido<br />

às m<strong>in</strong>has vagas esperanças de outro tempo, passando do trabalho<br />

de campo e das sínteses <strong>in</strong>terpretativas para a transfi guração fi ccional do índio<br />

brasileiro. Mas de modo muito próprio. [...] – primeiro porque a amplitude e<br />

profundidade do seu conhecimento etnológico é sem equivalente nos que abordaram<br />

em literatura a vida do índio. Em seguida, porque não se concentrou no<br />

universo tribal e preferiu, com plena consciência da situação presente, estabelecer<br />

o relacionamento deste com o mundo dito civilizado, que o cerca e destrói.<br />

A tensão estabelecida tanto no ato da publicação, oriunda da história de<br />

vida do autor, quanto na ausência de um olhar mais penetrante e sem preconceito<br />

da crítica em relação ao valor estético da obra impulsiona, de modo signifi<br />

cativo, a visão contemporânea que faz o movimento de retorno no que lhe<br />

cabe à orig<strong>in</strong>alidade com que resgata as mentalidades constitutivas da cultura<br />

brasileira e, de modo particular, o índio. O passo que se pretende dar neste<br />

excurso, a partir de agora, é o de percorrer as l<strong>in</strong>has justapostas de temas e<br />

de dizeres que foram tecidas na narrativa, tal como expressa a voz de Isaías,<br />

personagem pr<strong>in</strong>cipal: “história serve para contar, para não esquecer, para<br />

não acabar. Coisa bonita se faz sem pressa, devagar” (Ribeiro, 2001, p.245).<br />

Naturalmente, a crítica especializada cumpriu sua função ao derivar as<br />

hipóteses mais relevantes no tocante à comb<strong>in</strong>ação dos mundos <strong>in</strong>seridos,


384 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

vista a profundidade com que o autor mostrou o encontro do primitivo com<br />

a experiência do não índio. Um universo <strong>in</strong>esgotável de assuntos que se<br />

multiplicam a cada nova <strong>in</strong>vestida de leitura.<br />

Assim, a visão panorâmica que se tem de Maíra é a de um mosaico assentado<br />

sobre a fl oresta amazônica. De seu colorido emergem os pigmentos<br />

<strong>in</strong>dígenas mairuns, representados em seus rituais e mitos, somados à materialidade<br />

da construção de personagens complexas, a exemplo de Alma, a<br />

carioca que abandona sua vida na metrópole e procura redimir-se no mundo<br />

desconhecido e fasc<strong>in</strong>ante da aldeia. Ou, a<strong>in</strong>da, pontuado no discurso<br />

dos que se dizem pastores (norte-americanos ou não) imbuídos de <strong>in</strong>teresses<br />

escusos, <strong>in</strong>vasores da cultura autóctone, tornando-a objeto de confl ito.<br />

A forma como são conjugados os capítulos quebra toda a l<strong>in</strong>earidade da<br />

obra, fazendo, com isso, que planos se entrecruzem em tempos e espaços<br />

dist<strong>in</strong>tos. A fragmentação que se dá entre as partes e entre os 66 capítulos<br />

resulta na <strong>in</strong>scrição do romance “no universo típico das narrativas pósmodernas”<br />

(Maria, 2001, p.406), uma pluralidade de discursos que ora se<br />

<strong>in</strong>terseccionam, ora se distanciam, e desembocam no Indez (último capítulo)<br />

em que todos se misturam como que se o leitor estivesse mergulhado na<br />

<strong>in</strong>timidade dos temas e reconhecido por meio das vozes.<br />

Para Candido (2001, p.381), a ruptura da l<strong>in</strong>guagem convencional<br />

aponta para uma característica que envolve tanto o estilo fervoroso do autor,<br />

ao dar um valor relevante a cada pág<strong>in</strong>a, como também <strong>in</strong>sere o leitor<br />

nessa mesma perspectiva. Por isso, assim defi ne a obra:<br />

um livro vagaroso, de compasso medido, que precisa ser lido lentamente, não só<br />

porque a matéria é densa, <strong>in</strong>tr<strong>in</strong>cada, cheia de dados sobre a vida e a mitologia<br />

<strong>in</strong>dígenas; não só porque os desvios e afl uentes se multiplicam – mas porque a<br />

maestria estilística segura o andar do leitor, difi culta a leitura superfi cial e cria<br />

a cada l<strong>in</strong>ha um <strong>in</strong>teresse que precisa ser satisfeito pelo cuidado da percepção e<br />

da atenção.<br />

A comb<strong>in</strong>ação da multiplicidade dos elementos confl ui para a construção<br />

das personagens, consolidada apenas com a leitura total da obra e após a<br />

cimentação desses fragmentos que lhe farão sobressair o desenho fi nal, tudo<br />

amalgamado graças à posição que os capítulos ocupam, uma “fusão ardente<br />

de sujeito e objeto, pathos e verdade, que sai de cada um de seus episódios”<br />

(Bosi, 2001, p.387).


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 385<br />

Não há, por exemplo, a presença de um herói <strong>in</strong>dígena moldado na l<strong>in</strong>ha<br />

imag<strong>in</strong>ária e l<strong>in</strong>ear, a exemplo dos românticos, pois o fragmento não permite<br />

que se o faça. Sua trajetória é fruto da colagem das peças: de um lado as<br />

rem<strong>in</strong>iscências da vida da aldeia, seus costumes e a liberdade que encerram;<br />

de outro, o presente melancólico, quase trágico, da formação católica: “o<br />

confl ito essencial refl etido no romance é o choque de duas teogonias que<br />

lutam na mente do índio feito padre: o Isaías que se torna Avá, sucessor de<br />

Anacã, tuxaua da tribo dos mairuns; ‘o outro em busca do um’, dividido<br />

entre o Maíra ancestral e o Deus superposto em Roma pelos padres missionários”<br />

(Castro, 2001, p.392).<br />

Ao apoiar-se no alicerce do fragmento, a narrativa sustenta a representação<br />

do mundo mairum em suas diversas formas. O real <strong>in</strong>dígena é remodelado,<br />

revitalizado cont<strong>in</strong>uamente para captar sua validade fi ccional. Esse<br />

aspecto <strong>in</strong>fl uencia o entendimento da representação <strong>in</strong>digenista, percebida<br />

tanto na trajetória de Isaías quanto na biografi a coletiva mairuna, considerando-se<br />

as possibilidades de transmutação no desenvolvimento da narrativa<br />

desde a saída do futuro tuxaua da aldeia quando criança, a passagem pelo<br />

sem<strong>in</strong>ário, em Roma, junto aos padres, e o seu retorno.<br />

Quanto aos povos, há um tempo de espera, de recuperar o que foi des<strong>in</strong>dianizado<br />

em Isaías, o que resulta no paralelismo entre enredo e estrutura.<br />

Para Coelho (2001, p.419), “de acordo com o sumário, há uma fragmentação<br />

narrativa, decorrente da diversidade de textos-fragmentos que a compõem”.<br />

Por um lado, essa fragmentação se mantém no enredo ao recortar as diferentes<br />

biografi as <strong>in</strong>seridas, e na forma de organizá-las; por outro, coexiste com<br />

a circularidade dos rituais do passado mairum, ao recriar o mito presente no<br />

nascimento e na morte do Avá, o que sustentaria a existência dos mairuns.<br />

Diante dos dois mundos apreendidos por meio dos materiais já apontados,<br />

podem ser observados, a priori, os aspectos voltados à religiosidade,<br />

tanto da cultura mairuna quanto da não índia. No que se refere à mitologia<br />

cristã, a narrativa estrutura-se à forma da missa, que se apresenta nas segu<strong>in</strong>tes<br />

partes: antífona, homilia, canon e corpus. Segundo Ribeiro (2001,<br />

p.22), na <strong>in</strong>trodução da edição em estudo, “descobrira que a estrutura de<br />

Maíra era a da missa católica, e tudo reescrevi com essa <strong>in</strong>tencionalidade.<br />

Vira bem que o tema verdadeiro de Maíra era a morte de Deus, que morria<br />

porque o mundo mairum estava condenado, não t<strong>in</strong>ha salvação”. Tais elementos<br />

são impresc<strong>in</strong>díveis na organização do enredo que entrelaça ritos


386 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

da aldeia e rituais católicos, mediados por Isaías, personagem que merece<br />

especial atenção por construir-se nos dois polos, passando pelo processo de<br />

aculturação. A respeito da composição dos assuntos, afi rma o autor:<br />

não tive nenhum escrúpulo em misturar mitos, lendas e contos de tantos povos,<br />

mesmo porque conheço bem meus índios. Sei que eles não têm nenhum fanatismo<br />

de verdade única. São perfeitamente capazes de aceitar múltiplas versões<br />

de um mesmo evento, tomando todas como verdadeiras. Estou certo de que<br />

qualquer índio brasileiro, lendo a mitologia <strong>in</strong>scrita em Maíra, a achará perfeitamente<br />

verossímil. (ibidem)<br />

Para aproximar a estrutura da obra à mitologia cristã, as partes estão<br />

dispostas tal qual o ritual a que se remete. Parte dos ritos <strong>in</strong>iciais (Antífona)<br />

passa para a parte em que a palavra é o centro (Homilia) e alcança o ápice no<br />

rito sacramental em que se encontram o ritual de transubstanciação (Canon)<br />

e de antropofagia (Corpus).<br />

Na Antífona, que corresponde à abertura do ritual de sacrifício da missa,<br />

encontra-se o “material temático da narrativa, sendo que os temas, além de<br />

dist<strong>in</strong>tos, são bem contrastantes, a fi m de facilitar a discrim<strong>in</strong>ação do leitor”<br />

(Angulo, 1988, p.58). O simbolismo expresso na imagem da jovem não índia,<br />

na Praia do Iparanã, (capítulo I – “A morta”), impulsiona o universo<br />

polifônico que dará sustentação às l<strong>in</strong>has tangenciais do romance.<br />

A personagem Alma é apresentada em dois momentos de sua l<strong>in</strong>ha biográfi<br />

ca: no primeiro capítulo é encontrada morta após dar à luz dois nascituros,<br />

o que, simbolicamente, traduz a morte física envolvida num mistério<br />

a ser submetido posteriormente à <strong>in</strong>vestigação. Tal <strong>in</strong>cidente proporciona a<br />

<strong>in</strong>serção do discurso ofi cial, ao transpor para a narrativa o depoimento do<br />

suíço Peter Becker, que denuncia o corpo encontrado.<br />

No capítulo XII (“Serviço”), o leitor compreende com mais clareza a razão<br />

da existência de uma mulher não índia entre os índios mairuns. Aqui,<br />

a personagem revela a face contraditória da experiência que viveu com o<br />

pai e a busca desenfreada de sua fi gura nos muitos homens a quem se entregou<br />

no Rio de Janeiro. Surge, em meio aos tratamentos da dependência<br />

das drogas, o desejo de se tornar missionária entre os índios: “aqui vou eu,<br />

meu Deus, para servi-lo. Servi-lo com m<strong>in</strong>ha alma e com meu corpo, no<br />

sentimento e na dor. Do mundo nada quero e tudo quero. Isso é o que peço


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 387<br />

agora: a oportunidade de purgar na dor os meus pecados; o gozo de sofrer<br />

pelo amor de Deus” (Ribeiro, 2001, p.91).<br />

Segundo Bosi (2001, p.389), “tudo nela é veleidade, tudo nela carece de<br />

identidade, pois traz da sua vida de burguesa carioca uma rede de neuroses<br />

misturadas a um vago projeto de autorredenção”. São dois textos com<br />

relatos aparentemente <strong>in</strong>dependentes, porém, reveladores do conteúdo fulcral<br />

de sua l<strong>in</strong>ha biográfi ca, além de constituírem o elemento de liga com<br />

seu contrapeso, Isaías. O traçado que dá forma à Alma é construído ponto<br />

a ponto pelo narrador, como se fosse adm<strong>in</strong>istrando o conhecimento que<br />

possui em detrimento da ansiedade do leitor por revelações. A cada capítulo<br />

emergem aspectos específi cos fi ltrados que o satisfazem, temporariamente,<br />

quanto à forma fi nal da personagem. É uma satisfação de leitura temporal,<br />

vista a dispersão dos capítulos em meio a outras l<strong>in</strong>has, o que remete à real<br />

tensão que a narrativa exerce sobre a percepção do leitor à espera de um<br />

novo encontro e do desvelamento do relato.<br />

Encontra-se, a<strong>in</strong>da nessa primeira parte, a l<strong>in</strong>ha narrativa que <strong>in</strong>sere os<br />

rituais em torno do funeral de Anacã (capítulo II, V, VIII, XIV e XVII),<br />

nos quais a morte “traz em si o pr<strong>in</strong>cípio da cont<strong>in</strong>uidade” (Ramos, 2001,<br />

p.411), ocupando cerca de um terço do romance. O ciclo <strong>in</strong>icia-se com<br />

a imagem da casa dos homens (baíto), onde vivos e mortos (os espíritos)<br />

aguardam o anúncio do velho tuxaua:<br />

– Sim, mandei chamá-los – diz o tuxaua em voz baixa de onde está acocorado,<br />

olhando pro chão. – Mandei chamá-los, sim. Estou cansado, vocês sabem.<br />

Já dancei muito Coraci-Iaci. Já cantei muito maré-maré. Já comi muito pacu.<br />

Já bebi muito cauim. Fodi bastante. Já ri demais. Estou velho. Chegou a m<strong>in</strong>ha<br />

hora, vou acabar. Sim, vou deixar vocês aí, sem tuxaua. Órfãos de mim. Preciso<br />

morrer para que surja e cresça o tuxaua novo.<br />

O aroe zumbe surdamente seu pequeno maracá e começa a falar aos mortos:<br />

– É sim, parente, mas espera. Sim, é o tuxaua Anacã que fala. É ele. Disse<br />

que vai morrer hoje. Vai sim, mas não vai ser agora, nem vai ser aqui. Sim, ele<br />

vai dar o passo, o grande passo. Mas não vai ser aqui, nem será agora. Ele vai<br />

morrer no anoitecer de vocês, na nossa madrugada. (Ribeiro, 2001, p.37)<br />

Durante o período do funeral, o ritual de passagem é devidamente polido:<br />

a esteira onde Anacã será colocado, a p<strong>in</strong>tura do corpo com urucum


388 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

e do rosto com jenipapo, a cobertura dos olhos com duas conchas-itãs. No<br />

centro do pátio, é depositado numa cova aberta sob sua medida, com um<br />

palmo e meio de fundura, coberto de terra, e será regado durante o tempo<br />

necessário para que suas carnes sejam desfeitas. Após esse período, os ossos<br />

são retirados, limpados com folhas de maniva e emplumados ao som<br />

do maracá e acompanhado pelo choro das mulheres. Colocados num cestopatuá,<br />

seguem em direção ao Iparanã, onde serão presos ao mastro de aroeira<br />

fi ncado no meio da lagoa. O mito da morte, aqui, tem “um começo e<br />

um fi m: a morte-que-é-nascimento no fi m da espiral sendo a contraparte<br />

do nascimento-que-é-morte que lhe dá <strong>in</strong>ício” (Kellogg & Scholes, 1977,<br />

p.157), tal qual sugere, também, a morte dos gêmeos encontrados na praia.<br />

Acerca do ciclo de morte de Anacã, Coelho (1989, p.15) afi rma que<br />

se, por um lado, os ritos mairuns têm o papel de preservar a vida <strong>in</strong>dígena, resgatando<br />

a tradição oral pelo recontar das velhas histórias e pela conservação dos<br />

mitos que servem de modelo para os rituais, por outro, como histórias, <strong>in</strong>seridas<br />

no romance, exercem função semelhante: são velhas histórias, narradas para que<br />

não fi quem “na usura da memória alheia, à véspera do longo esquecimento”.<br />

O que diferencia a signifi cação da morte de Anacã em relação a Alma,<br />

ambas estrategicamente colocadas na primeira parte da obra, é que o ciclo<br />

de Anacã se abre e fecha na mesma parte e, o mais importante, revela a<br />

possibilidade de renovação, de eleger um sucessor para dar vida à aldeia,<br />

enquanto a de Alma, encerra, no mínimo, o signifi cado de contradição, tal<br />

como sua l<strong>in</strong>ha biográfi ca foi construída. Em busca da liberdade, encontra<br />

a morte, o fi m. Dá a luz a dois men<strong>in</strong>os que, ao nascerem, morrem. É um<br />

ciclo que se abre na Antífona, mas não se fecha. Só é reconstituído nos capítulos<br />

posteriores, em que se amarram os acontecimentos que deram fi sionomia<br />

à trajetória da jovem.<br />

Outra biografi a <strong>in</strong>dividual que se abre na primeira parte é a de Isaías,<br />

personagem central e contrapeso de Alma. São três capítulos que dão ao leitor<br />

as pistas acerca da experiência de aculturação ante a educação teológica<br />

em Roma e seu retorno à Santa Cruz, no Rio de Janeiro. O narrador utiliza<br />

os mesmos artifícios de l<strong>in</strong>guagem usados para del<strong>in</strong>ear a personagem<br />

Alma. Não é um segmento narrativo l<strong>in</strong>ear, em que o leitor se encontra com<br />

o perfi l logo de imediato; requer, como anteriormente, um percurso de es-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 389<br />

pera para que os fragmentos sejam dosados conforme cada l<strong>in</strong>ha vai sendo<br />

justaposta à outra.<br />

O capítulo III (“Isaías”) apresenta uma voz em primeira pessoa e lança<br />

o leitor em meio a um monólogo <strong>in</strong>terior da personagem que a<strong>in</strong>da não foi<br />

apresentada, evidenciando uma mente atormentada por um dilema. Isso<br />

pode ser verifi cado porque o título traz o nome próprio “Isaías”, e o desenvolvimento<br />

do capítulo gira em forma de labir<strong>in</strong>to ao revelar o confronto<br />

da mente com o problema da identidade mairuna que emerge, porém, com<br />

ausência de quando e onde, aspectos que serão preenchidos pelo leitor a<br />

partir das analepses feitas no decorrer da obra.<br />

Na perspectiva de movimento entre espaço e tempo, percebe-se que Isaías,<br />

ao se afastar da aldeia, não converte o amor por sua cultura em ódio; pelo<br />

contrário, sua contradição <strong>in</strong>terna resulta da vontade de abandonar a vida<br />

sacerdotal, pois o laço afetivo que o prende a seu povo o faz querer voltar à<br />

unidade, a ser sujeito. A dualidade presente em seus pensamentos durante<br />

o período em que se encontra em meio aos padres será, também, a dualidade<br />

de suas ações na aldeia após seu retorno. O que se apreende é que, longe<br />

de sua cultura, entrega-se a uma fuga de sua condição <strong>in</strong>defi nida. Afi nal,<br />

quem é Isaías? Um índio que será missionário ou um missionário-índio?<br />

Seus pensamentos revelam o pr<strong>in</strong>cípio de complexidade existente na defi -<br />

nição de si mesmo:<br />

todos os homens nascem em Jerusalém. Eu também? Padre serei, m<strong>in</strong>istro de<br />

Deus da Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo. Mas gente, eu sou? Não, não sou<br />

n<strong>in</strong>guém. Melhor que seja padre, assim poderei viver quieto e talvez até ajudar<br />

o próximo, Isto é, se o próximo deixar que um índio de merda o abençoe, o confesse,<br />

o perdoe. Reconheço que estou com complexo, obsessivo: paranóico ou<br />

esquizofrênico? Sei lá. (Ribeiro, 2001, p.41)<br />

No capítulo XIX (“Avá”), narrado por Isaías, encontra-se o duelo entre<br />

os dois polos que dilaceram a identidade do futuro chefe da aldeia. Diante<br />

da convivência com o espaço atópico e hostil da clausura em Roma, Isaías<br />

recolhe-se em seus medos: “daqui de cima, olhando não lá pra fora, mas cá<br />

pra dentro, para o fundo de mim, eu vejo o mundo. É aqui agora que a m<strong>in</strong>ha<br />

aldeia mairum respira tal como foi e eu vi, há tantos anos. [...] eu gozo<br />

e sofro repensando-o como fi z todos esses anos” (ibidem, p.73). A exterio-


390 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

rização de seus confl itos o impele a espelhar-se no caráter dual existente na<br />

organização da aldeia: “nas duas bandas, a de lá, dos cunhados, e a de cá ou<br />

de lá, se é fodível ou proibido, se irmão ou cunhado” (ibidem, p.74), ou na<br />

forma de organização dos mairuns, também construída em bases opostas<br />

que se confrontam na mesma medida em que luta para descobrir-se em sua<br />

identidade:<br />

Vivemos divididos segundo regras do sim e do não, do frio e do quente, da<br />

sorte e do azar, da vida e da morte, da alegria e da dor, do cru e do cozido, da<br />

boca e do cu, do pau e da boceta, da cabeça e do umbigo, do sangue e do leite, do<br />

sêmen e do cuspe, do nu e do vestido, do silêncio e da fala, da raiz e da fronte, da<br />

pele e do osso, do animal e do vegetal, da caça e do peixe, do riso e do choro, do<br />

tubi e do goto. Quando falamos de um, aí está o outro, oferecido como o direito<br />

e o esquerdo, a frente e o atrás, exig<strong>in</strong>do atenção e, se é o caso, ped<strong>in</strong>do a sua<br />

parte. (ibidem)<br />

Um ser “entre”, posicionado fora dos lugares determ<strong>in</strong>ados como os do<br />

baíto ou do pátio de terra batida nos quais cada um sabe o que lhe pertence,<br />

e marcado, a<strong>in</strong>da, pela ausência de pertença, ao permanecer com os que são<br />

considerados o lado de fora de sua essência. Um entreposto expresso na<br />

l<strong>in</strong>guagem narrativa, também, ao <strong>in</strong>serir o latim em meio às lembranças e<br />

descrições da aldeia, como s<strong>in</strong>al da contradição: “Arbor uma nobilis:/ Silva<br />

talem nulla profert/ Fronde, fl ore, germ<strong>in</strong>e:/ Dulce ferrum/Dulce lignum/...”<br />

(ibidem, p.72).<br />

O retorno de Isaías, no capítulo XV (“Retorno”), deveria imprimir à<br />

narrativa um teor de renovação quanto às expectativas do leitor. O que se<br />

pode notar, no entanto, é que voltar ao posto de Avá, o futuro tuxaua, custaria<br />

desfazer-se das regras impostas durante o período de afastamento. É<br />

um texto construído sobre o presente e que remete ao passado ao mesmo<br />

tempo por contextualizar o “voltar atrás”: “aqui estou, afi nal, em Santa<br />

Cruz, esperando para ir adiante, voltando atrás. [...] Sou o outro em busca<br />

do um. Sou o que resulto ser, a<strong>in</strong>da, nesta luta por refazer os cam<strong>in</strong>hos que<br />

me desfi zeram” (ibidem, p.107).<br />

No embate entre o ser <strong>in</strong>dígena e o aculturado, o que o faz permanecer<br />

em sua vida comunitária é a memória, deixando a possibilidade de o<br />

leitor visualizar tanto as características da tribo quanto as agudezas de sua


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 391<br />

condição de desmembrado: “se não estivesse aí m<strong>in</strong>ha memória para dizer-me<br />

que eu sou eu; se não estivesse aí tanta lembrança me v<strong>in</strong>culando<br />

ao que fui, eu mesmo não me reconheceria no homem esquálido, vergado,<br />

que volta para casa” (ibidem, p.108). Intercalando o monólogo <strong>in</strong>terior, há<br />

a presença do discurso mítico-religioso colocando lado a lado os elementos<br />

cristãos e mito-<strong>in</strong>dígenas que se fundem aos moldes da consciência da<br />

personagem: “Meu Deus-Pai, criador do céu e da terra/ [...] Meu Deus-<br />

Pai, mairum: Maíra-Monan/ [...] Maria Santíssima, Açucena do Senhor”<br />

(ibidem).<br />

Pode-se considerar, também, que o capítulo em questão cerca-se de um<br />

teor proléptico ao pontuar o encontro de Isaías com as mulheres, dentre<br />

elas, uma carioca, o que leva à dedução de seu encontro com Alma em Brasília<br />

posteriormente: “Por que não saio, por aí, atrás de alguma carioca? [...]<br />

Não, não quero nenhuma mulher estranha. Eu me guardo para m<strong>in</strong>ha gaviã<br />

mairuna” (ibidem, p.111).<br />

Na esteira de Isaías, Alma e Anacã, cam<strong>in</strong>ham entrecruzadas as histórias<br />

de Juca, Nonato e Xisto, fechando o conjunto da Antífona. Juca é a<br />

representação do mestiço, fi lho de mãe Panan (mairum) e pai branco, que<br />

não aceita sua condição de herdeiro de nativos. Ao colocar-se ao lado do<br />

civilizado, atraído pelo d<strong>in</strong>heiro e outras extorsões, passa a ver nos povos<br />

da aldeia uma possibilidade de trabalho forçado sob seu poder de Avaeté,<br />

título com o qual se autodenom<strong>in</strong>ou.<br />

O capítulo IV (“Juca”) abre a cena de seu retorno ao porto mairum, após<br />

a notícia da morte de Anacã. Traz consigo dois personagens, representantes<br />

dos típicos capangas, que servem seu senhor em troca de mísero pagamento:<br />

Boca e Manelão. A manifestação de repulsa explicitada pelo povo mairum<br />

reforça sua própria condenação, visto que já havia sido expulso pelo<br />

tuxaua anteriormente. O que marca a permanência de sua sentença são as<br />

palavras do velho tuxaua, repetidas na voz de Teró, um guerreiro do clã<br />

jaguar: “– Juca, cai fora! Larga com suas coisas, já! Anacã disse a você que<br />

não voltasse, senão morria. Ele está morto. Mas a palavra dele está viva.<br />

Você está aí falando, mas já está morto. Vá morrer onde quiser” (ibidem,<br />

p.48). É evidente a <strong>in</strong>stauração de um discurso anterior que permanece vivo<br />

por meio das palavras, e passa a ter um valor cultural diferente das ações de<br />

Juca. Daí decorre o confronto aldeia versus Juca, em razão da representação<br />

de ameaça contida no evadido da cultura mairum.


392 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

No capítulo XVI (“Qu<strong>in</strong>zim”), Juca deixa transparecer os aspectos da<br />

aculturação quando ameaça Qu<strong>in</strong>zim, seu comandado na espionagem aos<br />

estrangeiros pesquisadores de formigas. Há uma luta <strong>in</strong>cessante em busca de<br />

poder, algo que o torna obcecado: “tudo nele é prepotência e grosseria: não<br />

por acaso Anacã o amaldiçoara. [...] Aos seus parentes, porém, que o olham<br />

com desprezo, pouco importa que o mameluco se autodenom<strong>in</strong>e ‘avaeté’,<br />

chefe poderoso. Eles sabem que a sua fala é enganosa” (Bosi, 2001, p.388).<br />

O encontro das personagens no capítulo <strong>in</strong>sere, estrategicamente, uma<br />

série de microrrelatos acerca de assuntos que já foram pontuados anteriormente<br />

ou de alguns que a<strong>in</strong>da merecerão destaque. Há, por exemplo, a presença<br />

do beato Xisto, descrito por Qu<strong>in</strong>zim a Juca e, ao mesmo tempo, ao<br />

leitor, que a<strong>in</strong>da não obteve <strong>in</strong>formações sobre ele e sua função de pregador<br />

na vila de Corrutela. Junto à l<strong>in</strong>ha de Xisto, a que desvela a <strong>in</strong>vasão de<br />

missionários protestantes em meio <strong>in</strong>dígena, encontra-se a do pastor norteamericano<br />

Bob e sua esposa Gertrudes, uma l<strong>in</strong>guista <strong>in</strong>teressada em traduzir<br />

a Bíblia para o mairum.<br />

Esse emaranhado de <strong>in</strong>formações levantadas no capítulo em questão preenche<br />

uma lacuna do capítulo X (“Xisto”), em que a personagem é posta em<br />

ação na narrativa sem explicitar sua origem e função. O embate entre duas<br />

forças sobrenaturais polares, construído pela presença dos missionários<br />

protestantes, <strong>in</strong>troduz entre os caboclos e mairuns a necessidade de extirpar<br />

a presença do maligno que afeta os fi éis: “é Xisto quem melhor aponta e experimenta<br />

a fragmentação da realidade em Bem e Mal, Saber e Ignorância,<br />

Ilusão e Verdade” (Junqueira, 2001, p.397). Uma dualidade marcada em<br />

fragmentos de trechos bíblicos ora parodiados, ora tomados ironicamente<br />

“em seu sermão-delírio entremeado de cânticos” (Maria, 2001, p.406).<br />

Ao lado de Xisto e Juca, há a fi gura de Nonato, o major <strong>in</strong>cumbido pelo<br />

governo de desvendar a morte de Alma. O capítulo XIII (“Inquérito”) retoma<br />

o assunto do episódio da morte relatado no capítulo I (“A morta”).<br />

Por meio das anotações do texto ofi cial, têm-se as hipóteses da morte e as<br />

possíveis relações estabelecidas entre a personagem, Isaías e o responsável<br />

pelo posto de SPI, Elias Pantaleão, pelo qual o Major exibe uma antipatia<br />

desmedida.<br />

Nota-se que as l<strong>in</strong>has narrativas estão nomeadas na Antífona e confl uem<br />

para o “Indez” (último capítulo) no qual serão retomadas nas vozes que se<br />

misturam. A primeira parte abre-se, a exemplo do ritual católico, com o


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 393<br />

tema da morte (capítulo I – “A morta”) e fecha-se com o sepultamento de<br />

Anacã. Segundo Angulo (1988, p.58), “a Antífona de Maíra lembra então<br />

os cantos polifônicos de abertura (Intróito) das missas solenes”. Apenas<br />

o ritual de morte do tuxaua encerra-se nessa parte. Os demais segmentos<br />

narrativos são retomados em outras partes, como também será aberto o segmento<br />

mítico com a criação dos deuses Maíra e Micura.<br />

A segunda parte da obra, denom<strong>in</strong>ada Homilia, é formada de 21 capítulos,<br />

a mais extensa de todas. Conforme anunciado anteriormente, esse<br />

termo tem fi liação com o ritual católico e designa “a liturgia da palavra, a<br />

comida espiritual do povo mairum; é a prática das coisas da religião, o saber<br />

do mundo mítico, a origem dos deuses, do mundo e dos seres” (idem,<br />

p.100).<br />

Uma das relevantes l<strong>in</strong>has abertas nessa parte é a que constitui a biografi<br />

a coletiva mairuna. O conjunto de c<strong>in</strong>co capítulos (XIX, XXII, XXV,<br />

XXXI, XXXIV) é o relato da cosmogonia, ao lado da luta entre as forças que<br />

se enfrentam após a gênese:<br />

Antes só os morcegos eternos voejavam na escuridão sem começo. Veio, então,<br />

Nosso Criador, o Sem-Nome, que descobriu, soz<strong>in</strong>ho, a si mesmo e esperou.<br />

Chegada a hora, Ele juntou as mãos em concha, soprou dentro o seu alento,<br />

abriu os olhos e lançou do olhar uma luz<strong>in</strong>ha. Na penumbra daquele vent<strong>in</strong>ho<br />

morno Ele foi <strong>in</strong>ventando suas criações.<br />

Começou fazendo as terras altas e baixas e sustentando-as com escoras. Depois<br />

abriu rios e lagos. Pôs, então, nas águas novas as primeiras criaturas: os<br />

juruparis, seus prediletos. A eles deu a fl auta-vivente, jacuí, para terem música;<br />

[...].<br />

O Velho criou em seguida os curupiras, que andam por aí até hoje, escondidos<br />

na mata. [...]<br />

Só depois de fazer os juruparis e os curupiras, o Velho aprendeu a criar gente<br />

de verdade, gente <strong>in</strong>teira. Criou, então, nossos avós, os Mairum Ambir. Mas os<br />

fez sem maldade nenhuma. (Ribeiro, 2001, p.133)<br />

Após a criação dos seres, Mairahú (o grande Maíra, aquele que tudo<br />

criou) sentiu necessidade de ver de perto sua obra. Criou, então, seu fi lho,<br />

para poder entrar em contato com o mundo dos homens: “arrotou e lançou<br />

o arroto no mundo para ser seu fi lho” (ibidem, p.147). Inicia-se, a partir


394 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

daí, um percurso pontilhado pela ironia e pelo sarcasmo ao desmistifi car a<br />

criação dos deuses.<br />

A presença no mundo dos homens é marcada pela descida e <strong>in</strong>serção nas<br />

árvores. O fi lho do Criador não escolheu nenhuma criatura semelhante a<br />

ele, preferiu a um vegetal de onde teve as sensações do mundo que o cercava.<br />

Do gozo dessas sensações, multiplicou as árvores e constituiu a fl oresta.<br />

Essa capacidade de gerar-se a si próprio faz que se aposse do útero de<br />

Mosa<strong>in</strong>gar, seu antepassado. De seu corpo pôde observar o funcionamento<br />

dos órgãos e as sensações captadas por eles. Provado o gosto deste mundo<br />

exterior, chama para o útero de Mosa<strong>in</strong>gar um sariguê: “aí está quem há de<br />

ser meu irmão gêmeo” (ibidem, p.149).<br />

O resultado da gestação desses dois seres materializa a ironia da existência<br />

dos deuses. É a <strong>in</strong>stalação do bem e do mal conforme se pode notar em<br />

<strong>in</strong>úmeras etnias <strong>in</strong>dígenas. Maíra “tem a missão de melhorar o mundo e de<br />

ajudar a humanidade. É, porém, burlão e, como Macunaíma dos Taulipangue<br />

(caraíba), o Porom<strong>in</strong>are dos Baré ou Baíra dos Parat<strong>in</strong>tim, é aventureiro,<br />

malicioso, zombeteiro” (Angulo, 1988, p.105). Por outro lado, Micura é<br />

o representante da maldade, se considerada a presença b<strong>in</strong>ária Bem/Mal. O<br />

que se nota, porém, é que, paridos os gêmeos, os dois atuam juntos, fazendo<br />

todas as mudanças possíveis, desde a <strong>in</strong>stauração de um novo modelo de<br />

mundo, achando ultrapassado o criado pelo Velho Ambir, até consertar os<br />

próprios erros cometidos nas alterações da sociedade mairuna.<br />

Duas l<strong>in</strong>has que se abriram na Antífona, a de Isaías e a de Alma, seguem<br />

paralelamente nessa parte e constituem-se na longa travessia: o encontro<br />

das personagens em Brasília (capítulo XVIII), a passagem por Naruai (capítulo<br />

XX, XXIII), pela Missão Nossa Senhora Grávida de Deus (capítulo<br />

XXIV); a descida pelo rio Iparanã (capítulo XXVI, XXIX, XXXII), chegada<br />

à Missão Nossa Senhora do Ó (capítulo XXXV) e a visita à casa do<br />

pastor Bob (capítulo XXXVIII). As duas l<strong>in</strong>has em questão ocupam maior<br />

parte dos capítulos, com destaque ao capítulo “O bucho” (XXXV), em que<br />

revela o encontro de Isaías com o passado e, ao mesmo tempo, com o missionário<br />

desterritorializado do espaço que o constituiu como cristão católico,<br />

um vazio que emerge de suas lembranças. É um estado de rum<strong>in</strong>ação<br />

<strong>in</strong>terna, conforme encerra semanticamente o título do capítulo, ao evocar<br />

as imagens da <strong>in</strong>fância e não encontrar seu equivalente no presente: “Isaías<br />

ajoelha-se no chão do quarto para buscar dentro de si, outra vez, o que não


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 395<br />

vê lá fora. Quer meditar sobre o sentido de tudo o que fez. Seus anos de<br />

men<strong>in</strong>o vividos ali. Aquela opção, a primeira consciente: o passo ao sacerdócio.<br />

Qual o sentido?” (Ribeiro, 2001, p.215).<br />

Entrelaçada à l<strong>in</strong>ha de Isaías encontra-se o capítulo “Tuxauarã”<br />

(XXXVII), a visão do velho aroe a respeito do futuro tuxaua que se aproximava<br />

da aldeia. O leitor é conduzido pelo foco d<strong>in</strong>âmico do narrador<br />

onisciente, que passa da visão do velho aos pensamentos de Jaguar, demarcando<br />

dois aspectos contraditórios: o retorno do Avá à aldeia e a perda de<br />

sua identidade. Os dois polos suscitam o confl ito que se estabelece entre a<br />

visão ancestral mairuna e a concepção de Deus tal como lhe fora imposto<br />

em Roma pelos missionários. Há, então, na visão do velho aroe, uma marca<br />

proléptica do que viria a acontecer nos episódios segu<strong>in</strong>tes. Para o clã Jaguar,<br />

representa a segurança do retorno do Avá, porém, a profecia <strong>in</strong>dica o<br />

estado em que se encontra:<br />

o aroe o viu bem, nitidamente, mas viu que ele está cercado pelas marcas<br />

dos anhangás e dos juruparis. Há muitas ameaças ao redor dele e sobre ele. Mas<br />

só ele deve enfrentá-las. Soz<strong>in</strong>ho se salvará. São as provações. É a travessia. É o<br />

reencontro dele consigo mesmo no que é de verdade. Somente ele pode sofrer<br />

as provações e passar por elas para depurar-se. Só assim chegará como deve ser.<br />

Vencidas, delas sairá como o futuro tuxauareté dos mairuns.<br />

Jaguar escuta atento, hirto. É seu tio, então, o tuxauarã verdadeiro, que volta.<br />

(ibidem, p.227)<br />

Confl uem, a<strong>in</strong>da, nessa parte, a l<strong>in</strong>ha narrativa de Nonato com as <strong>in</strong>vestigações<br />

da morte de Alma (capítulos XXVII e XXXVI) juntamente com<br />

a de Juca. É pelo relato de Nonato que, segundo Coelho (1989, p.59), são<br />

desveladas as imagens do índio pela perspectiva do dom<strong>in</strong>ante, ao empregar<br />

termos que consolidam o processo de aculturação imp<strong>in</strong>gido ao índio,<br />

como se pode notar nas expressões que <strong>in</strong>corporam elementos pejorativos<br />

em relação à natureza degradada do índio: “bons dentes, exceto alguns banguelas.<br />

Boa pele, limpa de s<strong>in</strong>ais de doenças, exceto bexigas em alguns. [...]<br />

o lamentável é que quase todos esses índios têm barrigas estufadas. [...] nas<br />

crianças se faz notar proem<strong>in</strong>ência do ventre” (ibidem, p.223). Diante do<br />

quadro, segundo Coelho (1989, p.60), “as anotações de Nonato registram<br />

uma visão do índio a partir do olhar do branco” o que resulta num “discurso


396 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

reducionista”, que busca explicar o mundo <strong>in</strong>dígena pela l<strong>in</strong>guagem equivalente<br />

do não índio.<br />

O encontro entre os dois marca, ao mesmo tempo, o discurso ofi cial do<br />

relato e o lado “obtuso” a respeito de Juca, ao considerá-lo “homem dotado<br />

de evidente senso de objetividade e notável capacidade de ação [...]. Com ele,<br />

em duas horas de conversa, aprendi mais sobre os índios e sobre a zona do<br />

que nos dias em que estive falando com o seu Elias” (Ribeiro, 2001, p.175).<br />

Um olhar externo, que contrapõe os dados do capítulo. XXI (“Regatão”), em<br />

que a personagem resgata sua descendência e renega o parentesco mairum:<br />

Juca: – Meu pai foi quem amansou esses bugres. Dizem que ele era da Funai,<br />

que naquele tempo se chamava SPI, e foi quem pacifi cou os mairuns. [...]<br />

Ele morreu, mas deixou aí uma índia mairuna buchuda dele. Esta, Panam, é<br />

m<strong>in</strong>ha mãe. [...] Saí guri acompanhando um regatão, seu Ton<strong>in</strong>ho, pai de nhá<br />

Colo. Foi ele que me fez na vida. [...]<br />

Boca: – Então o senhor também é meio bugre, patrão?<br />

Juca: – Que bugre que merda nenhuma, seu bosta. Bugre é você que foi<br />

roubado men<strong>in</strong>o dos epexãs. Então você não sabe que o que conta é o sangue do<br />

pai? (ibidem, p.141-2)<br />

Dentre o universo de vozes que seguem paralelamente ou que se tangenciam<br />

em determ<strong>in</strong>ados momentos, destaca-se, na Homilia, um capítulo<br />

s<strong>in</strong>gular. Trata-se do 33º, posto estrategicamente no meio dos 66 capítulos:<br />

Egosum. Para Candido (2001, p.384), “quem fala agora é o <strong>in</strong>ventor da voz<br />

narrativa – como, em certos quadros do passado, o p<strong>in</strong>tor fi gurava discretamente<br />

a si mesmo, perdido num ângulo entre soldados, cortesãos, doadores,<br />

para marcar a presença do criador no concerto das suas criaturas”.<br />

A voz do “escritor factual”, conforme propõe Luzia de Maria (2001,<br />

p.407), “nos dá notícia sobre a própria construção da obra”. Há, então, o<br />

entrecruzamento de uma l<strong>in</strong>ha que se <strong>in</strong>terpõe entre o fi ccional relatado<br />

pelo narrador e a matéria-prima da qual emergiu:<br />

o importante aqui, agora, é lembrar como cheguei a ver o Avá que era bororo e<br />

se chamava Tiago. Assim o conheci. Vi-o uma vez, emplumando os oss<strong>in</strong>hos da<br />

fi lha morta de bexiga. Estava muito consolado, decl<strong>in</strong>ando, no compasso certo,<br />

uma lada<strong>in</strong>ha em latim. Anacã, ao contrário, nada t<strong>in</strong>ha com funerais, nem era


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 397<br />

bororo, mas caapor. Companheirão muito querido. Era baix<strong>in</strong>ho, gordo, risonho.<br />

O mais parecido com um <strong>in</strong>telectual que eu encontrei num índio. (Ribeiro,<br />

2001, p.204)<br />

Para Angulo, em Roteiro de Maíra (1988, p.101), “no capítulo ‘Egosum’,<br />

é como se a polifonia se <strong>in</strong>terrompesse, dando lugar ao improviso,<br />

similar à cadência, especialidade do Concerto, enquanto forma musical. A<br />

orquestra cala-se e o solista brilha”. Ao lado de <strong>in</strong>formações que podem<br />

ser apenas uma estratégia “anti-ilusionista”, estão algumas referências que<br />

conduzem a leitura ao extratexto, tal como se verifi ca em: “M<strong>in</strong>as, aquela,<br />

há a<strong>in</strong>da ó Carlos e haverá, enquanto eu houver. É um território da memória<br />

que vou recuperar, se o tempo der. Ali luzem, eu vi, barrocos profetas<br />

vociferantes. Entre eles um me fala sem pausa nem termo. É o da boca queimada<br />

pela palavra de Deus: Isaías” (Ribeiro, 2001, p.207).<br />

M<strong>in</strong>as é o espaço da memória do autor no qual está <strong>in</strong>scrita a imagem<br />

do profeta Isaías moldada na arte barroca, porém, duplamente signifi cada<br />

por estar, também, impressa no discurso bíblico como aquele que anuncia a<br />

v<strong>in</strong>da do salvador entre os cristãos. São recortes da consciência autenticados<br />

pela expressão: “eu vi”, ao molde de Gonçalves Dias (2002, p.63) em I-Juca<br />

Pirama: “E à noite nas tabas, se alguém duvidava/ Do que ele contava,/<br />

Tornava prudente: ‘Men<strong>in</strong>os, eu vi!’”.<br />

Mesmo considerando que a voz é a do autor, deve-se observar que a junção<br />

de Ego+sum, tomada aproximadamente como “eu sou”, é um artifício<br />

de l<strong>in</strong>guagem, construído dentro de um conjunto de outras vozes, que se<br />

conjugam com textos pertencentes a diferentes gêneros, como as lada<strong>in</strong>has<br />

ou o relato ofi cial do <strong>in</strong>quérito. Há, portanto, a possibilidade de ser um recurso<br />

estilístico-estrutural de que o escritor lança mão para “quebrar o encanto”,<br />

um contraponto ao testemunho <strong>in</strong>dianista, posicionado num texto<br />

em que afl ora o cunho <strong>in</strong>digenista.<br />

O que suscita a afi rmação da manifestação da voz do próprio autor são<br />

nomes de personalidades políticas, além do poeta Drummond, com quem<br />

Darcy viveu ou teve contato durante o período de exílio: “O que sei é da<br />

m<strong>in</strong>ha <strong>in</strong>veja enorme das vidas na morte dos meus dois amigos amados e<br />

apagados: Ernesto e Salvador” (Ribeiro, 2001, p.207), uma referência a Ernesto<br />

Che Guevara e Salvador Allende, presidente do Chile, de quem foi<br />

assessor.


398 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Diante da posição que assume o capítulo em questão, é preciso lembrar<br />

que o termo Homilia contribui para que se estabeleça a ligação entre o enredo,<br />

o título dos capítulos e seus narradores que evocam o tema geral da parte:<br />

a palavra. A reiteração do assunto é veiculada nos títulos que sugerem<br />

os órgãos pert<strong>in</strong>entes à fala e ao alimento, tais como: “A comida” (XVIII),<br />

“O beiço” (XX), “A boca” (XXIII), “A língua” (XXVI), “A goela” (XXIX),<br />

“Verbo” (XXX), “O bucho” (XXXV) e “O vômito” (XXXVIII). Cada um,<br />

dentro de seu segmento narrativo, propõe que o leitor esteja compenetrado<br />

com o sentido da parte. É por meio da palavra, como alimento, que se estrutura<br />

a cosmogonia mairuna, como também, por ela, rum<strong>in</strong>a-se a história de<br />

Isaías, nos seus pensamentos e <strong>in</strong>quietações frente aos dois mundos em que<br />

sua identidade se esbate.<br />

O fechamento da parte dá-se com “O vômito”, capítulo que faz emergir<br />

da boca do pastor Bob a profecia de um “Novo Messias” dentre os mairuns:<br />

“– Claro que pode! E por que não entre os epexãs ou mesmo os xitãs? Da<br />

outra vez, tendo os gregos, os persas, os romanos, os <strong>in</strong>dianos, os ch<strong>in</strong>eses<br />

e muita gente mais civilizada e rica para escolher, o povo de Deus, Jesus,<br />

não foi posto na mão dos judeus?” (ibidem, p.237). Do anúncio à profecia<br />

apocalíptica: “– Dias virão em que não fi cará pedra sobre pedra que não<br />

seja derrubada” (ibidem, p.239). Há, assim, uma antecipação do que seria<br />

o desenho das partes segu<strong>in</strong>tes, que terão como eixo narrativo o distanciamento<br />

de Alma e Isaías. Ele se afasta de sua condição <strong>in</strong>dígena e ela se deixa<br />

<strong>in</strong>dianizar pelas experiências mairunas.<br />

Canon, a terceira parte, é dest<strong>in</strong>ada ao relato da “união da natureza div<strong>in</strong>a<br />

com a humana” (Angulo, 1988, p.126), proporcionando uma relação<br />

com o ritual católico da “transubstanciação do pão e do v<strong>in</strong>ho em corpo,<br />

sangue, alma e div<strong>in</strong>dade”. Nos 17 capítulos que a compõem encontramse<br />

os afl uentes que derivam das duas primeiras partes. Seguem seu curso<br />

no mesmo ritmo dos anteriores, entrecruzando as ações e as personagens<br />

por entre os fragmentos. A l<strong>in</strong>ha narrativa de Isaías e Alma alcança o lugar<br />

almejado desde o <strong>in</strong>ício do it<strong>in</strong>erário dos dois: a chegada à aldeia dos<br />

mairuns.<br />

Duas identidades que se polarizam diante dos objetivos que cada um<br />

busca entre os <strong>in</strong>dígenas. Isaías retorna, é questionado pelos homens acerca<br />

dos conhecimentos adquiridos no mundo dos caraíbas e não consegue assumir<br />

sua condição de re<strong>in</strong>tegrado à cultura: “para os seus é um estranho


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 399<br />

e, para os civilizados, cont<strong>in</strong>ua sendo índio” (Angulo, 1988, p.131). Por<br />

outro lado, Alma, oriunda da cultura do civilizado, impregna-se da mairunidade<br />

e se identifi ca com a forma de vida livre e espontânea que encontra<br />

na aldeia: “numa espécie de <strong>in</strong>iciação pelo avesso, ela se <strong>in</strong>troduz na tribo<br />

e desenvolve uma sexualidade marcada pelo desespero, entregando-se<br />

de maneira desbragada a quem a quisesse, como se a liberdade prevista no<br />

comportamento <strong>in</strong>dígena fosse uma redefi nição transgressiva da sua sede<br />

de viver” (Candido, 2001, p.382).<br />

Além da cont<strong>in</strong>uidade das biografi as <strong>in</strong>dividuais, há, de modo especial,<br />

c<strong>in</strong>co capítulos que trazem no título um nome composto: “Maíra: Remui”,<br />

“Maíra: Teidju”, “Maíra: Jaguar”, “Maíra: Avá” e “Micura: Can<strong>in</strong>dejub”.<br />

Todos têm a mesma forma de registro, ou seja, o primeiro nome remete<br />

ao deus a que representa, seguido de dois pontos que anunciam o segundo<br />

elemento da transubstanciação. A mesma regularidade do registro dos títulos<br />

está presente na organização das vozes que se manifestam em cada um.<br />

Primeiramente, a voz do narrador <strong>in</strong>troduz a temática, apresentando o elemento<br />

mítico: “Maíra-Coraci, o Sol, roda sem pausa na imensidão redonda<br />

do azul celeste. [...] Às vezes, ele também se cansa desse gira-girar e deseja<br />

vir, por um <strong>in</strong>stante que seja, ao seu mundo reformado” (Ribeiro, 2001,<br />

p.237). Em seguida, a voz passa para a entidade div<strong>in</strong>a que deseja apossarse<br />

do humano: “vou rever, agora, esse meu velho aroe. [...] Como pode cont<strong>in</strong>uar<br />

vivendo dentro desse corpo, Remui? Está gasto de tanto uso. Vê mal:<br />

sombras. Ouve mal: vozes e o cascavel do maracá” (ibidem). Após vestirse<br />

com o corpo escolhido, há o pedido para que fale: “Fale, velh<strong>in</strong>ho, fale<br />

aroe. Fale comigo!” Maíra ouve a voz da personagem, o que representa, na<br />

arquitetura narrativa, o fl uxo de consciência: “O Avá veio e não veio. Este<br />

que veio é e não é o verdadeiro Avá. O que eu esperava, e que vi v<strong>in</strong>do dia a<br />

dia por terras e águas, não chegou. Aquele, sim, era o Avá mesmo, <strong>in</strong>teiro.<br />

Este é o que restou de meu fi lho Avá, depois que os pajés-sacacas 1 mais<br />

poderosos dos caraíbas roubaram sua alma” (ibidem). Term<strong>in</strong>ado o excurso<br />

temático que expõe o assunto central do capítulo, a voz retorna ao deus,<br />

manifestando sua reação frente às sensações que acabou de ter em posse do<br />

corpo: “Este meu velho aroe está caduco. Quero sentir, ouvir gente jovem.<br />

1 Refere-se ao mundo do civilizado em que Isaías permaneceu; os padres e missionários que<br />

aculturaram o <strong>in</strong>dígena mairum.


400 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Gente que crê ou, se não crê, vive. [...] Como estará meu jovem Jaguar, feito<br />

de músculo e tesão?” (ibidem, p.259).<br />

A estrutura se repete nos demais capítulos em que há a fusão do div<strong>in</strong>o<br />

com o humano. Assim, em “Maíra: Teidju”, o corpo de oxim é o lugar de<br />

onde se eleva o lamento pelo desprezo oriundo de sua tribo. A <strong>in</strong>trodução<br />

da voz do humano segue o exposto no anterior: “Fale, oxim, fale comigo,<br />

fale”. Nesse capítulo, a voz do feiticeiro encerra o episódio sem retornar ao<br />

deus Maíra. O que o diferencia dos demais é a <strong>in</strong>serção de uma fala marcada<br />

(italizada no texto) que <strong>in</strong>tercala a voz do div<strong>in</strong>o: “– Que é isso que esvoaça!<br />

Sai bicho, sai desgraça. Que será essa língua fria de morcego que lambeu meu<br />

cangote? Sai: é o andirá 2 imortal? Será o morcegão, outra vez, me atentando?<br />

Sai, esganado, vá chupar a nuca de sua mãe” (ibidem, p.270).<br />

O deus Maíra mergulha, a<strong>in</strong>da, no âmago de Jaguar em “Maíra: Jaguar”:<br />

“isto sim é um corpo mairum como deve ser. [...] O corpo todo está<br />

aceso, pronto, de alcateia. [...] Cuidado! Preciso ter cuidado. Estou assustando<br />

demais Jaguar. Pode enlouquecer. Calma, meu fi lho, calma. Agora,<br />

fale. Fale, meu genro, fale: – Eu andava vadiando pelo pátio, ia daqui prali,<br />

até que senti a presença dele. Foi antes do sol se pôr” (ibidem, p.285).<br />

Como se pode notar, ocorrem as mudanças de voz à medida que a narrativa<br />

vai cedendo espaço para a <strong>in</strong>serção do assunto pr<strong>in</strong>cipal. Jaguar é o responsável<br />

por relatar a argumentação do aroe quando esse o convence que será<br />

o futuro tuxaua. No fi nal, o jovem é <strong>in</strong>citado por Maíra a falar de sua vida<br />

amorosa: “– E safadeza, muita? – Jaguar relaxa os músculos tensos e repassa<br />

com gozo seus gozos maiores. Ó! Como a Can<strong>in</strong>dejub, não há. [...] Gosto<br />

muito de Inimá também, mas é diferente” (ibidem, p.289).<br />

Em “Maíra: Avá”, o div<strong>in</strong>o toma posse do corpo de Isaías: “– Eta merda<br />

de corpo este, desgastado de tão mal gastado. [...] Se fosse para ser assim,<br />

eu podia ter deixado as gentes como as fez meu Pai. Fale, desgraçado. Fale,<br />

Avá” (ibidem, p.301). A voz que emerge de Isaías reitera o que já foi exposto<br />

em capítulos anteriores: “uma crise de personalidade, motivada pelo fato<br />

de situar-se à margem de duas culturas, sem pertencer a nenhuma delas.<br />

Essa falta de <strong>in</strong>tegração gera o homem marg<strong>in</strong>al, localizado entre dois mundos<br />

mentais diversos” (Angulo, 1988, p.137-8).<br />

2 Darcy Ribeiro (1996) aponta como “índios genéricos” os que foram despojados de suas especifi<br />

cidades culturais, mas nem por isso foram assimilados pela sociedade nacional.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 401<br />

Mais uma vez o olhar do índio marg<strong>in</strong>alizado faz que se veja o estado de<br />

deterioração dos mairuns: “Como tudo é diferente do que eu esperava. É<br />

verdade que eu também não sou o mesmo. Não olho nada com os olhos de<br />

antigamente. Mas como tudo mudou. [...] Aqui estou na m<strong>in</strong>ha aldeia, devolvido<br />

a ela, mas não devolvido a mim mesmo. Começa a ser cada vez mais<br />

difícil sentir-me mairum dentro de m<strong>in</strong>ha pele” (Ribeiro, 2001, p.301-3).<br />

O longo texto de exposição do tema central resulta das difi culdades que encontra<br />

na aldeia, em sua nova forma de viver e da repulsa que sofre em meio<br />

aos índios que não o consideram corajoso o bastante para ocupar o cargo<br />

a que foi dest<strong>in</strong>ado. Encerra o episódio num tom melancólico de quem já<br />

não possui o “apetite voraz para viver” como os mairuns: “sou uma pobre<br />

máqu<strong>in</strong>a de pensar e de rezar, que Deus me ajude” (ibidem, p.305).<br />

Ao lado dos mergulhos do deus Maíra nos humanos, há seu irmão gêmeo<br />

que, também, <strong>in</strong>corpora-se para sentir os prazeres:<br />

Aquela mulher... ela sim! Nela entro: ó, é uma caraíba. Mas gosta de ser a<br />

Can<strong>in</strong>dejub. Mais a<strong>in</strong>da gosta de ser mirixorã. [...] Ó, corpo claro, gozozo. Boca<br />

de todos os gostos. [...] Eu bem que queria fi car aqui nesse calorz<strong>in</strong>ho do seu itã<br />

que pede um fi lho. O outro posso dar. Claro que posso. Mas não, agora fala, fala<br />

que ouço. A isto vim, escutar. Fala meu bem. (ibidem, p.313-4)<br />

Nesse episódio, a voz de Alma revela o estado em que se encontra em<br />

meio à adaptação ao mundo mairum, ao seu trabalho e à condição de mirixorã,<br />

mulher que todos os índios da aldeia querem ter, menos Isaías, um<br />

decadente na visão de uma mulher não índia que se <strong>in</strong>tegra à cultura <strong>in</strong>dígena,<br />

mesmo com o temor de que sua presença possa causar transtornos<br />

em relação aos que gerenciam o Posto da Funai. Toda a excitação que percorre<br />

a vida de Alma entre os mairuns desencadeia, na voz de Micura, o<br />

anúncio da futura gravidez: “É, meu bem, vou deixar você aí br<strong>in</strong>cando de<br />

mirixorã e de oxim. [...] Qualquer noite destas eu volto. Então, quem sabe?<br />

Talvez deixe uma semente” (ibidem, p.316). Com isso, fecha-se o processo<br />

de transmutação do div<strong>in</strong>o em humano e fi ca preenchida a lacuna da concepção<br />

dos gêmeos paridos por Alma. Há um <strong>in</strong>dicador, possível, mas não<br />

absoluto, de que Micura a teria fecundado.<br />

A quarta e última parte da obra, Corpus, relaciona-se à “mairunfagia”:<br />

“como se os brancos <strong>in</strong>iciassem a deglutição dos índios” (Angulo, 1988,


402 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

p.142). São 11 capítulos que levarão ao Indez, onde os temas abertos durante<br />

a narrativa se entrecruzam “sem identifi cação ostensiva, mas perceptível,<br />

como se estivéssemos dentro da corrente de consciência, não de um <strong>in</strong>divíduo,<br />

mas de uma coletividade díspar” (Candido, 2001, p.385).<br />

A trança narrativa cont<strong>in</strong>ua a biografi a <strong>in</strong>dividual de Alma que, num<br />

longo encontro com sua consciência, revela seu estado de gravidez e marca<br />

o tempo de sua estada entre os mairuns: “quem diria que eu fi caria aqui dois<br />

anos e pico? Esses são os vividos, quantos virão?” (Ribeiro, 2001, p.325).<br />

Um fl uxo que desliza em direção à ocupação das mulheres e do pouco trabalho<br />

dos homens, à preocupação com a gravidez e o momento do parto:<br />

“estou gravidíssima, vou fazer uma crianc<strong>in</strong>ha. Vou parir” (ibidem, p.327).<br />

Além disso, entremeado ao medo de parir numa aldeia, uma alusão ao primeiro<br />

capítulo em que é encontrada morta ao parir os gêmeos, Alma descreve<br />

seu encontro com Jaguar, nas praias do Iparanã. Dúvidas e refl exões<br />

acerca de sua identidade cedem lugar ao gozo do corpo <strong>in</strong>dígena que se desnuda<br />

pela primeira vez aos seus olhos sob a luz do sol.<br />

A personagem encerra sua biografi a <strong>in</strong>dividual no capítulo LX, “He<br />

muhere te”, no qual aparecem três aspectos importantes que evidenciam<br />

o desfecho de sua trajetória narrada no <strong>in</strong>ício da obra. O primeiro deles é a<br />

explicação que Jaguar lhe dá em relação à dupla existência na vida/morte:<br />

usava a palavra oco e apontava a m<strong>in</strong>ha xota, dizendo que é o oco da vida e tem<br />

o mesmo nome de certo patuá não sei de quê, cheio de ossos emplumados, que é<br />

o oco da morte. Por um se nasce aqui neste mundo, dizia ele, por outro se nasce<br />

lá no outro mundo. Por isso, dizia, o defunto daqui é o bebê de lá e o bebê daqui<br />

é o defunto de lá, e são chamados também pela mesma palavra. (ibidem, p.345)<br />

A referência à duplicidade existente entre nascer e morrer pertencentes<br />

aos dois mundos “aqui” e “lá” marca o encontro de duas culturas que têm<br />

no b<strong>in</strong>ômio signifi cados diferentes. Na cosmogonia mairum o mundo dos<br />

mortos é o mundo dos vivos, assim, o texto apresenta-se como uma preparação<br />

de Alma, diante da possibilidade de morrer ao dar à luz. Isso é visto<br />

pelo olhar do leitor que, ao conhecer o desfecho, <strong>in</strong>fere tal situação, porém,<br />

aos olhos de Alma, não passa de um amontoado de falas sem sentido.<br />

O segundo ponto importante nesta relação é a refl exão que se faz a partir<br />

do parto de uma índia:


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 403<br />

vi Mbiá, a neta querida de Moita, parir. [...] Quando deu aviso de que era hora,<br />

o marido Náru e o irmão Jaguar, que estavam à espera, começaram imediatamente<br />

a abrir um buraco no meio da casa e cobrir com folhas de pacová. [...] De<br />

repente Mbiá começou a parir: vi muito bem a cabec<strong>in</strong>ha despontando amarfanhada,<br />

pela abertura do oco. [...] Acabando de parir, Mbiá um pouco vacilante<br />

se levantou, voltou-se de frente para Náru e disse: – Eu pari. Ele respondeu;<br />

– Eu também pari. (ibidem, p.347-8)<br />

O cenário apontado pela descrição dos rituais do nascimento de uma<br />

criança que é amparada não só pela mãe, mas pela presença do irmão e do<br />

pai, desencadeia no pensamento de Alma uma angústia pelo fato de ser uma<br />

estranha nesse ambiente, no qual parir é algo que não causa preocupação<br />

aos moradores, vista a frequência com que ocorrem e a facilidade que têm<br />

as mães mairunas em parir. Quem estaria preocupado com a can<strong>in</strong>dejub, a<br />

mirixorã que não deveria ter fi lhos? É um aspecto relevante na construção<br />

do desfecho da biografi a <strong>in</strong>dividual de Alma, pois a agonia da personagem<br />

diante da tranquilidade de Moitá e P<strong>in</strong>u, ambas índias, ao presenciarem o<br />

parto, constitui uma espécie de explicação do episódio da morte.<br />

Esse procedimento temporal, denom<strong>in</strong>ado analepse, solicita o preenchimento<br />

de uma lacuna que o leitor tem em mente desde o contato com a cena<br />

do primeiro capítulo e que, agora, a reorganiza dentro da l<strong>in</strong>ha narrativa<br />

para desvendar o motivo de uma mulher não índia, com traços de t<strong>in</strong>ta pelo<br />

corpo, ao modelo índio, ser encontrada morta ao parir gêmeos na praia do<br />

Iparanã. Do fato emergem as refl exões da personagem, que são o terceiro<br />

ponto a ser destacado no relato do capítulo “He muhere té”, traduzido pelo<br />

próprio narrador como: “estou agonizante mesmo”, ao se referir a Náru, na<br />

rede, após o nascimento do fi lho. É uma agonia anunciada:<br />

Eu vi! Agora tenho que pensar é no meu próprio parto. Quem abrirá o buraco<br />

se não tenho marido, nem irmão? Quem me sustentará pelo sovaco? A<br />

quem direi: eu pari? E quem me dirá, reconhecendo-se pai: eu também pari? E<br />

sobretudo Alma, meu bem, fi lh<strong>in</strong>ha do seu Alberto, lá do Cosme Velho, sobretudo,<br />

Alm<strong>in</strong>ha, você não é mairuna, não! Quem garante que você só por estar<br />

aqui vai parir fácil que nem elas? [...] Sobre nós pesa até hoje a praga div<strong>in</strong>a: hás<br />

de parir com dor.


404 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

O melhor, Alma, m<strong>in</strong>ha amiga, companheir<strong>in</strong>ha lá do Jangadeiros, o me-<br />

lhor mesmo é você sair daqui depressa, com a ajuda desses gr<strong>in</strong>gos, amigos de<br />

Isaías. (ibidem, p.348-9)<br />

Toda a tensão estabelecida nas <strong>in</strong>quietações de Alma co<strong>in</strong>cide com a expectativa<br />

do leitor no encontro do <strong>in</strong>cidente que esclareça a possível saída<br />

da personagem da aldeia até a praia e o motivo que a levou tomar tal decisão.<br />

Este exercício de construção do enredo cabe apenas ao leitor, pois<br />

nem o narrador com sua onisciência, nem as refl exões de agonia revelam o<br />

motivo do afastamento dentre os <strong>in</strong>dígenas. A suposta saída anunciada no<br />

excerto anterior faz parte apenas dos pensamentos de Alma e pode ser tomada<br />

como uma das pistas, se o objetivo for a <strong>in</strong>vestigação, mas a narrativa<br />

deixa para o leitor preencher o desfecho da biografi a.<br />

A l<strong>in</strong>ha biográfi ca de Isaías também aponta para índices relevantes no<br />

desfi bramento dos nós que constituíram sua identidade ao longo das três<br />

primeiras partes. No capítulo LIX (“Os semens do espírito”) está o relato<br />

mais contundente que desenha o perfi l b<strong>in</strong>ário e contraditório da personagem.<br />

Aqui, o narrador estampa as pr<strong>in</strong>cipais causas da desmoralização de<br />

Isaías e de seu aparente fechamento à condição de <strong>in</strong>dígena. As evidências<br />

de seu convívio na aldeia apontam para um ser transfi gurado etnicamente,<br />

um <strong>in</strong>dígena alcançado pela fronteira da civilização. As relações com Inimá,<br />

sua mulher, não passam dos servis costumes de lhe servir a comida; com<br />

Alma, não existe nenhuma aproximação a não ser nos seus pensamentos:<br />

“que estará sucedendo com Isaías?, se pergunta” (ibidem, p.339). Recortes<br />

de situações que o enquadram fi sicamente como um homem solitário,<br />

reduzido a uma calça puída [...]. As mãos cruzadas nas costas, a cabeça <strong>in</strong>cl<strong>in</strong>ada<br />

para a frente. Já não vai ver chegarem e saírem as ubás. Também não vai<br />

ao Posto visitar seu Elias e beber café. Nem quer saber dos gr<strong>in</strong>gos, senão para<br />

pedir coisas para Inimá. A Alma mesmo evita, com temor dos seus modos despachados,<br />

dos seus rompantes. (ibidem, p.339).<br />

A conjunção desses fatores resulta do estado de “aculturação” sofrida<br />

pela prática missionária que transforma os <strong>in</strong>dígenas em “n<strong>in</strong>guéns, que<br />

não sabem de si e não servem para ser índios nem civilizados” (Ribeiro,<br />

1996, p.12). O exílio que Isaías encontra é a presença de oxim que, curioso


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 405<br />

pelos <strong>in</strong>teresses do mundo externo à aldeia, oferece audição para as histórias<br />

dos grandes pajés, santos e demônios e do “absurdo ridículo” que é o giro<br />

da Terra em torno do sol. Para ele, quem gira é o sol, pois o vê “rodando”<br />

todos os dias. Ao se colocar como autoridade frente ao pouco saber de Avá,<br />

explica a condição rara que lhe foi consolidada. Somente o velho feiticeiro<br />

conhece sua <strong>in</strong>timidade e, à sua maneira, compõe o quadro que dom<strong>in</strong>a a<br />

desmoralização daquele que viria a ser o tuxaua:<br />

Isaías sofre de uma ambiguidade essencial. Provavelmente porque sua mãe,<br />

Moita, sururucou demais com muitos homens, misturando diferentes semens.<br />

Como esses homens não fi caram de choco, quando ele nasceu, isto o fez débil,<br />

fraco e confuso. [...] Por uma parte, ele é um homem-onça e, como tal, devia<br />

ser forte, vigoroso, corajoso. Por outro lado, é um homem-micura e, como tal,<br />

fraco, pálido, preocupado com coisas espirituais. (Ribeiro, 2001, p.342)<br />

Existe na personagem a presença dessas duas substâncias. Seria necessário<br />

separá-las para que ocorresse a transfi guração, deixando o lado da<br />

herança micura, sua parte lunar, antijaguar, para fortalecer o lado Jaguar:<br />

“teria de abandonar tudo e sair de imediato, sair já, agora mesmo, com seus<br />

próprios pés, em busca de Ivimaraeî, a Terra sem Males” (ibidem, p.342),<br />

aponta oxim, como solução para sair da condição “de índio genérico”. 3<br />

Avaeté (capítulo LXI) traz, em seu conteúdo essencialmente lírico, o eu<br />

de um <strong>in</strong>dígena encouraçado na pele de Avá, porém deculturado dos valores<br />

de sua <strong>in</strong>dianidade. Expressa, então, a vontade de obter o amor div<strong>in</strong>o e<br />

humano, entrelaçados pela obsessão da morte. Por isso:<br />

só quer devolver-se outra vez ao mais íntimo do seu oco, para a arguição<br />

div<strong>in</strong>a. Súplica monocórdica de sua tristeza de ser homem vivente que ama,<br />

que sofre e que sente.<br />

Ó Deus, meu Deus de luz, fonte de águas fl uentes. Pedra dura, fria penedia.<br />

Senhor, que será de mim, sem seu amor?<br />

Aqui estou, outra vez, Senhor: vazio de Ti, vazio dela. [...] Mas meu coração<br />

estremece, suspira e vela. Que será de mim, sem ela? (ibidem, p.351)<br />

3 Segundo Angulo (1988, p.76), “Darcy Ribeiro (1974, p.21) coletou e registrou miassu por<br />

oposição a tuxaua; este seria dest<strong>in</strong>ado ao mando e aquele ao trabalho. Silveira Bueno (1983)<br />

traz miassuba, ‘escravo’”.


406 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Nos episódios dest<strong>in</strong>ados à biografi a <strong>in</strong>dividual de Isaías não se encontram<br />

<strong>in</strong>dícios de seu afastamento da aldeia. Notam-se, em trechos de outros<br />

segmentos narrativos, algumas pistas que podem fazer o leitor entender o<br />

desfecho de sua l<strong>in</strong>ha dentro do romance. Em Kyrie (capítulo LXIV), por<br />

exemplo, Padre Vecchio afi rma: “– O nosso anjo se foi, padre Aqu<strong>in</strong>o. Como<br />

nos enganou aquela fraqueza disfarçada de virtude. Afi nal, teve a força de<br />

romper conosco” (ibidem, p.361). Ou também, em “Tuxauareté” (capítulo<br />

LXV), em que o velho aroe anuncia diante de Jaguar, o jovem sobr<strong>in</strong>ho de<br />

Isaías: “Quem amarra um homem é seu tuxaua. Tuxaua temos. A amarração<br />

é que faz um miaçu-guerreiro. Homens novos temos agora. Guerreiros<br />

mairuns. Agora e sempre” (ibidem, p.369). A referência ao novo tuxaua<br />

remete ao afastamento da possibilidade da permanência de Isaías na aldeia,<br />

uma vez que seria ele o tuxaua, segu<strong>in</strong>do a ordem da descendência de seu<br />

clã. Assim, mais um fi o se rompe desse novelo. O Avá é substituído por um<br />

Jaguar, que fez “seus miaçus, um por um, aqueles dez homens, do primeiro<br />

até o último” (ibidem, p.368).<br />

A evidência maior da passagem do isolamento à <strong>in</strong>tegração da cultura<br />

do civilizado dá-se em Indez (capítulo LXVI), no qual se encontram as vozes<br />

de personagens que compuseram as biografi as <strong>in</strong>dividuais e coletivas<br />

da narrativa, com exceção das vozes dos deuses Maíra e Micura. O capítulo<br />

fi nal da obra, composto por um texto contínuo, sem paragrafação, traz<br />

uma marca italizada na parte em que se refere à voz dos <strong>in</strong>dígenas Inimá<br />

e Jaguar, ou quando se refere à índia Teresa, devolvida pela esposa de um<br />

deputado por acusação de canibalismo. As vozes das demais personagens<br />

não possuem tal <strong>in</strong>dicador.<br />

A s<strong>in</strong>alização gráfi ca dá-se em virtude de sobrelevar o discurso <strong>in</strong>dígena,<br />

ou seja, fazer emergir a existência do índio em meio a outras tantas vozes<br />

não índias. Daí se pode <strong>in</strong>ferir que Isaías já não pertence mais ao universo<br />

mairum, pois sua voz, paralela a de Gerturdes, a l<strong>in</strong>guista norte-americana,<br />

representa uma das l<strong>in</strong>has narrativas do civilizado. É, portanto, visível, grafi<br />

camente, e compreendido pelo contexto, o momento em que o ex-índiomissionário<br />

se engolfa pela fronteira da cultura do civilizado: “Vou fazer<br />

como a senhora está mandando, dona Gertrudes: traduzirei como a senhora<br />

quer, palavra por palavra. Mas garanto que assim nenhum mairum vai entender<br />

Mateus nunca jamais. Faça a m<strong>in</strong>ha vontade, por favor, seu Isaías.<br />

Estas são as <strong>in</strong>struções que eu dou ao senhor” (ibidem, p.374).


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 407<br />

O capítulo encerra a obra, mas cumpre outra função diante dos pontos<br />

de vista que se cruzam nos falares (des)encontrados, no mesmo ritmo das<br />

vozes qu<strong>in</strong>hentistas que ressoaram nos primeiros encontros da Europa com<br />

a América <strong>in</strong>dígena. “Agora, como no passado, são sempre as mesmas entidades<br />

que se defrontam: uma etnia nacional em expansão e múltiplas etnias<br />

tribais a barrar seu cam<strong>in</strong>ho” (Ribeiro, 1996, p.20). Lado a lado, a exemplo<br />

dos capítulos anteriores, as vozes dos índios formam um coro no “tremendo<br />

desejo de sobrevivência e alegria de viver” (Galvão, 1981, p. 185) e se dissipam<br />

no encontro com o colonizador, alegoricamente expresso na imagem<br />

da morte que percorre a narrativa.<br />

A concentração de vozes num único espaço revela que o romance deixa<br />

em aberto um espaço próprio da fi cção, tal como se <strong>in</strong>fere do signifi cado<br />

de Indez (capítulo fi nal), ao apontar para a possibilidade de se construírem<br />

novas histórias a partir dos temas presentes, <strong>in</strong>dicadoras, portanto, da encarnação<br />

de vários papéis a serem ditos e/ou escritos, tendo como horizonte<br />

o encontro com o “outro”. Todas as <strong>in</strong>dagações que a obra traz, pontilhadas<br />

pelo estilo irônico de Darcy ao lidar com os conceitos de cultura, mostram<br />

o impacto da civilização sobre as populações tribais transfi guradas etnicamente<br />

pelo modelo cultural eurocêntrico. Segundo Spielmann (2001, p.<br />

425), o conceito expresso em Maíra é o de “uma sociedade <strong>in</strong>dígena civilizada,<br />

moderna, pois não se constrói nenhum índio idealizado, preso a um<br />

modo de pensar ‘mítico’ e ‘selvagem’. [...] Darcy reagiu à crise de ‘autoridade<br />

etnográfi ca’ ao ‘abrir’ um espaço possível para a voz dos subalternos”.<br />

Na mesma perspectiva em que se dá a circularidade das vozes no capítulo<br />

fi nal da narrativa, lê-se a cont<strong>in</strong>uidade do avanço da ação civilizatória sobre<br />

a aldeia, o que traduz, consequentemente, a abertura, também, de uma<br />

nova história a ser escrita em relação à cultura <strong>in</strong>dígena.<br />

Tal característica <strong>in</strong>stala a obra no que se pode denom<strong>in</strong>ar de literatura<br />

<strong>in</strong>digenista, visto que surpreende o leitor com uma narrativa fundada a partir<br />

de diversos pontos de vista. A<strong>in</strong>da que construída sob o aspecto ideológico do<br />

não índio, sendo a cultura <strong>in</strong>dígena vista por um narrador plural, emoldura<br />

um quadro que se opõe ao conceito <strong>in</strong>dianista e romântico, por sobrelevar o<br />

aspecto irônico diante da <strong>in</strong>tervenção do mundo civilizado ao ethos <strong>in</strong>dígena.<br />

A matriz fi gurativa que estabelece relações arquetípicas é a morte dos<br />

gêmeos no primeiro capítulo, que faz a narrativa desmembrar-se em diferentes<br />

direções, a começar pela l<strong>in</strong>ha homem-mito-mundo, presente em


408 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

todas as biografi as, que se parecem tecer <strong>in</strong>dividualmente, mas que vão se<br />

compondo de qualidades espácio-temporais até at<strong>in</strong>girem o coletivo. Da<br />

matriz <strong>in</strong>augural da obra emana a vertente primordial do contexto <strong>in</strong>dígena:<br />

gêmeos paridos por uma mulher não índia. Maíra e Micura, presença<br />

mítica na narrativa, são gêmeos e atualizam os contraditórios bem e mal.<br />

No contexto, o bem e o mal se confrontam dentro das marcas culturais, bem<br />

como geográfi cas, históricas e temporais de uma comunidade <strong>in</strong>dígena que<br />

se vê enredada por forças polarizadas.<br />

Quem melhor representa a agonia pela busca urgente do reencontrarse<br />

é, sem dúvida, Isaías, pela afi rmação do homem des<strong>in</strong>dianizado, <strong>in</strong>dividual<br />

e coletivo ao mesmo tempo e, por sua vez, composto de atributos<br />

perturbadores que o afastam de civilizado também. Diante do labir<strong>in</strong>to de<br />

<strong>in</strong>dagações de Maíra, e da confi guração da obra, esta leitura não se ateve<br />

somente ao episódio-referência, como se entendia possível, pois o universo<br />

fi gurativo é extremamente signifi cativo para o presente trabalho. Assim,<br />

o desfi bramento das biografi as torna possível a leitura da condição do <strong>in</strong>dígena<br />

brasileiro frente à presença do civilizado, pelas quais se visualizam<br />

os horizontes do idealismo tocados pela visão crítica, que transubstancia a<br />

imagem do herói generoso no nativo transgredido pelo espaço hostil.<br />

Episódio-referência<br />

Capítulo XV – “Retorno”<br />

Aqui estou, afi nal, em Santa Cruz, esperando para ir adiante, voltando<br />

atrás.<br />

Ó Deus de Roma que não me ilum<strong>in</strong>ou<br />

Ó Deus do Céu que não me viu<br />

Meu Deus, que <strong>in</strong>voquei em vão<br />

Meu Deus, que recusou a dádiva de mim<br />

Ó Deus, Senhor, todo-poderoso<br />

Me dê meu ser perdido no que seria<br />

Me dê a dignidade de uma cara mairum<br />

Me dê a tranquilidade de uma alma mairum.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 409<br />

Só Deus, onipotente, me pode socorrer. Se é que Deus, onisciente, quer<br />

se ocupar de mim ou de quem quer que seja.<br />

Não sou soldado que regressa vitorioso ou derrotado. Não sou o exilado<br />

que retorna com saudade da raiz. Sou o outro em busca do um. Sou o que<br />

resulto ser, a<strong>in</strong>da, nesta luta por refazer os cam<strong>in</strong>hos que me desfi zeram. Saí<br />

men<strong>in</strong>o, volto homem feito.<br />

Saí men<strong>in</strong>o, volto homem feito. Mas estou cheio de desgosto com o gosto<br />

de m<strong>in</strong>ha boca. Só me consola pensar que a aldeia redonda lá está à m<strong>in</strong>ha<br />

espera. Rom<strong>in</strong>ha m<strong>in</strong>ha... talvez não esteja no mesmo lugar, mas estará certamente<br />

dentro do grande cerco do Iparanã. A gente de cada clã, dentro de<br />

cada casa, já não será a mesma. Muitos estarão velhos. Alguns haverão morrido<br />

nesses anos e só serão visíveis ao velho aroe. Muitos, nascidos depois,<br />

serão homens e mulheres. Quantos fi lhos eu tenho de m<strong>in</strong>ha irmã? O velho<br />

tuxaua Anacã, meu tio clânico, estará vivo? Quem atará, agora, o nó da vergonha<br />

nos membros dos homens? Estará vivo o velho aroe Remui, meu pai<br />

verdadeiro, que me gerou no ventre de Moita? Meu velho pai cont<strong>in</strong>uará<br />

cumpr<strong>in</strong>do sua s<strong>in</strong>a de aroe, vendo e conversando com os vivos e com os<br />

mortos? Remui, guia místico de duas comunidades, sacerdote verdadeiro<br />

de Maíra-Coraci, o Sol, como te quero rever. M<strong>in</strong>has irmãs e meus irmãos,<br />

tantos, da banda jub-amrela donascente, que será deles? Meus cunhados,<br />

meus sogros, meus enteados da banda azul-ouí, como serão? Quem estará à<br />

m<strong>in</strong>ha espera, para ser m<strong>in</strong>ha mulher? Quem haverá de levar no ventre para<br />

a banda de lá a m<strong>in</strong>ha semente de aroe?<br />

Para eles volto, regresso, no desejo de retornar a um convívio que eu<br />

nunca devia ter rompido. Com que olhos eles me olharão? Que ao menos<br />

seja com a mesma entranhada ternura com que eu olharei para eles. Vendo,<br />

com doçura, a velhice nos que conheci maduros. Vendo, com gosto, nos men<strong>in</strong>os<br />

de ontem, os homens feitos de hoje. Vendo, com amor, toda a gente<br />

nova que nada sabe de mim.<br />

Como saí muito men<strong>in</strong>o, mas fornido de ossos e coberto de carnes fi rmes,<br />

eles buscarão em mim a estatura que houvera tido se não fossem tantas<br />

pestes e asmas desses ásperos <strong>in</strong>vernos romanos. Se não estivesse aí a m<strong>in</strong>ha<br />

memória para dizer-me que eu sou eu; se não estivesse aí tanta lembrança<br />

me v<strong>in</strong>culando ao que fui, eu mesmo não me reconheceria no homem esquálido,<br />

vergado, que volta para casa. Excetuando a memória que nos ata


410 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

aos dois, que temos nós de comum? Meus idos podiam ser de outro. Eu<br />

realizo a mais improvável das m<strong>in</strong>has possibilidades. Nada tenho com o<br />

men<strong>in</strong>o de então, ou quase nada. Com o homem que eu seria menos a<strong>in</strong>da.<br />

Sou apenas o desejo ardente de vir a ser um pouco do que poderia ter sido,<br />

se não fossem tantos desencontros.<br />

Meu Deus-Pai, criador do céu e da terra<br />

Meu Deus-Filho, Jesus Cristo, Nosso Senhor<br />

Morto na Cruz, por vontade do Pai, para nos salvar<br />

(Salvar quem se houvera salvo sem o Teu santo sangue)<br />

meu pobre Anjo das Trevas, servo rebelde do Senhor<br />

M<strong>in</strong>ha Nossa Senhora: útero de Deus<br />

Meu Deus-Pai, mairum: Maíra-Monan<br />

(Com seu membro imenso crescendo debaixo da<br />

terra, como uma raiz para todas as mulheres)<br />

Meu Deus-Filho: Maíra-Coraci, Sol lum<strong>in</strong>oso.<br />

Micura, teu irmão fétido: gambá sarigüê<br />

Mosa<strong>in</strong>gar, homem-mulher, ventre de Deus<br />

Deus-Pai, Deus-Filho, Arcanjo Decaído<br />

Maria Santíssima, Açucena do Senhor<br />

Maíra-Monan, Maíra-Coraci, Micura<br />

Mosa<strong>in</strong>gar: parida dos Gêmeos de Deus<br />

Meu Deus de tantas caras, eu que tanto creio<br />

como descreio, peço a cada um e a todos; rezo<br />

e peço humildemente;<br />

Que eu não chegue lá, se esta é Tua vontade<br />

Mas, se chegar, que eu possa um entre todos<br />

Indist<strong>in</strong>guível. Indiferenciável. Inconfundível<br />

Um índio mairum dentro do povo Mairum.<br />

Sei bem que estou variando outra vez, com essas m<strong>in</strong>has rezas entreveradas.<br />

Dói pensar na dor que elas provocam no velho padre Ceschiatti,<br />

sempre cheio de horror e de tristeza quando eu lhe repetia uma dessas m<strong>in</strong>has<br />

loucas <strong>in</strong>vocações. A mim também me doía com um sentimento fundo<br />

de pecado, de fracasso e de frustração. Hoje, não me importa. Sei afi nal que<br />

hoje e sempre rezarei assim.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 411<br />

Eu sou dois. Dois estão em mim. Eu não sou eu, dentro de mim está ele.<br />

Eu sou eu. Eu sou ele, sou nós, e assim havemos de viver. O velho confessor<br />

não estará jamais no futuro, esperando por mim, antes da missa para me esvaziar<br />

outra vez de mim. Eu também não estarei jamais tremendo de medo<br />

dessa hora da verdade, da antiga verdade, da verdade dos outros. Agora<br />

viverei com a m<strong>in</strong>ha verdade, a m<strong>in</strong>ha verdade entreverada. Deus do céu,<br />

meu pai e meu tio. Deus e Deus e Maíra. Maíra é Deus.<br />

Este é o meu cam<strong>in</strong>ho de volta a Mairum, o povo de Maíra. Lá tenho o<br />

meu posto, o meu lugar. Lá sou um homem da banda do nascente: dos que<br />

veem, de madrugada, o nascer do sol, sentados no fundo das suas casas.<br />

Sou dos que seguem com respeito o grande rodeio d’Ele pela enormidade<br />

do céu. Sou dos que se sentam juntos, todas as tardes, ali no pátio, do outro<br />

lado do baíto, para ver o pôr-do-sol. Sou um jaguar, do clã que dá os tuxauas,<br />

dos que jamais matam um jaguar-onça, mas que cobram uma pele de<br />

onça de cada homem que queira ser muito homem. Pr<strong>in</strong>cipalmente daquele<br />

que queira deitar com uma das m<strong>in</strong>has irmãs, com uma jaguar. Sou recíproco<br />

dos carcarás, que estão do outro lado da aldeia, atrás do baíto. Da nossa<br />

casa é impossível ver a casa deles. Da casa deles é impossível ver a nossa<br />

casa. Mas eles e nós formamos uma unidade, um verdadeiro nós, aquele nós<br />

mais profundo, de quem sabe que não pode viver nem morrer sem o outro.<br />

Lá, eu, o Avá, sou o irmão, o tio, o cunhado, o genro de muitos e muitos<br />

homens, de muitas e muitas mulheres. Com eles viverei, sabendo, só de<br />

olhá-los, quem é quem, de onde vem, que espera de mim, o que posso e<br />

devo fazer em relação a eles. Andando na aldeia entre as mulheres ou sentado<br />

no baíto, embolado com outros homens, verei e dist<strong>in</strong>guirei em cada<br />

qual sua natureza de pacu, de tapir, de tracajá, de quati, sabendo só por isso,<br />

de cada um, se é casável ou não comigo ou com os outros, ou se são impedidos,<br />

proibidos, <strong>in</strong>cestuosos. Cada um deles também me reconhecerá como<br />

o tuxauarã Avá, da casa do Jaguar, o uruantãremu que reencarna Uruantã,<br />

o antigo tuxaua, irmão de m<strong>in</strong>ha avó Putir que será reencarnado no neto de<br />

m<strong>in</strong>ha irmã P<strong>in</strong>u, que há de nascer.<br />

Tudo isso vou reviver. Tudo isso que eu me esforcei tanto para que não<br />

morresse dentro de mim, mas que não podia viver, senão na lembrança,<br />

agora, vai reviver. Tudo isso, amanhã, estará pulsando como vida lá na aldeia<br />

pra mim e para todos. Lá verei, a ela, aquela gaviã azul que será m<strong>in</strong>ha<br />

mulher.


412 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Verei também e quem sabe até conhecerei, na escuridão da noite do pátio,<br />

uma daquelas mirixorãs. Como eu gostaria, hoje, de ter uma mirixorã<br />

aqui deitada comigo, me bol<strong>in</strong>ando, sururucando. Elas vêm dos clãs novos,<br />

dos que chegaram mais tarde. Por isso vivem no lado de cima, no espaço<br />

que roda da aldeia abriu para eles, sabe-se lá quantos séculos. São de certa<br />

forma <strong>in</strong>feriores. Não, talvez não sejam <strong>in</strong>feriores. Dizem que eles entraram<br />

para o mundo dos mairuns como cativos de guerra. Mas, sendo gente muito<br />

bruta e covarde, não podiam ser comidos. Foram fi cando ali, foram vivendo<br />

ali e foram se misturando conosco. Um dia aprenderam a fazer clãs como os<br />

nossos. Depois, não se sabe quando terá sido, se <strong>in</strong>tegraram na aldeia [...].<br />

(p.107-10)


3<br />

MEU TIO O IAUARETÊ: FRONTEIRAS<br />

DA LINGUAGEM E DA FIGURAÇÃO<br />

(JOÃO GUIMARÃES ROSA)<br />

Em Meu tio o Iauaretê, justamente, Guimarães Rosa<br />

deixa bem claro, que esse limes sobre o qual se jogam os<br />

dest<strong>in</strong>os tanto da existência quanto da essência nacionais, só<br />

pode ser pensado a partir e através do índio, da sua cultura,<br />

da sua anterioridade e ulterioridade em relação ao Sentido:<br />

do seu estar em todo e em nenhum lugar, da sua atopia e da<br />

sua acronia em que se revela o signifi cado <strong>in</strong>tegral do que é<br />

Espaço e Tempo.<br />

Ettore F<strong>in</strong>azzi-Agrò<br />

O conto Meu tio o Iauaretê, de Guimarães Rosa, foi publicado pela primeira<br />

vez em 1961, na revista Senhor e, em 1969, na obra Estas estórias,<br />

organizada pelo próprio autor, como publicação póstuma. É a saga de um<br />

mestiço enviado ao sertão com o propósito de exterm<strong>in</strong>ar as onças daquela<br />

região. Vive em um rancho em precárias condições, onde um visitante o encontra<br />

e passa uma noite ouv<strong>in</strong>do seus relatos que se constroem em torno de<br />

homens e onças. O que o visitante não espera é vê-lo transformar-se no próprio<br />

animal, dadas as afi nidades com ele. O desfecho de morte que surpreende<br />

o leitor no fi nal dá-se em virtude do choque entre duas culturas: uma que<br />

tenta seu retorno à condição primitiva (a do índio), regressando ao universo<br />

totêmico fel<strong>in</strong>o, e a do civilizado, amedrontado diante do poder de metamorfose<br />

e simbolicamente traduzido no poder de destruição da arma de fogo.<br />

Mesmo diante da extensa crítica já edifi cada em torno de Guimarães<br />

Rosa e de sua temática mítico-fi losófi ca recorrente, apresenta-se, aqui, uma


414 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

das possibilidades de leitura do texto rosiano, visto como uma fonte <strong>in</strong>esgotável<br />

de novos dizeres e de diferentes olhares acerca da riqueza cultural<br />

expressa no caráter experimentalista da l<strong>in</strong>guagem legada a gerações que o<br />

<strong>in</strong>stalam no mais alto patamar da literatura brasileira.<br />

Escolher o <strong>in</strong>dígena como foco nessa refl exão poderia desencadear uma<br />

série de <strong>in</strong>dagações no entorno desse tema tomado <strong>in</strong>úmeras vezes pela crítica.<br />

O que desafi a a leitura neste momento, no entanto, é observar como se<br />

articulou a saída do espaço canonizado da literatura, em que a feição do índio<br />

é del<strong>in</strong>eada como fi gura temática na formação da cultura brasileira, para<br />

adentrar numa esfera em que a l<strong>in</strong>guagem se constrói em estado primitivo,<br />

pela voz do onceiro, dando à fabulação uma característica imperativa.<br />

Assim, o conto revela um enredo que dissolve em sons os aspectos pitorescos,<br />

de cor local, dos tipos humanos elaborados por escritores românticos,<br />

por exemplo, em que a presença do nativo na narrativa demarcava<br />

muito mais os limites de espaço e de história do país que se autodescobria<br />

do que a própria existência cultural calcada em seus s<strong>in</strong>tagmas. Uma pulsão<br />

nacionalista que estabelecia um Brasil contam<strong>in</strong>ado por culturas e etnias<br />

diferentes, mas que justifi cava, na <strong>in</strong>venção, a presença viva do colonizado<br />

como ideal representativo de um processo genealógico sem se afastar das<br />

normas europeias.<br />

Na estrutura monofônica do conto em estudo, no entanto, segundo a<br />

leitura de Machado (2000, p.280), “o signo verbal extrapola seus próprios<br />

limites, revelando a palavra como cenário não só de letra e voz mas, sobretudo,<br />

de corpo em movimento”. Dessa forma, os componentes <strong>in</strong>terativos<br />

– voz, corpo e movimento – são conjugados no monólogo dialógico<br />

(se considerado o <strong>in</strong>terlocutor virtual) para defi nir o contorno da imagem<br />

do <strong>in</strong>dígena de descendência mestiça, herdeiro do clã jaguar, que se vê em<br />

busca da recuperação de sua própria identidade. A força dessa composição<br />

mito-poética, segundo F<strong>in</strong>azzi-Agrò (2001, p.133),<br />

consiste no desvio contínuo em relação aos lugares comuns da palavra e do<br />

sentido, em vista de uma l<strong>in</strong>guagem (de um lógos, de uma lógica...) <strong>in</strong>sólita,<br />

misturada, multíplice, ilocável: num movimento que nos leva até os próprios<br />

fundamentos da língua, até à fonte secreta de onde brota a l<strong>in</strong>guagem humana,<br />

desvencilhando-se penosamente, recortando-se precariamente do seu fundo<br />

fer<strong>in</strong>o.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 415<br />

O ponto de partida e o ponto de chegada do enredo do conto é a presença<br />

do <strong>in</strong>dígena vertida na recuperação do mito, no qual a presença da onça tem<br />

a função de representar simbolicamente a sua origem, ou seja, ser índio,<br />

pertencer a um povo. Porém, a visualização desse aspecto no texto dá-se<br />

antes pela l<strong>in</strong>guagem que se estabelece como objeto, que <strong>in</strong>corpora espaços<br />

<strong>in</strong>esperados, verifi cáveis à medida que são mais v<strong>in</strong>culados ao espaço<br />

do dizer textual do que pela sua fi guração como personagem heroica. Os<br />

elementos espaço, tempo, enredo e personagem unem-se numa construção<br />

<strong>in</strong>dissociável, em que o narrador-protagonista sobrepõe-se ao visitante,<br />

utilizando apenas o recurso da fala.<br />

Ao assumir a condição de contador de sua história, revelando-a por meio<br />

da experiência com as onças, o mestiço encena sua identidade animal, o que<br />

lhe outorga o lugar dom<strong>in</strong>ante tanto do discurso, quanto da ação, uma vez<br />

que seu ouv<strong>in</strong>te se encontra em posição de espectador. O poder da metamorfose<br />

só a ele pode ser concedido, visto ser descendente do clã jaguar em<br />

seu parentesco matril<strong>in</strong>ear: fi lho de mãe índia e pai branco. Assim, Campos<br />

(1992, p.59) considera que “não é a história que cede o primeiro plano à<br />

palavra, mas a palavra que, ao irromper em primeiro plano, confi gura a personagem<br />

e a ação, devolvendo a história”.<br />

Toda essa articulação narrativa desemboca no ato central que é a negação<br />

concretizada pelo mestiço em relação ao mundo vivido anteriormente – ele<br />

fora enviado para a missão de “desonçar” o sertão porque não se adaptava<br />

ao trabalho de assass<strong>in</strong>o e, posteriormente, por ser considerado <strong>in</strong>competente<br />

na lida com a lavoura. Assim, sua condição de descendente de índio,<br />

na concepção do civilizado, o habilitaria ao trabalho de onceiro: “Eu cacei<br />

onça, demais. Sou muito caçador de onça. Vim pra aqui pra caçar onça, só<br />

pra mor de caçar onça. Nhô Nhuão Guede me trouxe pra cá. Me pagava. Eu<br />

ganhava o couro, ganhava d<strong>in</strong>heiro por onça que eu matava. D<strong>in</strong>heiro bom:<br />

glim-glim... só eu é que sabia caçar onça. Por isso Nhô Nhuão Guede me<br />

mandou fi car aqui, mor de desonçar este mundo todo” (Rosa, 1985, p.163).<br />

A partir do convívio com os animais e do desapontamento ante a civilização<br />

que o rejeitou, é delimitada a fronteira do percurso de volta ao seu<br />

clã tribal que, consequentemente, o levará à ruína. Em meio à solidão do<br />

sertão, vivendo cercado por uma organização natural contrária à vivida anteriormente<br />

em meio ao não índio, assume hábitos que o fazem entender,<br />

por exemplo, os ens<strong>in</strong>amentos que sua mãe lhe ens<strong>in</strong>ara quando criança.


416 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Dada a complexidade de fi os que se entrelaçam no decorrer da fala, o<br />

conto pode ser observado de vários ângulos, tais como o mítico, que retoma<br />

o ritual da aquisição do fogo, s<strong>in</strong>ônimo de bem-estar e de destruição, ao<br />

mesmo tempo, da humanidade; a procura pelo reconhecimento de si mesmo<br />

com o totem (a onça) pelo mestiço; o universo civilizado versus o primitivo,<br />

e a fi guração do índio pela palavra da cultura organizada no léxico e no<br />

s<strong>in</strong>tagma textuais.<br />

Um dos pr<strong>in</strong>cipais elementos que fi gura como agente desencadeador da<br />

ruptura com o mundo civilizado para alcançar o limite de sua identidade<br />

primeira é o fogo. Esse assunto já foi analisado notoriamente por Walnice<br />

Nogueira Galvão (1978), em seu célebre capítulo “O impossível retorno”,<br />

da Mitológica rosiana, e merece atenção no que diz respeito à tentativa de<br />

retorno à sua raiz étnica. O texto de Galvão resgata o fi o condutor que entrelaça<br />

a relação da onça e o fogo em contato com o clã a que o índio pertence,<br />

part<strong>in</strong>do da estrutura do mito “O fogo e a onça”, dos índios Kayapó.<br />

No mito Kayapó, 1 o fogo pertence à onça e lhe é roubado pelos índios. À<br />

onça foi deixado apenas o refl exo nos olhos que brilham no escuro. Posteriormente,<br />

passa a caçar com os próprios dentes, comer carne crua e a odiar<br />

os humanos em razão do roubo. Como se pode notar, a presença do fogo em<br />

meio <strong>in</strong>dígena marca a transição entre o mundo pertencente ao primitivo,<br />

ao cru, e o mundo cozido <strong>in</strong>troduzido na cultura do nativo. Assim, a tentativa<br />

de retorno ao clã tribal construída na narrativa rosiana seria a opção mais<br />

coerente quanto à fi gurativização do índio: deixaria o mundo do cozido, do<br />

civilizado, para retornar ao cru, ao estado de natureza, o que o aproximaria<br />

de modo decisivo à sua identidade.<br />

Nesse ir e vir confl itante que envolve a identidade do narrador-onceiro,<br />

o fogo está presente em diversas situações e se torna importante na construção<br />

do percurso da personagem, quanto à tentativa de retorno ao seu clã<br />

natural. Ele passa a onceiro justamente porque não quer usar a arma de fogo<br />

para matar o humano, como relata ao seu ouv<strong>in</strong>te:<br />

Oi: eu tava lá, matei nunca n<strong>in</strong>guém. No Socó-Boi também, matei n<strong>in</strong>guém,<br />

não. [...] No Socó-Boi, aquele Pedro Pampol<strong>in</strong>o queria, encomendou: pra eu<br />

1 Walnice Nogueira Galvão (1978, p.16-8) refere-se ao mito Kayapó na versão de Horace<br />

Banner, publicado em seu trabalho Mitos dos índios Kayapó, <strong>in</strong>titulado “O fogo da onça”.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 417<br />

matar o outro homem, por ajuste. Quis não. Eu, não. [...] Aquele Pedro Pampol<strong>in</strong>o<br />

disse que eu não prestava. Tiaguim falou que eu era mole, mole, membeca.<br />

(Rosa, 1985, p.186-7)<br />

É pelo fogo que ameaça queimar o rancho em sua saída: “Ixe, quando<br />

eu mudar embora daqui, toco fogo em rancho: pra n<strong>in</strong>guém mais poder não<br />

morar. N<strong>in</strong>guém mora em riba do meu cheiro” (ibidem, p.162). É, também,<br />

o fogo simbólico orig<strong>in</strong>ário da <strong>in</strong>gestão da cachaça, pr<strong>in</strong>cipal estimulante<br />

para que o mestiço conte sua saga e destrave a língua: “Sei fazer, eu faço:<br />

faço de caju, de fruta do mato, do milho. Mas não é bom, não. Tem esse fogo<br />

bom-bonito não” (ibidem, p.161). A<strong>in</strong>da, o que deu ao visitante a oportunidade<br />

de encontrar o rancho do mestiço: “Mecê enxergou este fogu<strong>in</strong>ho meu,<br />

de longe? É. A’pois” (ibidem, p.160), e, no desenlace do enredo, morre pelo<br />

efeito da arma de fogo: “Desvira esse revólver! Mecê br<strong>in</strong>ca não, vira o revólver<br />

pra outra banda... [...] Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo não, me mata<br />

não...” (ibidem, p.198). É de fato um fogo cruzado sobre a cabeça identitária<br />

de um índio que se “entre-vê” com a origem (o mundo do cru, da zagaia) e a<br />

civilização (do cozido, da arma de fogo), sem saber quem é. Nessa zona limítrofe,<br />

o mito se eleva para “repropor aquele passado no seu apriorismo fronteiriço,<br />

na sua essência virtual e prelim<strong>in</strong>ar: como uma <strong>in</strong>stância, afi nal, tornando<br />

possível a identidade e a signifi cação” (F<strong>in</strong>azzi-Agrò, 2001, p.150).<br />

Atada à concepção mítica, encontra-se a herança jaguar, matril<strong>in</strong>ear,<br />

que consideramos a mais forte na construção da narrativa. Se o fogo é o<br />

elemento catalisador que une os dois polos culturais, a presença da onça<br />

é uma constante que libera um poder de signifi cação a<strong>in</strong>da maior na travessia<br />

fi gurativa em direção ao eu-índio. Justifi ca-se esse pensamento pelo<br />

conjunto de saberes e experiências encenadas no decorrer do conto que edifi<br />

cam a personagem nas suas duas tarefas a serem executadas: a primeira,<br />

desonçar o sertão; a segunda, desgentar a região. Em todos os microrrelatos<br />

há a presença dos animais, que conduzem o narrador-protagonista a se<br />

identifi car e a justifi car cada ação ou cada episódio que conta ao seu ouv<strong>in</strong>te,<br />

s<strong>in</strong>gularizando-se no meio deles: “cada onça é um <strong>in</strong>divíduo, com traços<br />

físicos imediatamente identifi cáveis, manias, preferências, caráter; o sobr<strong>in</strong>ho,<br />

qual Adão nomeador, entre elas vive” (Galvão, 1978, p.27).<br />

O que a estratégia de semelhança com o totem pode contribuir no percurso<br />

da personagem, considerado seu (im)possível retorno? Inicialmente,


418 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

a onça não se sujeita a código l<strong>in</strong>guístico algum, portanto, neste sentido,<br />

está livre do mundo da l<strong>in</strong>guagem do civilizado que o priva de sua condição<br />

e passa a entender o código não verbal, simbólico, que adquire a partir<br />

da aprendizagem com o contato, como alimentar-se sem sal, comer carne<br />

crua, gostar de sangue, saber como cada animal mata e come suas presas,<br />

dentre outros exemplos. O mais signifi cativo dentre o conjunto de ações é<br />

aproximar-se do “ser” animal, realizando por meio da l<strong>in</strong>guagem, de sua<br />

fala, sua própria existência.<br />

Isso equivale ao axioma “penso, logo existo”, que poderia ser traduzido<br />

para “penso como onça, logo sou onça”: “Eh, então mecê aprende: onça<br />

pensa só uma coisa – é que tá tudo bonito, bom, bonito, bom, sem esbarrar.<br />

Pensa só isso, o tempo todo, comprido, sempre a mesma coisa só, e vai pensando<br />

assim, enquanto que tá andando, tá comendo, tá dorm<strong>in</strong>do, tá fazendo<br />

o que fi zer” (Rosa, 1985, p.188). Pensar e agir tal qual o totem, <strong>in</strong>sere-o<br />

no mundo mítico que o faz membro de sua descendência jaguar: “Eu sou<br />

onça, não falei?! Axi. Não falei – eu viro onça? Onça grande, tubixaba. Ói<br />

unha m<strong>in</strong>ha: mecê olha – unhão preto, unha dura...” [...] “tou imag<strong>in</strong>ando<br />

coisa boa, bonita” (ibidem, p.197).<br />

Outro fator que o conduz à tentativa de identifi cação é seu estado nômade,<br />

condição s<strong>in</strong>e qua non das tribos <strong>in</strong>dígenas, o que signifi ca não ter<br />

medo de vagar soz<strong>in</strong>ho, a partir da apropriação de ações pert<strong>in</strong>entes à comunidade<br />

animal: “Eu – toda a parte. Tou aqui, quando eu quero eu mudo”<br />

(ibidem, p.160). “Cê tem medo? Mecê, então, não pode ser onça....Cê não<br />

pode entender onça” (ibidem, p.163). A demonstração de equivalência<br />

se faz por meio do pacto com ele mesmo: falar sem que o ouv<strong>in</strong>te o <strong>in</strong>terrompa,<br />

isso lhe asseguraria a condição privilegiada de manipulação ou de<br />

convencimento, afi nal, o medo pertence ao outro, ao que é diferente dos<br />

animais e que não conhece suas características: “Mecê escuta e não fala.<br />

Não pode. Hã? Será? Hué! Oi, que eu gosto de vermelho! Mecê já sabe....”<br />

(ibidem, p.165). Abeira-se de uma forma de coação frente ao ouv<strong>in</strong>te, <strong>in</strong>defeso<br />

perante a experiência do mestiço, mesmo de arma em punho: “Aqui<br />

roda a roda, só tem eu e onça. O resto é comida pra nós. Onça, elas também<br />

sabem de muita coisa” (ibidem, p.168). “Ela tem medo de mim também,<br />

feito mecê” (ibidem, p.170).<br />

Como se pode notar, tanto no aspecto referente ao fogo quanto no aprendizado<br />

com as onças, há uma fenda entre o ser civilizado e o eu-índio. Essa


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 419<br />

fi ssura será preenchida por um processo de desritualização pela memória<br />

até chegar ao ápice do esvaziamento: desumanizar-se. Isso ocorre gradativamente<br />

na narrativa de acordo com a negação de referências ao mundo do<br />

civilizado até o esgotamento de suas possibilidades em direção ao homem<br />

primitivo dotado de sentimentos que o atualizam dentro do corpo mítico<br />

herdado.<br />

Há um eu dissem<strong>in</strong>ado no <strong>in</strong>ício do conto que vai se constitu<strong>in</strong>do pela<br />

adesão a um mundo contrário ao do ouv<strong>in</strong>te, de modo que exige do onceiro<br />

uma atitude precavida ao anunciar repetidas vezes, como numa espécie de<br />

contrato: “tou falando a verdade” (ibidem, p.161), até que a cachaça lhe<br />

forneça o estado de desligamento da mentira e passe a dizer a verdade sobre<br />

os fatos relatados. Um dos exemplos elucidativos é o da morte dos negros.<br />

Antes do efeito do álcool, do fogo, portanto: “Preto morreu. Eu cá<br />

sei? Morreu, por aí, morreu de doença. Macio de doença. É de verdade”<br />

(ibidem, p.161). Depois do efeito, narra cada episódio de morte, tal como<br />

sucedeu a Gugué, colocando a verdade à tona, sem reforçar a expressão<br />

dita anteriormente: “De repente, eh, eu oncei... Iá. Eu aguentei não. [...]<br />

Levei pra o Papa-Gente. Papa-Gente, onça chefe, onço, comeu jababora<br />

Gugué...” (ibidem, p.194).<br />

Na trajetória de transgressão ao mundo do não índio, nomeia-se “bicho<br />

do mato” (ibidem, p.161), em alusão a um ser quase selvagem, dado o conhecimento<br />

herdado da cultura da mãe. O alimento usado a partir do desligamento<br />

é a carne sem sal, mandioca e paçoca de carne de tatu com pimenta,<br />

o que deixa evidente o rompimento com o civilizado, além de não comer<br />

carne podre, tal qual a onça. O café não é mais utilizado por pertencer ao<br />

costume do preto com o qual morava e pelo qual nutre um sentimento de<br />

repulsa. Aguenta calor e frio, é caçador de onça, sabe andar ligeiro, pisando<br />

do jeito que não cansa. No entanto, o motivo de maior tensão dentro do universo<br />

reconstituído é o assass<strong>in</strong>ato das onças, seus parentes, que lhe causa<br />

remorso e provoca a metamorfose. De onceiro passa a desgentar a região:<br />

“Não sabiam que eu era parente delas? Oh ho! Oh ho! Tou amaldiçoando,<br />

tou desgraçando, porque matei tanta onça, por que é que eu fi z isso?! Sei<br />

x<strong>in</strong>gar, sei. Eu x<strong>in</strong>go! Tiss, n’t, n’t!...” (ibidem, p.169).<br />

O isolamento é que acentua a necessidade de aprender, de acordo com<br />

o relato, a ser igual onça, até o fato de gostar de “Maria-Maria – onça bonita,<br />

canguçu, boa-bonita” (ibidem, p.169), como uma companheira a quem


420 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

preservou a vida. Do aprendizado e da absorção de hábitos decorre o gosto<br />

pelo sangue: “Fico bêbado só quando eu bebo muito, muito sangue...” (ibidem,<br />

p.176), como também, o reconhecimento de todas as características<br />

das espécies com as quais teve contato, <strong>in</strong>clusive com a língua “nhengar”<br />

que se comunicava com os “parentes”. É nessa fronteira ideal que o espaço<br />

do sertão se constitui frente ao movimento dúplice dos diferentes, dando à<br />

expressão “nhengar” (do tupi nhehê ou nheeng) o signifi cado de “falar”,<br />

como afi rma Campos (1992, p.60), “com função não apenas estilística mas<br />

fabulativa: a tup<strong>in</strong>ização, a <strong>in</strong>tervalos, da l<strong>in</strong>guagem”.<br />

Mas, é pelo viés do nome, componente pr<strong>in</strong>cipal da personalidade de<br />

um homem, que se chega ao ponto crucial desse esvaziamento por negação<br />

em busca do eu-índio. De herança materna tupi é “Bacuriquirepa. Breó,<br />

Breó”; de seu pai (branco) veio “Tonico; bonito, será? Antonho de Eiesus...”<br />

(Rosa, 1985, p.181), batizado por um missionário. Depois chamaram-no<br />

Macuncozo (nome de um sítio e de origem africana). No presente<br />

do relato “tenho nome nenhum, não careço” ou “eu tenho todo nome”, o<br />

que F<strong>in</strong>azzi-Agrò (2001, p. 131) analisa como “a materialização duma contradição,<br />

duma diferença constitutiva, visto que é fi lho de branco e de índia,<br />

visto que ele é homem e animal, não consegu<strong>in</strong>do, por isso, se identifi car<br />

senão numa Ausência total ou numa Totalidade ausente”.<br />

O que se <strong>in</strong>fere do conjunto de <strong>in</strong>formações retiradas do texto é que a<br />

aproximação de seu estado primitivo exige negar os vínculos que o prendem<br />

ao universo do civilizado, e isso o faz no que tem de mais signifi cativo<br />

em seu contexto: desnuda-se dos nomes, até mesmo Macuncozo, como<br />

num rito penitencial que o redime pela morte dos pretos assass<strong>in</strong>ados. Além<br />

disso, <strong>in</strong>terage com a língua das onças (jaguanhenhém), deixa de amar as<br />

mulheres e ama Maria-Maria, nome homônimo de sua mãe, Mar’Iara Maria,<br />

alusivo a dois nomes mitológicos – Iara, a mãe d’água e Maria, mãe de<br />

Cristo.<br />

O esvaziamento do sentido dos nomes, e não a sua substituição, a que<br />

nos reportamos anteriormente, para at<strong>in</strong>gir a suposta identidade tribal, é<br />

mediado por elementos da cultura representante do cozido, que o submetem<br />

ao movimento decrescente de seus valores até a perda total, isto é, torna-se<br />

um ser sem nome. Seria como se o considerasse em estado de grau zero<br />

de existência cultural, pelo viés da negação dos s<strong>in</strong>tagmas ou paradigmas<br />

culturais que o levam a pertencer a um determ<strong>in</strong>ado universo emblemático


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 421<br />

que ele próprio se recusa a carregar consigo. Isso implica dizer que o mestiço<br />

não retira os caracteres para preenchê-los com outros. O que ocorre é uma<br />

fricção (um encontro do ser e do existir humanos) entre os elementos culturais<br />

constitutivos de sua identidade, que o impelem ao isolamento: “a sociedade<br />

o destitui da condição de homem e, aos poucos, ele próprio abdica do<br />

humano para assumir sua condição de ‘selvagem’” (Calobrezi, 2001, p.61).<br />

Todo o percurso de atualização da estória (como grafava Guimarães<br />

Rosa) e, consequentemente, de completude de sua identidade, pela enunciação,<br />

é construído num movimento centrífugo, que parte das sensações<br />

do narrador em forma de atos remissivos e vão compor a narrativa em sua<br />

dimensão simbólica, a de transfi gurar um elemento s<strong>in</strong>gular numa visão híbrida<br />

cultural. É o embate entre os dados de cultura que se encontram que o<br />

impulsionam a um mundo onde as normas são <strong>in</strong>compatíveis com as quais<br />

vivia.<br />

Assim, o que se vê implícito na trajetória do narrador-<strong>in</strong>térprete é a condição<br />

de escravo da maldição por ter elim<strong>in</strong>ado tantas onças, parentes seus,<br />

portanto. A violência encarcerada sob os estigmas de morte que provocou é<br />

expiada na busca de identifi cação com seus ancestrais, daí o título do conto<br />

que, segundo Galvão (1978, p.19), leva a “iauara + etê, ou seja, à onça verdadeira,<br />

à onça legítima”.<br />

A cumplicidade com as onças e o extermínio dos homens como forma<br />

de livrar-se do humano é o pressuposto legítimo que autobiografa a história<br />

de vida do mestiço. Porém, o narrador-protagonista term<strong>in</strong>a acuado entre<br />

ser ele mesmo e estar a serviço da cultura do outro. Imprime na narrativa e<br />

em sua saga uma das próprias características que a compôs: a duplicação.<br />

Matou as onças e matou os homens, amedrontou o visitante com o conhecimento<br />

exemplar de cada ruído e de todas as espécies de onças que já conheceu,<br />

e será tomado justamente pelo mesmo motivo, uma vez que procura<br />

desfazer o relato, justifi cando ser uma br<strong>in</strong>cadeira.<br />

A expressão: “tou falando a verdade”, repetida diversas vezes para fazer<br />

valer a palavra dos episódios encenados, toma agora uma via dupla, pois o<br />

que servira para manipular e convencer seu ouv<strong>in</strong>te da veracidade é motivo<br />

de sua destruição. A posição de quadrúpede assumida pelo falante, atitude<br />

disfarçada por ele, mas que anuncia um possível ataque, é para o ouv<strong>in</strong>te<br />

a verdade concreta, é o equivalente à postura de onça e poderá ser atacado<br />

por ela. Considerando a ambivalência do relato nos seus diversos episódios,


422 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

e valendo-se do fato de que o <strong>in</strong>terlocutor veio de “um fora <strong>in</strong>defi nido”, a<br />

morte do narrador-protagonista encerra uma face duvidosa frente ao objetivo<br />

da presença do ouv<strong>in</strong>te, o que revelaria, segundo F<strong>in</strong>azzi-Agrò (2001,<br />

p.128), o <strong>in</strong>sólito da narrativa: “o que era, talvez, desde o <strong>in</strong>ício o seu objetivo<br />

e sua tarefa oculta”, ou seja, a morte do mestiço.<br />

Para o leitor, que se envolve no todo <strong>in</strong>extricável da fala do narrador, a<br />

presença do ouv<strong>in</strong>te virtual situado numa dimensão não defi nida de outro<br />

que se presta a ouvir é relegada a um segundo plano de signifi cação. O que<br />

parece ser um elemento de constituição narrativa de cunho fi gurante assume<br />

o posto de uma alteridade que se realiza na morte do mestiço. O aspecto<br />

<strong>in</strong>tercalado de <strong>in</strong>genuidade e ironia que perpassa a fala do sobr<strong>in</strong>ho/fi lho<br />

do Iauaretê impede que ele leia um dos enigmas do seu <strong>in</strong>terlocutor e que<br />

poderia se traduzir, também, num enigma do texto. Tudo se revela no ápice<br />

que converge para a execução de dois projetos – o de mostrar-se como onça<br />

ao hóspede (explícito na fala) e a sua elim<strong>in</strong>ação por ele (oculto na sua passividade).<br />

Assim, segundo Campos (1992, p.61), “a transfi guração se dá isomorfi<br />

camente, no momento em que a l<strong>in</strong>guagem se desarticula, se quebra<br />

em resíduos fônicos, que soam como um rugido e como um estertor (pois<br />

nesse exato <strong>in</strong>stante se percebe que o <strong>in</strong>terlocutor virtual também toma<br />

consciência da metamorfose e, para escapar de virar pasto de onça, está disparando<br />

contra o homem-iauaretê o revólver que sua suspicácia mantivera<br />

engatilhado durante toda a conversa)”. Assim, todo o relato encenado de<br />

convencimento de ser onça, de pertencer ao mundo delas para alcançar sua<br />

identidade, fi ca preso à fala do narrador-protagonista, sem tempo para revogá-la<br />

no momento decisivo de sua permanência na esfera de <strong>in</strong>dianidade:<br />

Desvira esse revólver! Mecê br<strong>in</strong>ca não, vira o revólver pra outra banda....<br />

mexo não, tou quieto, quieto... [...] oi: tou pondo mão no chão é por nada, não,<br />

à toa.... Ói o frio...[...] Onça meu parente...Ei, por causa do preto? Matei preto<br />

não, tava contando bobagem... Ói a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo<br />

não, me mata não... Eu – Macuncozo... Faz isso não, faz não... Nhenhénhém...<br />

Heeé! (Rosa, 1985, p.198)<br />

É morto sob estado de metamorfose fel<strong>in</strong>a, acreditando em sua dimensão<br />

<strong>in</strong>tercultural, o que ultrapassa o território geográfi co do sertão para<br />

confi gurar-se no entrecruzamento de várias alteridades. Para F<strong>in</strong>azzi-Agrò


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 423<br />

(2001, p.139): “a fronteira, então, não é mais um limite extremo e externo,<br />

visto que ela passa pelo centro, redesenhando o território (o real e o textual)<br />

em volta dele e criando uma situação <strong>in</strong>tolerável, em relação à qual a única<br />

salvação (ou saída) possível é a morte”.<br />

Dentro da concepção espacial não delimitada do conto, verifi ca-se que o<br />

narrador-protagonista assume um comportamento diferenciado em cada situação<br />

típica vivida. Em relação ao não índio, fora do sertão, é um desapossado,<br />

o que lhe referenda uma marca de negatividade por não assumir sua<br />

condição de transfi gurado, de não desempenhar as mesmas ações do civilizado,<br />

uma vez que, segundo a concepção de Ribeiro (1996, p.245), com o<br />

convívio e com as relações estreitadas, “os índios se vêem submetidos a uma<br />

série de desafi os, todos eles conducentes a transfi gurações sucessivas no seu<br />

modo de ser e de viver. Nenhuma oportunidade lhes é dada de preservar<br />

seu substrato biológico, sua sociedade e sua cultura em sua forma orig<strong>in</strong>al”.<br />

Se a relação com o não índio o impele à condição <strong>in</strong>ferior, quanto ao ser<br />

índio é um desalojado ou desabitado, pois passa a ser um dest<strong>in</strong>ado à morte,<br />

como sobrevivente de uma cultura que tem um passado não resolvido.<br />

Ao longo de sua transfi guração são <strong>in</strong>troduzidos valores e critérios que não<br />

contribuem para a preservação de sua etnia. Um dos mecanismos de autodignifi<br />

cação em face do estranho é restaurar os mitos que poderão criar<br />

novas representações de mundo. Assim, no contexto rosiano recriado a partir<br />

da célula mítica da aquisição do fogo e a tentativa de desligar-se dele, o<br />

índio é dito pela palavra, matizada pelas sensações visuais, espalhadas no<br />

vermelho do sangue e do fogo; nas auditivas, v<strong>in</strong>das da fala do narradorprotagonista<br />

que dá o ritmo do prosear do sertão, lento, diferente do ritmo<br />

do civilizado; nas táteis, emersas do frio provocado pela metamorfose e nas<br />

gustativas, que demarcam a l<strong>in</strong>ha entre o cru e o cozido.<br />

Em todas as situações ele assume um papel diferenciado que lhe confere<br />

um status. O de antagonista é exercido frente à civilização que o emoldura<br />

como imaturo, dependente e não igual, uma “assimilação não reconhecida”<br />

no cam<strong>in</strong>ho da aculturação, conforme apontamentos de Ribeiro (1996), ao<br />

estudar a <strong>in</strong>teração biótica a que são submetidos os grupos <strong>in</strong>dígenas alcançados<br />

pela expansão. Diante disso, a única via de conservação de sua<br />

identifi cação tribal dá-se pelo papel de protagonista que desempenha ao<br />

retornar ao mito no qual reconstrói, por meio de ações parciais gradativas,<br />

a sua identidade, até alcançar a totalidade de sua essência mítica: ser onça.


424 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

São sentidos opostos em ambas as <strong>in</strong>stâncias, uma vez que o universo de<br />

experiências mantém relações com elementos culturais estranhos, tal como<br />

a arma de fogo, que, uma vez posta como equipamento de ação, cria uma<br />

necessidade e lhe impõe uma subord<strong>in</strong>ação frente aos agentes da civilização,<br />

enquanto a metamorfose, como código de determ<strong>in</strong>ação de sua legitimidade,<br />

o v<strong>in</strong>cula à sua matriz orig<strong>in</strong>al.<br />

É necessário observar que existem três dimensões presentes no relato:<br />

uma que se estabelece anterior ao enunciado, implícita, ou seja, uma diegese<br />

externa responsável por signifi car o índio tribal, com seu ethos específi co,<br />

mesmo que isso seja referencial ao eixo matril<strong>in</strong>ear, pois sua <strong>in</strong>dianidade<br />

está conectada por um fi o à etnia tupi; a segunda, presente na cenarização<br />

do relato, é provocada pela mutação <strong>in</strong>tencionada dos agentes da civilização<br />

para impor seu domínio sobre o índio; a terceira, a mítica, que se contrapõe<br />

aos grupos humanos e à natureza. A primeira é a cristalização de sua própria<br />

mentalidade, o que traz dentro de si, herança da mãe com a qual tem<br />

mais afi nidade e que a<strong>in</strong>da não teria sido condicionada à alteração. Não é<br />

revelada pela fala, é apreendida pela ideologia impressa nos signos referentes<br />

à oposição índio versus civilizado. A segunda é o que se pode chamar,<br />

conforme o conceito de Ribeiro (1996, p.423), de “condição genérica”, a<br />

passagem de índio tribal (considerada a fi liação materna) a de “índio civilizado”,<br />

na qual “a antiga consciência começa a ruir e a se decompor para<br />

dar lugar a uma nova forma que permanece sendo étnica, mas já corresponde,<br />

como mentalidade, à sua nova condição”. Essa se manifesta a partir<br />

dos elementos culturais do não índio, <strong>in</strong>seridos em forma representativa do<br />

“outro”, fi gurado como seu oposto, com o qual a convivência é comprometida<br />

pelas barreiras ideológicas e culturais, resultando no afastamento para<br />

o sertão onde se realizará a terceira dimensão, de caráter pacífi co e recíproco<br />

que o especifi cam como <strong>in</strong>tegrante de um corpo mítico dist<strong>in</strong>to de todos os<br />

outros. O que o prende ao mundo humano é a comunicação estabelecida<br />

por meio da fala, resultado de um amálgama de termos recolhidos de diversas<br />

culturas que contribuem na construção da ambiguidade do fazer do<br />

narrador e da própria narrativa.<br />

Esse <strong>in</strong>teressante encontro de culturas fronteiriças mostra, portanto,<br />

que há uma constante nos mitos em geral: todos eles refl etem o dilema que a<br />

humanidade enfrenta, desde que surgiu na face da terra, de como e o que fazer


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 425<br />

para restabelecer o equilíbrio no Universo, rompido pelo homem. Todo grupo<br />

humano rege suas relações com o mundo exterior (qual seja, o da natureza, o<br />

sobrenatural, o dos <strong>in</strong>imigos) pelo pr<strong>in</strong>cípio da reciprocidade (a<strong>in</strong>da que se trate<br />

de reciprocidade negativa). (Carvalho, 1979, p.13)<br />

Além das fronteiras de l<strong>in</strong>guagem demarcadas na narrativa, há outro<br />

aspecto que Per<strong>in</strong>i (2005) aponta como um efeito sobre o gênero provocado<br />

pelo texto rosiano: “o texto de Rosa guarda fortes características de uma<br />

saga, ou uma gesta, tupi. [...] Se o título Sagarana procura dar a ideia de ‘à<br />

maneira de uma saga’ (este é o sentido do sufi xo tupi –rana) há aqui uma verdadeira<br />

saga, a que talvez pudéssemos também chamar ‘Sagaetê’ (o sufi xo<br />

– etê – dá o sentido do que é verdadeiro)”. Por esse viés, pode-se perceber,<br />

então, que as estratégias do falante fazem que o leitor mergulhe no universo<br />

angustiante do relato-fala do índio, desenraizado de seus valores, e submetem<br />

o ouv<strong>in</strong>te hospedeiro à expectativa. É a palavra que o faz vítima de seu<br />

próprio prosear, dito <strong>in</strong>genuamente na tentativa de se defender da morte.<br />

Diante de um texto construído basicamente de sons, que partem do português,<br />

passam pelo tupi e chegam aos grunhidos de animal, não se encontra,<br />

no entanto, o som do estampido do tiro que o mata. É silencioso e agônico,<br />

notado no último fi o de voz em meio à súplica e à tentativa de se tornar um<br />

quase parente do ouv<strong>in</strong>te: “remuaci” (he-mu, do tupi, meu parente, companheiro).<br />

Assim como o narrador-protagonista tem sua voz calada em meio<br />

ao silêncio da morte, a cultura <strong>in</strong>dígena é silenciada pela morte cultural, cada<br />

vez mais presente nos poucos núcleos que a<strong>in</strong>da resistem no Brasil.<br />

Todos os mecanismos presentes na narrativa passam pela conversão de<br />

uma l<strong>in</strong>guagem multissignifi cativa que ao mesmo tempo tece e transgride<br />

a saga do herói/anti-herói para “restaurar toda uma tradição prestes ao<br />

apagamento. Como os antigos aedos, 2 ou os recentes transculturadores, ele<br />

(o autor) estendeu uma grande ponte entre memórias, culturas e tempos<br />

diversos” (Fant<strong>in</strong>i, 2003, p.47).<br />

Considerando a presença do índio em um signifi cativo número de obras<br />

da literatura nacional e suas especifi cidades que encerram alguns ecos em<br />

comum, Meu tio o Iauaretê pousa o olhar mais demorado e “lugaroso” no<br />

que se pode chamar de uma construção poético-cultural das mais marcan-<br />

2 Poeta da Grécia Antiga, que recitava ao som da lira.


426 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

tes em que narrativa e espaço não remetem para um lugar, “mas sim para a<br />

essência do Lugar, para um espaço que não se fecha em sítio: espaço global,<br />

refratário a qualquer localização” (F<strong>in</strong>azzi-Agrò, 2001, p.134). Um jogo articulado<br />

que estremece as fronteiras de narrar e de localizar o outro dentro<br />

do próprio eu que se isola no sertão para compreender-se animal a partir do<br />

humano. Al<strong>in</strong>havada nesse lugar “entre”, de forças em atrito está a ordem<br />

do preconceito, do diferente, imersos sob os sons e signifi cados da língua<br />

formada dos diferentes ramos que, aos poucos, toma aspecto de saga e nos<br />

envolve num pacto de silêncio, com respiração presa, de olhos atentos nos<br />

movimentos do narrador-mestiço-onça e do hóspede em estado de febre de<br />

arma em punho.<br />

Aí fi camos parados, contornando os episódios com olhos que não querem<br />

ver a morte dos homens levados às onças ou das onças pela mão do homem,<br />

num ir e vir tenso, mas comovente, à espera do último ataque – quem<br />

devora quem? Essa voz cheia de deslocamentos de espaços e de sentidos,<br />

segundo F<strong>in</strong>azzi-Agrò (2001), “se constrói devagar, segu<strong>in</strong>do as s<strong>in</strong>uosidades<br />

da memória e as estratégias da exposição oral, provocada por perguntas<br />

<strong>in</strong>audíveis do <strong>in</strong>terlocutor”. De fato, fi ca a tarefa de “beiradear” cada margem<br />

que leva a um desaguar <strong>in</strong>fi nito de possibilidades, em que “chegamos<br />

também nós, os leitores, até um lugar escuro, até o centro abismal e <strong>in</strong>tolerável<br />

da nossa condição humana” (p.129).<br />

Ao mestiço, que não é “índio tribal”, não é dada alternativa. Precisa jogar<br />

com as armas que possui, desde a de fogo que o subjugou ao isolamento,<br />

à zagaia representante de sua condição <strong>in</strong>dígena. A mais poderosa, no entanto,<br />

é a de manipulação do ouv<strong>in</strong>te no relato-voz de sua história, estratégia<br />

primordial na demonstração de seu arsenal de experiência, o que lhe<br />

preservaria a vida. Daí emerge o efeito ambíguo de sua ação, de efi cácia para<br />

a causa, torna-se demasiadamente efi caz para a consequência – considerada<br />

a morte por meio do visitante. Nas duas margens estão a mestiçagem e o legado<br />

totêmico. No curso das águas um deslizar de imag<strong>in</strong>ação e de encontro<br />

de alteridades, mas não o retorno do índio ao seu clã natural. É pela l<strong>in</strong>guagem<br />

que mergulha no que há de mais íntimo na cultura e promove o retorno.<br />

E por essa mesma l<strong>in</strong>guagem, o autor mata a tiros “o ser duvidoso”, pois<br />

as perguntas que o mestiço faz ao seu ouv<strong>in</strong>te se esgotam nas respostas que<br />

se esvaziam a cada episódio, diante da impossibilidade de compreender o<br />

sentido daquela voz. A fenda se fecha, então, por um sentido híbrido cons-


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 427<br />

truído sobre os alicerces da l<strong>in</strong>guagem e vai colocar em contexto uma <strong>in</strong>terrogação<br />

<strong>in</strong>cessante e “duvidosa”, também, acerca da identidade brasileira<br />

articulada na fi guração literária.<br />

Episódio-referência<br />

Me cê tá ouv<strong>in</strong>do, nhem? Ta aperceiando... Eu sou onça, não falei?! Axi.<br />

Não falei – eu viro onça? Onça grande, tubixaba. Ói unha m<strong>in</strong>ha: mecê<br />

olha – unhão preto, unha dura... Cê vem, me cheira: tenho cat<strong>in</strong>ga de onça?<br />

Preto Tiodoro falou eu tenho, ei, ei... Todo dia eu lavo corpo no poço... Mas<br />

mecê pode dormir, hum, hum, vai fi car esperando camarada não. Mecê ta<br />

doente, carece de deitar no jirau. Onça vem cá não, cê pode guardar revólver...<br />

Aaã! Mecê já matou gente com ele? Matou, a’pois, matou? Por quê<br />

que não falou logo? Ã-hã, matou mesmo. Matou quantos? Matou muito?<br />

Hã-hã, mecê homem valente, meu amigo...Eh, vamos beber cachaça,<br />

até a língua da gente picar de areia... Tou imag<strong>in</strong>ando coisa, boa, bonita: a<br />

gente vamos matar camarada, ‘manhã? A gente mata camarada, camarada<br />

ruim, presta não, deixou cavalo fugir p’los matos... Vamos matar?! Uh,uh,<br />

atimbora, fi ca quieto no lugar! Mecê tá muito sopitado... Ói: mecê não viu<br />

Maria-Maria, ah, pois não viu. Carece de ver. Daqui a pouco ela vem, se eu<br />

quero ela vem, vem munguitar mecê...<br />

Nhem? A’ bom, a’ pois... Trastanto que eu tava lá no alecr<strong>in</strong>z<strong>in</strong>ho com<br />

ela, ce devia de ver. Maria-Maria é careteira, raspa o chão com a mão, pula<br />

de lado, pulo frouxo de onça, bonito, bonito. Ela ouriça o fi o da esp<strong>in</strong>ha,<br />

<strong>in</strong>cha o rabo, abre a boca e fecha, ligeiro, feito gente com sono... Feito mecê,<br />

eh, eh... Que anda, que anda, balançando, vagarosa, tem medo de nada,<br />

cada anca levantando, aquele pêlo lustroso, ela vem sisuda, mais bonita de<br />

todas, cheia de cerimônia...Ela rosnava baix<strong>in</strong>ho pra mim, queria vir comigo<br />

pegar o preto Tiodoro. Aí, me deu aquele frio, aquele friiiio, acâimbra<br />

toda... Eh, eu sou magro, travesso em qualquer parte, o preto era meio gordo...<br />

Eu vim andando, mão no chão... Preto Tiodoro com os olhos doidos de<br />

medo, ih, olho enorme de ver... Ô urro!...<br />

Mecê gostou, ã? Preto prestava não, ô, ô, ô... Ói: deixa eu ver mecê direito,<br />

deix’eu pegar um tiqu<strong>in</strong>ho em mecê, tiqu<strong>in</strong>ho só, encostar m<strong>in</strong>ha mão...


428 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

Ei, ei, que é que mecê ta fazendo?<br />

Desvira esse revólver! Mecê br<strong>in</strong>ca não, vira o revólver pra outra banda...<br />

Mexo não, tou quieto... Ói: cê quer me matar, ui? Tira, tira revólver<br />

pra lá! Mecê ta doente, mecê tá variando... Veio me prender? Ói o frio...<br />

mecê tá doido?! Atiê! Sai pra fora, rancho é meu, xô! Atimbora! Mecê me<br />

mata, camarada vem, manda prender mecê... Onça vem, Maria-Maria,<br />

come mecê... Onça meu parente... Ei, por causa do preto? Matei preto não,<br />

tava contando bobagem... Ói, a onça! Ui, ui, mecê é bom, faz isso comigo<br />

não, me mata não... Eu – Macuncozo... Faz isso não, faz não... Nhenhém...<br />

Heeé!...<br />

Hé... Aar-rrâ... Aaâh... cê me arrhoôu... Remuaci... Rêiucaàanacê...<br />

Araaã... Uhm... Ui... Ui... Uh... uh... êeêê... êê... ê... ê... (p.197-8).


CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />

O texto escolhido para a epígrafe deste trabalho chamou particular atenção<br />

pela metáfora formulada por Vieira em seu Sermão do Espírito Santo<br />

(1657), em que compara os homens a “estátuas de mármore” e de “murta”,<br />

evidenciando uma espécie de desconfi ança no olhar direcionado às nações<br />

ameríndias. Com a engenhosidade que lhe é <strong>in</strong>erente, o sermonista teceu<br />

em torno dos povos <strong>in</strong>dígenas do Brasil o signifi cado contido no trabalho do<br />

jard<strong>in</strong>eiro com a murta, uma planta que reserva a postura rebelde, em não<br />

permanecer estática, de acordo com a forma que lhe fora dest<strong>in</strong>ada. A imagem<br />

que se desprende da planta espraia-se sobre os que não se curvam aos<br />

conceitos impostos, retornando ao seu estado natural, cada vez que o trabalho<br />

catequético lhe parece afastado, a<strong>in</strong>da que temporariamente, e com a<br />

liberdade sentida nos hiatos da ação. O que Vieira imprime nessa translação<br />

de sentido eleva o aspecto negativo em relação ao homem natural, que não<br />

cristaliza os conhecimentos recebidos do colonizador, permanecendo ligado<br />

aos fi os da ancestralidade.<br />

A imagem da <strong>in</strong>constância do homem americano, contida no sermão,<br />

pode ser lida pelos diferentes ângulos de fi guração que os textos escolhidos<br />

apontaram no percurso da <strong>in</strong>dianidade na literatura brasileira. O aspecto<br />

negativo atribuído pelo contexto da catequese possibilita perceber que o<br />

<strong>in</strong>dígena brasileiro teve de lutar constantemente para resguardar o direito<br />

à permanência tribal. Assim, o movimento de ir e vir entre ser ou não ser<br />

índio na realidade histórica é impresso na literatura pelas duas forças, como<br />

entre a tesoura e o braço do jard<strong>in</strong>eiro com os ramos da murta. Há que observar,<br />

no entanto, que a aparente facilidade com que os povos nativos fo-


430 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

ram submetidos ao jugo do <strong>in</strong>vasor não resultou em ações de rebeldia, permit<strong>in</strong>do-lhes<br />

o retorno ao estado natural. Antes, percebe-se que os textos<br />

fi ccionais e os relatos v<strong>in</strong>cam o estado de destruição da cultura, degradada,<br />

paulat<strong>in</strong>amente, pelas <strong>in</strong>vestidas do poder <strong>in</strong>stituído. A percepção de Vieira<br />

em relação à <strong>in</strong>constância do <strong>in</strong>dígena poderia ser <strong>in</strong>terpretada, atualmente,<br />

como positiva, se considerada a atitude como defesa do ethos. No entanto,<br />

torna-se <strong>in</strong>válida, ou negativa, tanto no plano histórico quanto no literário,<br />

se considerados os resultados da <strong>in</strong>serção dos paradigmas eurocêntricos<br />

que impediram a cultura nativa de retornar ao seu estágio natural. Por<br />

mais constantes que tenham sido as tentativas de resistência do nativo, fi ca<br />

marcado o poder ditado pela colonização, que cerceia a ação do <strong>in</strong>dígena e<br />

o desaloja de sua condição tribal ao <strong>in</strong>stalá-lo na comunidade “civilizada”.<br />

A partir da imagem construída pelo sermonista e da visualização do movimento<br />

oscilante da fi guração entre os textos, apresentam-se, a seguir, alguns<br />

apontamentos que não pretendem s<strong>in</strong>tetizar o estudo, mas ass<strong>in</strong>alar os<br />

aspectos relevantes que ele permitiu suscitar pela leitura, no tocante à presença<br />

do colonizador na cultura local e o embate que se estabeleceu entre a<br />

resistência e a aceitação dos valores ao longo dos movimentos que o imprimiram<br />

conforme as respostas exigidas para cada época em que foram escritos.<br />

O confl ito entre os b<strong>in</strong>ários é entendido por Ribeiro (1996, p.213) como<br />

“problema de <strong>in</strong>teração entre etnias tribais e a sociedade nacional, cuja<br />

compreensão é difi cultada pelas atitudes emocionais que se tende a assumir<br />

diante dele”. Constituído na realidade literária, o trânsito entre o ser tribal<br />

e o ser nacional postula-se por meio das mesmas atitudes a que Ribeiro se<br />

refere no âmbito da etnologia, com algumas nuanças diferenciadas em razão<br />

das articulações estéticas ambientadas em cada autor e alicerçadas a um<br />

macro projeto a que se <strong>in</strong>serem. Por esse viés, são perceptíveis, na literatura,<br />

as mesmas atitudes defi nidas por Ribeiro no trabalho etnográfi co que<br />

desenvolveu ante as práticas <strong>in</strong>digenistas.<br />

Dentre o conjunto de atitudes concebidas pelo etnólogo, encontra-se a<br />

romântica. Os textos selecionados neste trabalho, que abrigam esse conceito,<br />

del<strong>in</strong>eiam o índio em sua característica orig<strong>in</strong>al, ao qual devem ser respeitados<br />

os costumes e as crenças, resguardados seus direitos, e a ele dado o<br />

posto de célula <strong>in</strong>icial da cultura brasileira, como impresso nos textos <strong>in</strong>dianistas<br />

de Alencar, de modo mais acentuado, em Gonçalves Dias e Bernardo<br />

Guimarães, com algumas l<strong>in</strong>has em transição. Embora preservacionista, no


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 431<br />

entender de Ribeiro, tal atitude é permeada pelo processo de <strong>in</strong>fl uir sobre<br />

a consciência de <strong>in</strong>tegração. A<strong>in</strong>da que fi gure como ícone emblemático da<br />

nação, permanecerá como “outro”, construído como elemento nacional coletivo,<br />

e não <strong>in</strong>corporado como <strong>in</strong>divíduo, em relação ao negro e ao português,<br />

pois isso somente será aceito a partir de sua total desfi liação étnica.<br />

Na atitude <strong>in</strong>digenista, defi nida por Ribeiro (1996) como etnocêntrica, o<br />

nativo é concebido como ser primitivo, portador de características alheias<br />

ao complexo cultural do <strong>in</strong>vasor, o que move o desejo de assimilá-lo aos<br />

modos de vida alterno, como se revela nos textos <strong>in</strong>iciais, em que “a antropofagia,<br />

a poligamia e a nudez”, segundo o autor, foram considerados detestáveis<br />

– alvos, portanto, de erradicação, como se apresentaram na Carta<br />

de Achamento, de Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha, nas Cartas de Anchieta e, em parte,<br />

nos Sermões de Vieira. Permeia-os o pensamento acerca da natureza e do<br />

homem americanos como uma imagem a ser ocultada, para justifi car, assim,<br />

a adoção das formas efi cazes a serem implantadas para esconder a manifestação<br />

natural do habitante. Abrigam-se, a<strong>in</strong>da, sob a ação missionária<br />

como canal de <strong>in</strong>corporação do índio, a qualquer custo, ao eixo dogmático<br />

cristão, e os visualizam como mão de obra, ao espoliarem suas terras, com<br />

o argumento de que os recursos seriam mais compatíveis com os ideais de<br />

progresso em mãos do colonizador do que nas mãos dos que as ocupam.<br />

Revestidos de atitude <strong>in</strong>digenista, com ênfase à realidade social e imediata,<br />

são os textos que arquitetam a trágica experiência brasileira de compelir<br />

o índio a abandonar os costumes tribais, suas crenças, <strong>in</strong>terfer<strong>in</strong>do no aspecto<br />

funcional dos elementos culturais, sua organização <strong>in</strong>terna e sua <strong>in</strong>terdependência.<br />

Sob essa concepção residem as consequências da presença<br />

do poder constituído sobre os territórios <strong>in</strong>dígenas, tornando irreversível a<br />

manutenção do ethos tribal, uma vez que a <strong>in</strong>serção de novos valores conduz<br />

ao colapso e, consequentemente, à perda da capacidade de <strong>in</strong>teração <strong>in</strong>tertribal<br />

ou com a própria comunidade que discrim<strong>in</strong>a o nativo racial e culturalmente,<br />

tipifi cando-o como <strong>in</strong>ferior. Um dos autores em que os confl itos<br />

procedentes da <strong>in</strong>tervenção missionária se manifestam é Basílio da Gama,<br />

em O Uraguai, em que as imagens são expostas no massacre dos Sete Povos<br />

das Missões. Essa fonte imagética <strong>in</strong>augural, que traz o índio submetido e,<br />

ao mesmo tempo, portador de uma força cultural signifi cativa, foi, posteriormente,<br />

no romantismo brasileiro, redirecionada na sua <strong>in</strong>dicação como<br />

representante étnico do brasileiro nato.


432 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

A negação dos valores fundamentais, envolvidos nessa relação, causa<br />

efeitos <strong>in</strong>calculáveis no que diz respeito aos estereótipos formados a partir<br />

das ações tradicionais que as etnias sempre tiveram como certas e das sanções<br />

que recaíram sobre elas como reprováveis. Entre a fronteira extrativista,<br />

pastoril ou agrícola e o convívio com as etnias construiu-se uma muralha<br />

de preconceitos, t<strong>in</strong>gida de um repertório de alusões aos índios, descritos<br />

como bichos mais que como seres humanos, traiçoeiros, preguiçosos, violentos,<br />

<strong>in</strong>fantis, dentre outros adjetivos que passaram a ser utilizados diante<br />

de qualquer procedimento discrepante do habitual por qualquer nativo.<br />

A imagem tecida na atitude <strong>in</strong>digenista, de visada crítica, projeta, com<br />

mais <strong>in</strong>tensidade, o índio como um não índio, desagregado da herança étnica<br />

pela assimilação na comunidade nacional, que não ocorre de fato, por<br />

ter os alicerces postos na força de trabalho, enquanto o modo de viver e ser<br />

dos nativos não são valorizados, desviando sua atenção à prática de resistência<br />

ante os que o escravizam de forma pessoal. As compulsões a que é<br />

submetido levam à transfi guração da <strong>in</strong>dianidade, a<strong>in</strong>da que persista a condição<br />

de índio, como é fi gurado no texto de Guimarães Rosa. É relevante,<br />

também, em Antonio Callado, Darcy Ribeiro e Cavalcanti Proença, nos<br />

quais a problemática da transformação radical da cultura dá-se pelo viés da<br />

expansão econômica. A transfi guração leva à ruína da consciência do ethos<br />

específi co, que, decomposto, cede lugar a uma nova mentalidade, ligada à<br />

sua condição aculturada, a<strong>in</strong>da que resista à condição étnica <strong>in</strong>icial pelos<br />

fi os cristalizados no grupo. Explica-se, com isso, o trânsito entre a <strong>in</strong>dianidade<br />

e a brasilidade impresso na designação “caboclo” que se constituiu em<br />

determ<strong>in</strong>ados locais. O caboclo, como se percebe em algumas personagens<br />

de Darcy Ribeiro, por exemplo, é visto como índio totalmente destribalizado,<br />

de remota origem, propenso à <strong>in</strong>serção à comunidade nacional, por ter<br />

sido isolado de sua v<strong>in</strong>culação tribal e por negar sua condição <strong>in</strong>desejada de<br />

“outro”, quando referida a etnia.<br />

O único vínculo que unifi ca o índio transfi gurado ao seu grupo é o conjunto<br />

de mitos e crenças, dramatizado nas ações alegóricas de seus heróis,<br />

que responde às questões de representação de sua especifi cidade de povo<br />

dist<strong>in</strong>to de outros, como também à justifi cação de formas de comportamento<br />

que legitimam a efi cácia dos ritos e cerimônias narrados desde os ancestrais.<br />

Apesar da contradição com a realidade vivida após o impacto com<br />

a civilização, é possível perceber que a preservação das tradições míticas


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 433<br />

contribui para explicar as novas situações do mundo, uma vez que as condições<br />

étnicas anteriores foram transformadas. Dessa maneira, ao responder<br />

às novas <strong>in</strong>dagações postas pelo <strong>in</strong>vasor, os temas da mitologia <strong>in</strong>dígena<br />

encontram variações comuns nos mitos alternos, un<strong>in</strong>do personagens que<br />

oferecem respostas às experiências atualizadas. Mesmo com o repertório<br />

alternativo, o mito caracteriza-se como legitimador da conduta, elemento<br />

que cristaliza a atitude <strong>in</strong>dagativa diante das novas situações que exigem a<br />

confi rmação do conteúdo antigo. Visto por esse viés, o mito localiza-se no<br />

ponto fi nal da transfi guração étnica, quando só resta ao índio a tentativa de<br />

retorno à consciência tribal, que já não é mais possível, em função do acercamento<br />

da civilização, que o rejeita como igual.<br />

Desempenhando o papel de realidade poética, a fi guração da cultura por<br />

meio da atitude mítica recria um passado que não existe, mas que poderá vir<br />

a ser pelo pr<strong>in</strong>cípio da contradição, visto que a imagem ajusta os tempos entre<br />

a experiência amarga de não ser índio e a remota origem recordada. Os<br />

textos de Mário de Andrade, Bopp e Rosa, dentre outros, são os que engendram,<br />

de maneira mais acentuada, a temática do retorno às origens, salvo<br />

as escolhas simbólicas que cada autor manipulou para revelar a d<strong>in</strong>âmica<br />

<strong>in</strong>terna da fi guração, ao desatar os nós em que o índio está preso entre o<br />

espaço de um ser aculturado e o da permanência como índio tribal. A realidade<br />

fi gurativa apreende e transubstancia o que a realidade histórica impõe:<br />

a única saída que os grupos aculturados veem é a de se mimetizarem em<br />

“não índio”, até que não sejam denunciados. O corpus escolhido nesse percurso<br />

cumpre com o ideário de revelar a realidade nacional pela elaboração<br />

estética, e o faz exigido pelas mudanças de comportamento e pela maneira<br />

pela qual fora captada como objeto artístico, tal como a metáfora impressa<br />

na ação da murta, que, a um descuido de seu opressor, toma novas formas.<br />

Assim, a <strong>in</strong>constância presente nas ações de personagens <strong>in</strong>dividuais e coletivas<br />

fi gura, em quadros diferentes, a constante disposta no percurso dos<br />

textos, que é tornar perceptível o contorno dado ao nativo em relação a seu<br />

alterno e a tentativa reiterante de se autopreservar.<br />

A esta altura dos apontamentos, é necessário visualizar o papel da literatura<br />

brasileira na constituição da imagem do índio no percurso estabelecido<br />

por este trabalho. Primeiramente, não se teve a pretensão de eleger esta<br />

ou aquela obra como mais ou menos importante esteticamente, dentro do<br />

conjunto, pois o lugar que cada uma ocupa representa não apenas o índio


434 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

como tema ou como assunto de determ<strong>in</strong>ado autor, mas como um dos elementos<br />

fundamentais de um projeto estético. Assim, coube selecionar um<br />

corpus em que a fi gura do nativo propiciasse um diálogo articulado entre os<br />

textos, sem a preocupação de ser apenas diacrônico. Justifi ca-se, por esse<br />

viés, a presença de Gregório de Matos e Oswald de Andrade juntos num<br />

dos capítulos, pela d<strong>in</strong>âmica estabelecida na apropriação do elemento local,<br />

aproximada pela atitude antropofágica <strong>in</strong>erente, a<strong>in</strong>da que afastada historicamente.<br />

O que os torna fundamentais nesta leitura é a maneira como o<br />

tema foi manipulado para dar vazão a um determ<strong>in</strong>ado projeto, como se<br />

pode observar, também, entre o índio constituído pelo barroco de Antonio<br />

Vieira e o de Gregório de Matos, ambos localizados na mesma esfera estética<br />

e pautados pelas diferentes maneiras de representá-lo.<br />

O corpus, assim observado, permitiu constituir outro diálogo entre a literatura<br />

brasileira e a fortuna crítica, consolidada como <strong>in</strong>stituição reveladora<br />

dos matizes impressos. Ambas tecem os fi os de sustentação do objeto<br />

pr<strong>in</strong>cipal da leitura, na qual o índio é del<strong>in</strong>eado a partir de denom<strong>in</strong>adores<br />

comuns em alguns casos e de caracteres adversos noutros, e deságuam no<br />

mesmo manancial da nacionalidade ou da formação do povo brasileiro. Ao<br />

estabelecerem esse canal, também fazem o percurso da fi guração do nativo,<br />

ao vê-lo por diferentes ângulos. Assim, da Carta de Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha<br />

ao texto de Guimarães Rosa percebem-se as nuanças de construção do idílico,<br />

do romântico e do destribalizado, al<strong>in</strong>havados por vozes múltiplas,<br />

como personagens, narradores, autores implícitos e a crítica <strong>in</strong>terpretativa.<br />

No entanto, a voz do índio propriamente não é ouvida, raras vezes <strong>in</strong>s<strong>in</strong>uada<br />

pelo contexto, por necessidade do enredo ou para preencher uma lacuna.<br />

O texto que revela maior proximidade com o nativo é o Meu tio o Iauaretê,<br />

de Guimarães Rosa, estabelecendo, por meio do mito, a possibilidade de<br />

devolver ao nativo sua identidade pela voz.<br />

É o que aponta o percurso feito, mas não resolve a questão da formação<br />

da identidade nacional, pois Rosa é o limite entre os autores modernos e outros<br />

poderiam fazer de forma diferente. Assim, fi ca suspensa a imagem do<br />

índio na literatura, uma vez que a fi guração oscila entre as demandas ideológicas,<br />

históricas e estéticas, e não traça um perfi l nítido, justamente pelo<br />

caráter híbrido da cultura brasileira, multifacetada em sua constituição. O<br />

índio transitará, sem dúvida, pelos textos literários, com formatos diferenciados,<br />

tal qual irá se confi gurando a própria literatura ao cumprir seu papel


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 435<br />

de “sistema simbólico”, como aponta Candido, e da crítica, ao desempenhar<br />

a função de <strong>in</strong>terpretar as novas faces construídas. Pela perspectiva<br />

das vozes, manifestadas pela l<strong>in</strong>guagem literária e pela crítica, espera-se<br />

que o corpus aqui apresentado contribua para a compreensão da literatura<br />

brasileira em seu matiz plural e mestiço, não permit<strong>in</strong>do o esgotamento do<br />

assunto nesse exercício.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS<br />

Colonização e relato: síntese e dimensão<br />

do estereótipo <strong>in</strong>dígena<br />

ANGULO, R. A. C. Roteiro de Maíra. São José do Rio Preto, 1988. 216f. Dissertação<br />

(Mestrado em Literatura Brasileira) – Instituto de Biociências, Letras e<br />

Ciências Exatas- IBILCE/Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita<br />

Filho”.<br />

AUERBACH, E. Figura. São Paulo: Ática, 1997.<br />

BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.<br />

CAMPOS, H. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977.<br />

CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 8.ed.<br />

Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia 1997. v.II.<br />

COUTINHO, A. A Literatura no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio; Eduff,<br />

1986. v.III.<br />

HOLANDA, S. B. de. Raízes do Brasil. 26.ed. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.<br />

LOPEZ, T. P. A. Mário de Andrade: ramais e cam<strong>in</strong>hos. São Paulo: Duas Cidades,<br />

1972.<br />

MEYER, M. Folhetim: uma história. São Paulo: Cia. da Letras, 1996.<br />

PERRONE-MOISÉS, L.Vira e mexe nacionalismo: paradoxos do nacionalismo<br />

literário. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.<br />

PROENÇA, M. C. José de Alencar na Literatura brasileira. In: ALENCAR, J.<br />

de. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar Ltda., 1959.<br />

RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a <strong>in</strong>tegração das populações <strong>in</strong>dígenas no<br />

Brasil moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.<br />

RONCARI, L. Literatura Brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos.<br />

2.ed. São Paulo: Edusp, 2002.<br />

SANTIAGO, S. Roteiro para uma leitura <strong>in</strong>tertextual de Ubirajara. In: ALEN-<br />

CAR, J. de. Ubirajara (apresentação). São Paulo: Ática, 2003.


438 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

SODRÉ, N. W. História da Literatura Brasileira: seus fundamentos econômicos.<br />

6.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.<br />

VERÍSSIMO, J. História da Literatura Brasileira: de Bento Teixeira (1601) a Machado<br />

de Assis (1908). São Paulo: Letras & Letras, 1998.<br />

Parte I<br />

ANDRADE, O. de. Manifesto antropofágico. In: ___. A utopia antropofágica.<br />

2ed. São Paulo: Globo, 1995. (Obras completas de Oswald de Andrade).<br />

ANCHIETA, J. de. Cartas: <strong>in</strong>formações, fragmentos históricos e sermões. Belo<br />

Horizonte: Itatiaia: São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1988.<br />

. Poemas: lírica portuguesa e tupi. Organização, estabelecimento de texto,<br />

iconografi a e tradução dos textos em tupi Eduardo de Almeida Navarro, Helder<br />

Perri Ferreira. 2.ed. São Paulo: Mart<strong>in</strong>s Fontes, 2004. (Coleção Poetas do<br />

Brasil).<br />

BELLUZZO, A. M. A propósito d’O Brasil dos Viajantes. Revista USP, Dossiê<br />

30: Brasil dos Viajantes, p.8-19, jun./ago. 1996. Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2007.<br />

BERNARDO, C. da P. O discurso argumentativo no Sermão de Vieira. Revista<br />

Philologus, UFRJ, ano 5, n.13. S. d. Disponível em: . Acesso em 12 mar. 2008.<br />

BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.<br />

CANDIDO, A. Vários escritos. São Paulo: Duas Cidades, 1970.<br />

CASTRO, E. V. A <strong>in</strong>constância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia.<br />

São Paulo: Cosac Naify, 2002.<br />

CHAMIE, M. Cam<strong>in</strong>hos da Carta: uma leitura antropofágica da Carta de Pero Vaz<br />

de Cam<strong>in</strong>ha. Ribeirão Preto: Funpec, 2002.<br />

CHAVES, V. P. A glorifi cação do Tratado de Madri, forma orig<strong>in</strong>al da brasilidade<br />

de O Uraguay. In: TEIXEIRA, I. Obras poéticas de Basílio da Gama: ensaio e<br />

edição crítica de Ivan Teixeira. São Paulo: Edusp, 1996. (Texto e Arte, 12).<br />

. O Uruguai e a fundação da literatura brasileira. Camp<strong>in</strong>as: Unicamp, 1997.<br />

. O despertar do gênio brasileiro: uma leitura de O Uruguai de José Basilio da<br />

Gama. Camp<strong>in</strong>as: Unicamp, 2000.<br />

CORTESÃO, J. Carta de Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha a El-Rei D. Manuel sobre o Achamento<br />

do Brasil. Texto <strong>in</strong>tegral. São Paulo: Mart<strong>in</strong> Claret, 2003.<br />

FREYRE, G. Casa grande e senzala: formação da família brasileira sob o regime de<br />

economia patriarcal. 8.ed. Rio de Janeiro, 1954.<br />

GAMA, B. da. O Uraguai. Rio de Janeiro: Record, 2003.<br />

GERMANO, I. M. P. Alegorias do Brasil: imagens de brasilidade em Triste fi m de<br />

Policarpo Quaresma e Viva o povo brasileiro. São Paulo: Annablume, Fortaleza:<br />

Secretaria de Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 2000.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 439<br />

GOMES, E. A poesia de Basílio da Gama. In: TEIXEIRA, I. Obras poéticas de<br />

Basílio da Gama: ensaio e edição crítica de Ivan Teixeira. São Paulo: Edusp,<br />

1996. (Texto e Arte, 12).<br />

HADDAD, J. A. Introdução a Vieira: os elementos barroco e clássico na composição<br />

dos Sermões. In: VIEIRA, A. Os sermões. Seleção com ensaio crítico de<br />

Jamil Almansur Haddad, São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1968.<br />

HOLANDA, S. B. Capítulos de Literatura colonial. Organização e <strong>in</strong>trodução de<br />

Antonio Candido. São Paulo: Brasiliense, 1991.<br />

MERQUIOR, J. G. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira.<br />

3.ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.<br />

MORALES, C. T. La construcción del discurso teológico jesuita en lo que respecta a<br />

la esclavitud <strong>in</strong>dígena en la Amazonia: Vieira y sus pronunciamientos en contra<br />

del sometimiento <strong>in</strong>dígena por parte de los colonos y moradores del estado del<br />

Marañón y Gran Pará. Instituto Combiano de Antropologia e História: ICA-<br />

NH – Universidade Nacional da Colômbia, 2004. Disponível em: . Acesso em: 11<br />

mar. 2008.<br />

PALACIN, L. Vieira e a visão trágica do barroco: quatro estudos sobre a consciência<br />

possível. São Paulo: Hucitec; Brasília: INL, Fundação Nacional Prómemória,<br />

1986.<br />

PERRONE-MOISÉS, L. Cam<strong>in</strong>ha e Gonneville: primeiros olhares sobre o Brasil.<br />

Revista USP, Dossiê 12 – 500 anos de América, dez./jan./fev. 1991-1992. Disponível<br />

em: . Acesso em: 30 dez. 2007.<br />

. Vira e mexe nacionalismo: paradoxos do nacionalismo literário. São Paulo:<br />

Cia. das letras, 2007.<br />

PIRES, M. L. G. Vieira pregador. Revista Millenium on l<strong>in</strong>e, n.8, out. 1997. Disponível<br />

em: . Acesso em: 11 mar.<br />

2008.<br />

RIBEIRO, B. Os aboríg<strong>in</strong>es descobrem o europeu. Revista USP, Dossiê 12 – 500<br />

anos de América, dez./jan./fev. 1991-192. Disponível em: . Acesso em: 30 dez. 2007.<br />

RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a <strong>in</strong>tegração das populações <strong>in</strong>dígenas no<br />

Brasil moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.<br />

RONCARI, L. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos.<br />

2.ed. São Paulo: Edusp, 2002.<br />

SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas, <strong>in</strong>stituições e questão racial<br />

no Brasil. – 1870-1930. São Paulo: Cia. das Letras, 1993.<br />

SODRÉ, N. W. História da Literatura Brasileira: seus fundamentos econômicos.<br />

6.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.<br />

TEIXEIRA, I. Obras poéticas de Basílio da Gama: ensaio e edição crítica de Ivan<br />

Teixeira. São Paulo: Edusp, 1996. (Texto e Arte, 12).<br />

TODOROV, T. A conquista da América: a questão do outro. Trad. Beatriz Perrone-Moisés.<br />

São Paulo: Mart<strong>in</strong>s Fontes, 2003.


440 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

VIEIRA, A. Sermão da primeira Dom<strong>in</strong>ga da Quaresma, na Cidade de S. Luiz<br />

do Maranhão, Ano de 1653. In: ___. Sermões selectos do Padre Antonio Vieira.<br />

Lisboa: Rolland & Semiond, 1874.<br />

. Sermão da Epifania. In: . Sermões. Obra completa de Padre Antonio<br />

Vieira. Prefácio e revisão de Rev. Padre Gonçalo Alves. Porto: Lello & Irmão<br />

Editores; Lisboa: Aillaud & Lellos Ltda., 1951. V.II<br />

VERÍSSIMO, J. O Uraguay, de Basílio da Gama. In: TEIXEIRA, I. Obras poéticas<br />

de Basílio da Gama: ensaio e edição crítica de Ivan Teixeira. São Paulo:<br />

Edusp, 1996. (Texto e Arte, 12).<br />

Parte II<br />

ABREU, M. M. de. O <strong>in</strong>dianismo épico em Ubirajara, romance de José de Alencar.<br />

Revista Brasil de Literatura, Ano IV, 2002. Disponível em: .<br />

Acesso em: 4 set. 2007.<br />

ALENCAR, J. de. O Guarani. São Paulo: Ática, 2003a.<br />

. Ubirajara. São Paulo: Ática, 2003b.<br />

. Iracema. São Paulo: Ática, 2004a.<br />

. Carta ao Dr. Juaguaribe. In: . Iracema. São Paulo: Ática, 2004b.<br />

BARBOSA, J. A. Leitura de José de Alencar. In: ALENCAR, J. de. O Guarani.<br />

São Paulo: Ática, 2003.<br />

BÍBLIA SAGRADA. Apocalipse. 153.ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, Edição<br />

Claretiana, 2002.<br />

BANDEIRA, M. A poética de Gonçalves Dias. In: DIAS, G. Poesia completa e<br />

prosa escolhida. Rio de Janeiro: Aguilar, 1959.<br />

BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992<br />

. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004.<br />

. Imagens do romantismo no Brasil. In: GUINSBURG, J. (Org.) O romantismo.<br />

São Paulo: Perspectiva, 2005.<br />

CAMPOS, H. de. Iracema: uma arqueografi a de vanguarda. In: ___. Metal<strong>in</strong>guagem<br />

& outras metas. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.<br />

CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 8.ed.<br />

Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia 1997. v.II.<br />

DIAS, G. Poesia <strong>in</strong>dianista: obra <strong>in</strong>dianista completa: poesia e dicionário da língua<br />

tupi. Introdução, organização e fi xação de texto Márcia Ligia Guid<strong>in</strong>. 2.ed. São<br />

Paulo: Mart<strong>in</strong>s Fontes, 2002. (Coleção Poetas do Brasil).<br />

GUIMARÃES, B. História e tradições da província de M<strong>in</strong>as-Geraes. Rio de Janeiro:<br />

H. Garnier, s. d.<br />

MOTTA, S. V. O engenho da narrativa e sua árvore genealógica: das origens a Graciliano<br />

Ramos e Guimarães Rosa. São Paulo: Editora Unesp, 2006.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 441<br />

OLIVEIRA, R. C. Cam<strong>in</strong>hos da identidade: ensaios sobre identidade e multiculturalismo.<br />

São Paulo: Editora Unesp; Brasília: Paralelo 15, 2006.<br />

ORTIZ, R. O Guarani: um mito de fundação da brasilidade. Revista Ciência e<br />

Cultura. Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), São Paulo,<br />

v.40, n.3, 1988.<br />

PEREIRA, L. M. A leitora e seus personagens: seleta de textos publicados em periódicos<br />

(1931-1943) e em livros. Rio de Janeiro: Grafhia, 1992.<br />

PROENÇA, M. C. José de Alencar na literatura brasileira. Rio de Janeiro: Civilização<br />

Brasileira, 1959.<br />

REIS, Z. C. Um novo mundo. In: ALENCAR, J. de. Iracema. São Paulo: Ática,<br />

2004.<br />

RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a <strong>in</strong>tegração das populações <strong>in</strong>dígenas no<br />

Brasil moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.<br />

RONCARI, L. Literatura brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos.<br />

2.ed. são Paulo: Edusp, 2002.<br />

SANTIAGO, S. Roteiro para uma leitura <strong>in</strong>tertextual de Ubirajara. In: ALEN-<br />

CAR, J. de. Ubirajara. São Paulo: Ática, 2003.<br />

SHOLLES, R., KELLOGG, R. A natureza da narrativa. São Paulo: McGraw-<br />

Hill do Brasil, 1977.<br />

SODRÉ, N. W. História da Literatura Brasileira: seus fundamentos econômicos.<br />

6.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.<br />

Parte III<br />

ANDRADE, C. D. de. Raul Bopp – cuidados de arte. In: BOPP, R. Mironga e<br />

outros poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1978.<br />

ANDRADE, M. de. Os fi lhos da Cand<strong>in</strong>ha. São Paulo: Livraria Mart<strong>in</strong>s Editora,<br />

1943. (Obras completas de Mário de Andrade).<br />

. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Texto revisto por Telê Porto Ancona<br />

Lopez. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Garnier, 2001.<br />

. Aspectos da Literatura Brasileira. São Paulo: Mart<strong>in</strong>s Editora, s. d.<br />

ANDRADE, O. de, Manifesto antropofágico. In: . A utopia antropofágica.<br />

2.ed. São Paulo: Globo, 1995.<br />

ASSIS, M. de. Notícia da atual literatura brasileira: <strong>in</strong>st<strong>in</strong>to de nacionalidade. In:<br />

. Obra completa. Rio de Janeiro: José Aguilar Ltda., 1959. v.III.<br />

ATAÍDE, J. Crônicas urbanas: Macobeba. Disponível em: . Acesso em: 09 out. 2006.<br />

AVERBUCK, L. M. Anotações de uma leitora de Raul Bopp. In: BOPP, R. Mironga<br />

e outros poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1978.<br />

. Cobra Norato e a Revolução Caraíba. Rio de Janeiro: José Olympio, Brasília:<br />

INL, 1985. (Coleção Documentos Brasileiros, n.197).


442 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

BASTIDE, R. Brasil: terra de contrastes. Trad. Maria Isaura P. Queiroz. São Paulo:<br />

Difusão Europeia do Livro, 1969.<br />

BOPP, R. “Bopp passado-a-limpo” por ele mesmo. Rio de Janeiro: Tupi, 1972.<br />

. Vida e morte da antropofagia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília:<br />

INL, 1977.<br />

. Mironga e outros poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, Brasília:<br />

INL, 1978.<br />

. Cobra Norato. Ilustrações de Poty. 21.ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 2000.<br />

BOSI, A. Situação de Macunaíma. In: LOPEZ, T. P. A. (Coord.) Mario de Andrade.<br />

Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edición crítica. 2.ed. Madri, Paris,<br />

México, Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro, Lima: ALLCA XX, 1996.<br />

BRASIL, A. B. Mitos amazônicos: o Caríua. Porto Alegre: Escola Superior de Teologia<br />

e Espiritualidade Franciscana, 1986.<br />

CAMPAGNARO, L. O mítico e o poético em Cobra Norato, de Raul Bopp. Porto<br />

Alegre, 1979. Dissertação (Mestrado) – Instituto de Letras e Artes, Pontifícia<br />

Universidade Católica do Rio Grande do Sul.<br />

CAMPOS, H. Morfologia do Macunaíma. São Paulo: Perspectiva, 1973.<br />

CARVALHAL, T. F. Na trilha da brasilidade. In: BOPP, R. Mironga e outros poemas.<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1978.<br />

CASCUDO, C. Dicionário do folclore brasileiro. 10.ed. ilustrada. São Paulo: Global,<br />

2001.<br />

CAVALCANTI, M. L. V. de C. Cultura popular e sensibilidade romântica: as<br />

danças dramáticas de Mário de Andrade. Revista Brasileira de Ciências Sociais,<br />

São Paulo, v.19, n.54, fev. 2004.<br />

COUTINHO, A. A literatura no Brasil. 3.ed. Rio de Janeiro: José Olympio; Eduff,<br />

1986. v.III.<br />

DEL PICCHIA, M. Del Picchia, sobre Raul Bopp. In: BOPP, R. Mironga e outros<br />

poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1978.<br />

ELIADE, M. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2006.<br />

FINAZZI-AGRÒ, E. As palavras em jogo: Macunaíma e o enredo dos signos. In:<br />

LOPEZ, T. P. A. (Coord.). Mario de Andrade. Macunaíma: o herói sem nenhum<br />

caráter. Edición crítica. 2.ed. Madri, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo,<br />

Rio de Janeiro, Lima: ALLCA XX, 1996.<br />

FONSECA, M. A. A Carta pras Icamiabas. In: LOPEZ, T. P. A. (Coord.) Mario<br />

de Andrade. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edición crítica. 2.ed.<br />

Madri, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro, Lima: ALLCA<br />

XX, 1996.<br />

GRÜNBERG, T. K. Do Roraima ao Or<strong>in</strong>oco. Observações de uma viagem pelo<br />

norte do Brasil e pela Venezuela durante os anos de 1991 a 1913. Trad. Crist<strong>in</strong>a<br />

Alberts-Franco. São Paulo: Editora Unesp, 2006. v.1.<br />

LOPEZ, T. P. A. Mário de Andrade: ramais e cam<strong>in</strong>hos. São Paulo: Duas Cidades,<br />

1972.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 443<br />

. (Coord.) Mario de Andrade. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Edición<br />

crítica. 2.ed. Madri, Paris, México, Buenos Aires, São Paulo, Rio de Janeiro,<br />

Lima, ALLCA XX, 1996.<br />

MAGALHÃES, H. G. D. História da Literatura de Mato Grosso: século XX.<br />

Cuiabá, Unicen Publicações, 2001.<br />

MELLO e SOUZA, G. de. O tupi e o alaúde: uma <strong>in</strong>terpretação de Macunaíma.<br />

São Paulo: Duas Cidades, 1979.<br />

MENDES, M. De Murilo Mendes, sobre Raul Bopp. In: BOPP, R. Mironga e<br />

outros poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1978.<br />

MOTTA, S. V. O engenho da narrativa e sua árvore genealógica: das origens a Graciliano<br />

Ramos e Guimarães Rosa. São Paulo: Editora Unesp, 2006.<br />

OLIVEIRA, V. L. Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro. São Paulo: Editora<br />

Unesp, Blumenau: Furb, 2002.<br />

PERRONE-MOISÉS, L.Vira e mexe nacionalismo: paradoxos do nacionalismo<br />

literário. São Paulo: Cia. das Letras, 2007.<br />

PROENÇA, I. C. Humanismo com os pés no chão. In: PROENÇA, M. C. Manuscrito<br />

holandês ou A peleja do Caboclo Mitavaí com o Monstro Macobeba. Rio<br />

de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. p.11-3.<br />

. Atrás do morro tem morro (ou: o vento que sopra lá sopra aqui também.<br />

Ou, a<strong>in</strong>da, o que dá pra rir pode dar pra chorar). In: PROENÇA, M. C. Manuscrito<br />

holandês ou A peleja do Caboclo Mitavaí com o Monstro Macobeba. Rio<br />

de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990. p.15-7.<br />

PROENÇA, M. C. No termo de Cuiabá. M<strong>in</strong>istério da Educação e Cultura. Instituto<br />

Nacional do Livro. Biblioteca de Divulgação Cultural, série A – XVI,<br />

1958.<br />

. Roteiro de Macunaíma. 5.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.<br />

. Manuscrito holandês ou A peleja do Caboclo Mitavaí com o Monstro Macobeba.<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1990.<br />

RIBEIRO, D. Maíra: um romance dos índios e da Amazônia. Ilustrações Poty.<br />

14.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. Edição especial comemorativa de v<strong>in</strong>te<br />

anos da obra.<br />

. Lim<strong>in</strong>ar. In: LOPEZ, T. P. A. (Coord.) Mario de Andrade. Macunaíma: o<br />

herói sem nenhum caráter. Edición crítica. 2.ed. Madri, Paris, México, Buenos<br />

Aires, São Paulo, Rio de Janeiro, Lima: ALLCA XX, 1996a.<br />

. Os índios e a civilização: a <strong>in</strong>tegração das populações <strong>in</strong>dígenas no Brasil<br />

moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1996b.<br />

SALLES, F. T. Das razões do Modernismo. Introdução de Raul Bopp. Brasília; Rio<br />

de Janeiro: Editora Brasília, 1974.<br />

SCHÜLLER, D. Cobra Norato como diálogo. In: BOPP, R. Mironga e outros poemas.<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1978.<br />

TOCANTINS, L. A magia das águas: o toque do sobrenatural. Jangada Brasil,<br />

n.24, ago. 2000. Disponível em: . Acesso<br />

em: 1º set. 2006.


444 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

TREVISAN, A. A orig<strong>in</strong>alidade vivida. In: BOPP, R. Mironga e outros poemas.<br />

Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1978.<br />

VIGGIANO, A. Mitavaí Arandu: herói de muito caráter. Brasília: A. Quicé, 1982.<br />

Parte IV<br />

ANDRADE, M. de. Oswald de Andrade: Pau Brasil, Sans Pareil, Paris, 1925. In:<br />

ANDRADE, O. de. Pau Brasil. 2.ed. São Paulo: Globo, 2003. (Obras completas<br />

de Oswald de Andrade).<br />

ANDRADE, O. de. A utopia antropofágica. 2.ed. São Paulo: Globo, 1995. (Obras<br />

completas de Oswald de Andrade)<br />

. Pau Brasil. 2.ed. São Paulo: Globo, 2003. (Obras completas de Oswald de<br />

Andrade).<br />

ANTELO, R. Primeiro caderno do aluno de poesia Oswald de Andrade. Prefácio de<br />

Raúl Antelo. São Paulo: Globo: Secretaria de Estado da Cultura, 1991. (Obras<br />

Completas de Oswald de Andrade).<br />

ÁVILA, A. Do barroco ao modernismo: o desenvolvimento cíclico do projeto literário<br />

brasileiro. In: ___. O modernismo. São Paulo: Perspectiva, 1975.<br />

. O lúdico e as projeções do Barroco. São Paulo: Perspectiva, 1971.<br />

BOAVENTURA, M. E. A vanguarda antropofágica. São Paulo: Ática, 1985.<br />

BOSI, A. Dialética da colonização. São Paulo: Cia. das Letras, 1992.<br />

. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 2004.<br />

CAMPOS, H. de. Poética s<strong>in</strong>crônica. In: . A arte no horizonte do provável.<br />

São Paulo: Perspectiva, 1977.<br />

. Da razão antropofágica: diálogo e diferença na cultura brasileira. Boletim<br />

bibliográfi co da Biblioteca Mário de Andrade, São Paulo, 1983.<br />

. O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira: o caso Gregório<br />

de Mattos. Salvador: FCJA, 1989.<br />

. Uma poética da radicalidade. In: ANDRADE, O. de. Pau-Brasil. 2.ed.<br />

São Paulo: Globo, 2003. (Obras completas de Oswald de Andrade).<br />

CANDIDO, A. Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos. 8.ed.<br />

Belo Horizonte; Rio de Janeiro: Itatiaia 1997. v.I.<br />

CHAMIE, M. Cam<strong>in</strong>hos da Carta: uma leitura antropofágica da carta de Pero Vaz<br />

de Cam<strong>in</strong>ha. Ribeirão Preto: Funpec, 2002.<br />

CHOCIAY, R. Os metros do Boca: teoria do verso em Gregório de Matos. São Paulo:<br />

Editora Unesp, 1993.<br />

CORTESÃO, J. Carta de Pero Vaz de Cam<strong>in</strong>ha a El-Rei D. Manuel sobre o Achamento<br />

do Brasil. Texto <strong>in</strong>tegral. São Paulo: Martim Claret, 2003.<br />

FALCOSKI, M. de L. G. Gregório de Matos e a poesia sacro-moral de Quevedo.<br />

São José do Rio Preto, 1983, 219f. Dissertação (Mestrado em Literatura Comparada<br />

– Brasileira e Espanhola) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de<br />

Mesquita Filho”.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 445<br />

FEITOSA, S. B. A rearticulação da L<strong>in</strong>guagem na Poesia Satírica de Gregório de<br />

Matos. São Paulo, 1991, 126f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica)<br />

– Pontifícia Universidade Católica.<br />

. Da representação à imagem: a composição do signo em Oswald de Andrade.<br />

São José do Rio Preto, 1999, 218f. Tese (Doutorado em Literatura Brasileira) –<br />

Universidade Estadual “Júlio de Mesquita Filho”.<br />

GALVÃO, W. Gatos de outro saco: ensaios críticos. São Paulo: Brasiliense, 1981.<br />

GOMES, J. C. T. Gregório de Matos, o boca de brasa. Um estudo de plágio e de<br />

criação <strong>in</strong>tertextual. Petrópolis – Rio de Janeiro: Vozes, 1985.<br />

HELENA, L. A contra-ideologia da seriedade: antropofagia e cultura brasileira.<br />

In: RODRIGUES, S. C. (Org.) Sobre a paródia. Tempo Brasileiro, n.62. Rio de<br />

Janeiro: Tempo Brasileiro, jul.-set., 1980.<br />

HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia. Rio de Janeiro: Edições 70, 1989.<br />

LUCAS, F. Do barroco ao moderno: vozes da literatura brasileira. São Paulo: Ática,<br />

1989.<br />

MATOS, G. de. Poemas escolhidos. Seleção, <strong>in</strong>trodução e notas de José Miguel<br />

Wisnik. São Paulo: Cultrix, 1976.<br />

NUNES, B. Antropofagia ao alcance de todos. In: ANDRADE, O. de. A utopia<br />

antropofágica. 2.ed. São Paulo: Globo, 1995. (Obras completas de Oswald de<br />

Andrade).<br />

OLIVEIRA, V. L. Poesia, mito e história no Modernismo brasileiro. São Paulo: Editora<br />

Unesp, Blumenau: Furb, 2002.<br />

PAZ, O. Signos em rotação. São Paulo: Perspectiva, 1972.<br />

PRADO, P. Poesia Pau Brasil. In: ANDRADE, O. de. Pau Brasil. 2.ed. São Paulo:<br />

Globo, 2003. (Obras completas de Oswald de Andrade).<br />

SANT’ANNA, A. R. Paródia, paráfrase & cia. São Paulo: Ática, 1991.<br />

SARDUY, S. O barroco e o neobarroco. In: MORENO, C. F. (Coord.) América<br />

Lat<strong>in</strong>a em sua Literatura. São Paulo: Perspectiva, 1979.<br />

WISNIK, J. M. Esboço biográfi co. In: MATOS, G. de. Poemas escolhidos. Seleção,<br />

<strong>in</strong>trodução e notas de José Miguel Wisnik. São Paulo: Cultrix, 1976.<br />

Parte V<br />

ANGULO, R. A. C. Roteiro de Maíra. São José do Rio Preto, 1988, 216f. Dissertação<br />

(Mestrado em Literatura Brasileira) – Instituto de Biociências, Letras e<br />

Ciências Exatas, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.<br />

ÁVILA, H. M. E o verbo se fez carne: uma <strong>in</strong>trodução à teoria do realismo crítico e<br />

sua aplicação à leitura do romance Quarup de Antonio Callado. Rio de Janeiro,<br />

1983, 400f. Dissertação (Mestrado em teoria Literária) – Universidade Federal<br />

do Rio de Janeiro.


446 LUZIA APARECIDA OLIVA DOS SANTOS<br />

BASTOS, R. J. de M. Ritual, história e política no Alto X<strong>in</strong>gu: observações a partir<br />

dos kamayurá e do estudo da festa da jaguatirica (Jawari). In: FRANCHET-<br />

TO, B., HECKENBERGER, M. (Org.) Os povos do Alto X<strong>in</strong>gu: história e<br />

cultura. Rio de janeiro: Editora UFRJ, 2001.<br />

BOSI, A. Morte, onde está tua vitória? In: RIBEIRO, D. Maíra: um romance dos<br />

índios e da Amazônia. Ilustrações Poty. 14.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.<br />

(Fortuna crítica).<br />

CALLADO, A. Quarup. 12.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.<br />

CALOBREZI, E. T. Morte e alteridade em Estas estórias. São Paulo: Edusp, 2001.<br />

(Ensaios de Cultura).<br />

CAMPOS, H. de. A l<strong>in</strong>guagem do Iauaretê. In: . Metal<strong>in</strong>guagem & outras<br />

metas. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.<br />

CANDIDO, A. Mundos cruzados. In: RIBEIRO, D. Maíra: um romance dos<br />

índios e da Amazônia. Ilustrações Poty. 14.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.<br />

(Fortuna crítica).<br />

CARVALHO, S. M. S. Jurupari: estudos de mitologia brasileira. São Paulo: Ática,<br />

1979.<br />

CASTRO, M. W. de. Um livro-testemunho. In: RIBEIRO, D. Maíra: um romance<br />

dos índios e da Amazônia. Ilustrações Poty. 14.ed. Rio de Janeiro: Record,<br />

2001. (Fortuna crítica).<br />

COELHO, H. R. Exumação da memória. 1989, São Paulo, 212f. Tese (Doutorado<br />

em L<strong>in</strong>guística e Línguas Orientais, área de Teoria Literária e Literatura Comparada)<br />

– Faculdade de Filosofi a, Letras e Ciências Humanas, Universidade de<br />

São Paulo.<br />

. Maíra: tempo e ritos. In: RIBEIRO, D. Maíra: um romance dos índios e<br />

da Amazônia. Ilustrações Poty. 14.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. (Fortuna<br />

crítica).<br />

DIAS, G. Poesia <strong>in</strong>dianista: obra <strong>in</strong>dianista completa: poesia e dicionário da língua<br />

tupi. Introdução, organização e fi xação de texto de Márcia Lígia Guid<strong>in</strong>. 2.ed.<br />

São Paulo: Mart<strong>in</strong>s Fontes, 2002. (Coleção Poetas do Brasil).<br />

FANTINI, M. Guimarães Rosa: fronteiras, margens, passagens. São Paulo: Editora<br />

Senac, 2003.<br />

FINAZZI- AGRÒ, E. Um lugar do tamanho do mundo: tempos e espaços da fi cção<br />

em João Guimarães Rosa. Belo Horizonte; Editora UFMG, 2001.<br />

GALVÃO, W. N. Mitológica Rosiana. São Paulo: Ática,1978.<br />

. Gatos de outro saco: ensaios críticos. São Paulo: Brasiliense, 1981.<br />

GULLAR, F. Quarup ou ensaio de deseducação para brasileiro virar gente. Revista<br />

Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n.15, p.251-8, 1968.<br />

JABLOSNKI, J. Padre Nando: um quarup na obra Quarup. 2005, 183f. Dissertação<br />

(Mestrado em Letras – L<strong>in</strong>guagem e Sociedade) – Universidade Estadual<br />

do Oeste do Paraná.<br />

JUNQUEIRA, C. Maíra. In: RIBEIRO, D. Maíra: um romance dos índios e da<br />

Amazônia. Ilustrações Poty. 14.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001. Fortuna crítica.


O PERCURSO DA INDIANIDADE NA LITERATURA BRASILEIRA 447<br />

LUCAS, F. O caráter social da literatura brasileira. São Paulo: Quíron, 1976.<br />

MACHADO, I. A. A cenarização da palavra no texto fantástico de Guimarães<br />

Rosa. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL GUIMARÃES ROSA. Veredas<br />

de Rosa. Belo Horizonte: PUC M<strong>in</strong>as, Cespuc, 2000.<br />

MARIA, L. de. O triunfo da vida. In: RIBEIRO, D. Maíra: um romance dos<br />

índios e da Amazônia. Ilustrações Poty. 14.ed. Rio de Janeiro: Record, 2001.<br />

(Fortuna crítica).<br />

MORAES, L. C. Quando a pátria viaja: uma leitura dos romances de Antonio<br />

Callado. Havana: Ediciones Casa de las Américas, 1983.<br />

PERINI, R. A fala do Iauaretê. A oralidade na escrita de Guimarães Rosa. Espéculo.<br />

Revista de estudios literarios. Universidad Complutense de Madrid, 2005.<br />

Disponível em: . Acesso em:<br />

28 maio 2006.<br />

RAMOS, M. L. As escrituras da morte. In: RIBEIRO, D. Maíra: um romance<br />

dos índios e da Amazônia. Ilustrações Poty. 14.ed. Rio de Janeiro: Record,<br />

2001. (Fortuna crítica).<br />

RIBEIRO, D. Os índios e a civilização: a <strong>in</strong>tegração das populações <strong>in</strong>dígenas no<br />

Brasil moderno. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.<br />

. Maíra: um romance dos índios e da Amazônia. Ilustrações Poty. 14.ed. Rio<br />

de Janeiro: Record, 2001. Edição especial comemorativa de v<strong>in</strong>te anos da obra.<br />

ROSA, J. G. Estas estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.<br />

SPIELMANN, E. O antropólogo como escritor. In: RIBEIRO, D. Maíra: um romance<br />

dos índios e da Amazônia. Ilustrações Poty. 14.ed. Rio de Janeiro: Record,<br />

2001. (Fortuna crítica).<br />

SHOLLES, R.; KELLOGG, R. A natureza da narrativa. São Paulo: McGraw-<br />

Hill do Brasil, 1977.<br />

VILLAS-BÔAS, C. O. X<strong>in</strong>gu: os contos de Tamo<strong>in</strong>. São Paulo: Kuarup, 1984.


SOBRE O LIVRO<br />

Formato: 16 x 23 cm<br />

Mancha: 27,5 x 49,0 paicas<br />

Tipologia: Horley Old Style 11/15<br />

1ª edição: 2009<br />

EQUIPE DE REALIZAÇÃO<br />

Coordenação Geral<br />

Marcos Keith Takahashi

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!