Há barragens em construção ao longo de todo o Mekong. O Sudeste Asiático precisa de energia eléctrica, mas também de peixe e arroz que um rio não represado proporciona.

Pumee Boontom Boontom vive no Norte da Tailândia, mas sintoniza a televisão no boletim meteorológico chinês. As grandes tempestades na região meridional da China implicam a descarga de grandes volumes de água pelas barragens chinesas a montante e, consequentemente, probabilidades elevadas de inundações na sua aldeia. Em teoria, o Estado chinês deveria avisar os países a jusante. A experiência de Pumee diz-lhe que os avisos costumam chegar tarde ou nem sequer chegam.
“Antes das barragens, as águas subiam e desciam gradualmente, acompanhando as estações”, afirma. “Agora, as águas sobem e descem drasticamente e nós não sabemos quando a situação vai mudar. Só se vigiarmos as tempestades.”

Sustento ameaçado - A sobrevivência de sessenta milhões de pessoas depende do peixe capturado no Mekong e do arroz cultivado no seu delta. No entanto, o rio está a mudar. A China construiu sete grandes barragens nas duas últimas décadas e há mais 21 em construção ou em projecto. A jusante, prevê-se a construção de onze novas barragens no curso do rio no Laos e no Camboja. Estes planos vão confrontar as necessidades de electricidade da região com a sua necessidade de alimento e o modo de vida dos pescadores e agricultores. Gráfico Ryan Morris. Fontes: Centro Worldfish; International Rivers; Comissão do Rio Mekong; Instituto de Botânica Kunming, Academia Chinesa das Ciências.

Pumee é o chefe da aldeia de Ban Pak Ing, um povoado disperso de casas construídas com blocos de cimento e arruamentos sem asfalto que se ergue da margem ocidental do Mekong até um bem cuidado templo budista. Há 20 anos, tal como muitos dos seus vizinhos, Pumee pescava para sobreviver. No entanto, depois de a China construir sete barragens a montante, as escassas centenas de moradores de Ban Pak Ing sentiram na pele a mudança do rio. As oscilações bruscas do nível das águas provocam interferências na migração e desova dos peixes. Embora a aldeia tenha criado locais de desova protegidos, deixou de existir peixe em quantidade suficiente para todos.

Na China, estão em construção mais cinco barragens. A jusante, no Laos e no Camboja, onze grandes barragens (a maior das quais no curso principal do baixo Mekong) foram projectadas ou já estão em construção.

Nos últimos anos, Pumee e muitas outras pessoas venderam as suas embarcações, trocando a pesca pelo cultivo de milho, tabaco e feijões. Trata-se de um modo de vida arriscado e no qual não são especialistas. Além disso, há agora desafios acrescidos devido à frequência das cheias. Em 2008, algumas casas ficaram inundadas até ao segundo andar, tal como o templo.
Ban Pak Ing pode ser uma visão do futuro. Na China, estão em construção mais cinco barragens. A jusante, no Laos e no Camboja, onze grandes barragens (a maior das quais no curso principal do baixo Mekong) foram projectadas ou já estão em construção. Perturbando a migração e a desova dos peixes, as novas barragens ameaçarão a disponibilidade de alimentos de um número estimado de sessenta milhões de pessoas. A energia eléctrica gerada pelas barragens do baixo Mekong destina-se em grande parte a centros urbanos em crescimento explosivo na Tailândia e no Vietname. O activista e antigo senador tailandês Kraisak Choonhavan classifica as barragens do baixo Mekong como uma “catástrofe de proporções épicas”.
Uma das barragens, com construção prevista para o Laos, localiza-se a apenas 60 quilómetros a jusante de Ban Pak Ing. Construí-la significará encurralar a aldeia entre as cheias provenientes do Norte e uma albufeira em crescimento a sul. Pumee mostra-se preocupado com a próxima geração. “Experimente fechar os olhos e imaginar”, afirma. “Imagine o que nos irá acontecer.” Bate as palmas das mãos, uma contra a outra.  

China - Com 292 metros de altura, a barragem de Xiaowan (a sexta mais alta do mundo) fornece electricidade sobretudo às cidades e unidades industriais em crescimento explosivo da costa meridional da China. Finalizada em 2010, a barragem forçou a transferência de mais de 38 mil pessoas.

O Mekong nasce no planalto do Tibete e percorre cerca de quatro mil e duzentos quilómetros, atravessando a China, Myanmar, a Tailândia, o Laos, o Camboja e o Vietname, antes de desaguar no mar da China Meridional. É o rio mais extenso do Sudeste Asiático e o mais rico pesqueiro interior do planeta. Os cambojanos e os laosianos capturam mais peixe de água doce do que todas as outras nações da Terra: em muitos lugares ribeirinhos, peixe é sinónimo de alimento. O peixe das mais de quinhentas espécies conhecidas no Mekong tem alimentado milhões de pessoas durante secas, dilúvios e, até, durante o genocida regime cambojano de Pol Pot.

Actualmente, o Sudeste Asiático vive relativamente em paz e a grande maioria das suas economias fervilha de actividade. No entanto, só cerca de um terço dos cambojanos e pouco mais de dois terços dos laosianos têm acesso à electricidade.

E contudo os estreitos desfiladeiros e cataratas tonitruantes do Mekong há muito que atraem os construtores de barragens. Na década de 1960, os Estados Unidos propuseram a construção de centrais hidroeléctricas no curso inferior do Mekong, na esperança de desenvolver a economia da região e de travar o avanço do comunismo no Vietname. Os planos desvaneceram-se, a região mergulhou na guerra e, na década de 1990, foi a China e não o Sudeste Asiático que ergueu barragens no curso principal do rio.
Actualmente, o Sudeste Asiático vive relativamente em paz e a grande maioria das suas economias fervilha de actividade. No entanto, só cerca de um terço dos cambojanos e pouco mais de dois terços dos laosianos têm acesso à electricidade e, frequentemente, essa energia é muito dispendiosa. O crescimento económico e demográfico criará pressões acrescidas sobre a oferta de electricidade: segundo um estudo realizado em 2013 pela Agência Internacional da Energia, prevê-se que a procura de electricidade da região venha a aumentar 80% ao longo dos próximos 20 anos. Parece evidente que a região precisa de mais energia e, se houver vontade de evitar os piores efeitos do aquecimento global, o planeta precisa que essa energia gere as menores quantidades possíveis de carbono. O potencial hidroeléctrico do Mekong afigura-se cada vez mais tentador.

 


 

China - As novas barragens inundaram cidades, campos agrícolas e estradas. Junto da albufeira criada pela barragem de Gongguoqiao, um rebanho é conduzido às pastagens numa nova estrada. 

 A construção de barragens no baixo Mekong é nominalmente supervisionada pela Comissão do Rio Mekong (CRM). Financiada por organizações internacionais do desenvolvimento e pelos seus quatro Estados-membros (Vietname, Camboja, Tailândia e Laos), a comissão guia-se não por um tratado juridicamente vinculativo mas por um interesse partilhado no rio e na paz regional.
A China não é membro da comissão e não está obrigada a consultar os seus vizinhos a jusante sobre as actividades que desenvolve no curso superior do Mekong.

A barragem de Xayaburi terá 32 metros de altura e mais de oitocentos metros de comprimento uma vez terminada, talvez ainda este ano [2015].

Recentemente, as onze barragens com construção proposta para o curso principal do rio no Laos e no Camboja minaram o fraco poder da comissão. Em 2010, um estudo de impacte ambiental patrocinado pela CRM solicitou uma moratória de dez anos que impedisse a construção de barragens no curso principal do rio, invocando os efeitos potencialmente devastadores sobre a disponibilidade de alimentos a nível regional e a probabilidade de “danos ambientais irreversíveis”. Mas o Laos, um país pobre e há muito isolado que tenta agora atrair o investimento estrangeiro, pretende transformar-se na “bateria do Sudeste Asiático” vendendo energia hidroeléctrica à Tailândia e a outros vizinhos e não se deixou dissuadir. Em finais de 2012, após vários anos de desmentidos, funcionários do Laos reconheceram que estava em marcha a construção da barragem de Xayaburi, financiada pela Tailândia, num braço distante do Mekong no Norte do Laos.
A barragem de Xayaburi terá 32 metros de altura e mais de oitocentos metros de comprimento uma vez terminada, talvez ainda este ano [2015]. Quando visitei o local em 2013, já estavam abertas minas nas margens do rio para abastecer de areia e cascalho a construção da barragem e de estradas. No local propriamente dito, gruas pairavam sobre o rio e grupos de trabalhadores com capacete utilizavam explosivos para alisar as margens íngremes do rio, transformando-as em socalcos suaves.
Numa aldeia do outro lado do rio, os moradores lamentavam os três anos de convivência com os rebentamentos. Preparavam a mudança para uma aldeia nova a montante e alguns mostravam--se optimistas. Ansiavam poder instalar-se em casas novas e fugir à sombra cada vez mais longa da barragem. Muitos esperavam continuar a pescar.

Vietname - Num mercado flutuante do delta do Mekong, vende-se melancia. 

 Até 2012 existiu outra aldeia imediatamente a jusante do local da barragem. Em 2013, os seus moradores estavam a fixar-se em casas novas, construídas com blocos de cimento e madeira, longe da garganta do rio. Nesta aldeia, havia pouco optimismo. Segundo os moradores, o dinheiro e as terras prometidos pela empresa da barragem não eram adequados e demoravam a chegar. Muitos estavam a experimentar a realidade pouco conhecida da economia de mercado. “Na antiga aldeia, não ganhávamos muito dinheiro, mas podíamos comer o arroz que cultivávamos”, contou uma jovem mãe de dois filhos. “Aqui conseguimos ganhar dinheiro todos os dias, mas gastamos diariamente mais do que ganhamos.”

O coração dos pesqueiros do Mekong localiza-se no Camboja, onde um grande lago chamado Tonle Sap se encontra unido ao curso principal do Mekong, como o pulmão à traqueia.

Embora a barragem de Xayaburi perturbe as comunidades que vivem em redor, o seu efeito mais grave talvez seja o exemplo que veio criar. Ao ignorar as recomendações do estudo da CRM, levando por diante a construção da central de Xayaburi, o Laos abriu caminho à cascata de barragens propostas, algumas das quais com ameaças muito mais temíveis para o Mekong.
O coração dos pesqueiros do Mekong localiza-se no Camboja, onde um grande lago chamado Tonle Sap se encontra unido ao curso principal do Mekong, como o pulmão à traqueia. O Tonle Sap alarga-se durante a estação húmida e encolhe na época seca; no período de maior expansão, tem uma tal vastidão que, visto a partir do centro, parece tão imenso como o oceano.
As águas lamacentas e as correntes oscilantes do Tonle Sap formam uma unidade de piscicultura natural, alimentando cabozes transparentes do tamanho de um dedo, siluros com 290 quilogramas e centenas de espécies de dimensão intermédia. Estas reservas alimentam uma nação de “aldeias flutuantes”, aglomerados de barcos-casa ancorados ao longo das margens. Apesar da poluição e da pressão das pescarias, o peixe é tão abundante no Tonle Sap que, durante o Inverno, quando o nível das águas está baixo, os pescadores e as mulheres conseguem recolher as suas capturas em grandes cestos de bambu cheios até cima.

Vietname - Numa barcaça fluvial carregada de arroz desloca-se lentamente através de um dos canais que cruzam o delta. As barragens vão reter os sedimentos férteis a montante, ameaçando as colheitas. 

 As mais de cem espécies de peixes que desovam no Tonle Sap realizam longas migrações rio acima, algumas das quais alcançando regiões tão a norte como o Laos. A barragem de Xayaburi, a cerca de novecentos quilómetros a montante, talvez esteja demasiado longe para os afectar directamente, mas há outros projectos mais próximos. A norte da fronteira do Camboja com o Laos, outra barragem no curso principal denominada Don Sahong será construída em breve. Embora vá encerrar apenas um dos muitos canais do rio, poderá interferir com a migração dos peixes.

Sabe-se que é uma rota fundamental de migração para dezenas de espécies de peixes, incluindo muitas que servem de sustento à população local. Uma nova barragem chamada cortará a ligação entre o Sesan e o Mekong.

Um perigo ainda maior para as pescarias espreita no próprio Norte do Camboja, num afluente do Mekong chamado Tonle San ou rio Sesan. O Sesan nasce no Vietname e conflui com o Mekong cerca de cinquenta quilómetros a jusante da barragem Don Sahong. Sabe-se que é uma rota fundamental de migração para dezenas de espécies de peixes, incluindo muitas que servem de sustento à população local. Uma nova barragem chamada Baixo Sesan 2 cortará a ligação entre o Sesan e o Mekong.
A aldeia de Vern Houy situa-se mesmo a montante do local da barragem e é acessível apenas por barco. A maioria dos seus moradores cresceu aqui. Quando perguntei a um grupo de mulheres o que significaria a barragem para elas, responderam-me: “Vamos morrer.” Pedi ao meu intérprete, um jovem repórter da capital, Phnom Penh, se as suas palavras tinham um significado literal. “É um medo real”, disse ele. “Elas acham mesmo que vão morrer.” Esta vida era a única que conheciam: não conseguem imaginar outra. As cheias da albufeira inundarão a aldeia com tanta frequência que a deixarão inabitável.

Laos - Perto do local onde nascerá a barragem de Don Sahong, o filho de um pescador dorme a sesta, esperando que os peixes sejam arrastados para trás, caindo na armadilha. 

 Na casa do chefe da aldeia, numa sala construída sobre estacas com esteiras de capim no chão, um grupo de homens encontrava-se reunido. 
O subchefe da aldeia, In Pong, contou que, com a ajuda de um grupo regional de representação, o 3S Rivers Protection Network, os habitantes de Vern Houy juntaram-se às aldeias vizinhas para protestar contra a barragem, escrevendo cartas ao parlamento cambojano e viajando até à capital para defender o seu caso. Até agora, porém, não havia resultados. “Eu não me mudaria para outro lugar, sobretudo para a cidade”, afirmou In Pong. “Não faço ideia do que hei-de fazer.”
Loek Soleang, um professor local e um dos poucos moradores que não nasceu na aldeia, contrariou este pessimismo. “Não estou preocupado”, disse. “Podemos usar a electricidade. Precisamos de desenvolvimento. Se aqui houver inundações, basta mudarmo-nos para terras mais altas.”

Em O Svay, como em grande parte do Sudeste Asiático rural, só as crianças mais afortunadas conseguem terminar os seus trabalhos de casa à luz do candeeiro. A vida sem electricidade não é fácil nem romântica.

Os homens que o rodeavam não discutiram: olharam silenciosos para o seu regaço. In Pong puxou uma fumaça do cigarro e deitou fora o fumo pela janela aberta, com ar contemplativo.
Loek Soleang tinha razão de certa forma: os habitantes da bacia do Mekong precisam de mais electricidade. Em Vern Houy, não existe. Na aldeia de O Svay, a jusante do local da barragem de Don Sahong, há geradores a gasóleo poluentes e barulhentos. Só as famílias mais ricas têm dinheiro para comprá-los. Em O Svay, como em grande parte do Sudeste Asiático rural, só as crianças mais afortunadas conseguem terminar os seus trabalhos de casa à luz do candeeiro. A vida sem electricidade não é fácil nem romântica.
No discurso dos funcionários públicos do Camboja e do Laos, as barragens podem beneficiar a população, tornando a electricidade mais barata e mais disponível. Embora o Camboja se oponha à construção de barragens no curso superior do rio, a montante, os funcionários públicos do Laos elogiam a central do Baixo Sesan 2 e outros projectos hidroeléctricos implantados em afluentes. “Os modos de vida possibilitados pela energia são melhores do que os proporcionados pelas pescarias”, resume Touch Seang Tana, presidente da comissão para a conservação do golfinho do Mekong e o desenvolvimento económico. “As barragens são uma maneira de as pessoas transporem o limiar da subsistência.”

 


 

Tailândia - É a procura urgente de electricidade por parte da Tailândia que incentiva a construção de barragens no curso inferior do Mekong, no Laos e no Camboja. O CentralWorld em Banguecoque reúne quinhentas lojas, um hotel e uma pista de patinagem no gelo.

As barragens projectadas para o Camboja e o Laos gerariam electricidade muito superior à exigida pela procura interna dos países, mas não tornariam a electricidade universalmente disponível em ambos. Noventa por cento da electricidade gerada pelas barragens a construir no curso principal seria vendida à Tailândia e ao Vietname e a maior parte do dinheiro beneficiaria as empresas construtoras. Segundo as previsões do estudo de 2010 da CRM, os prejuízos causados pelos projectos às pescarias agravariam efectivamente a pobreza.
Segundo alguns funcionários públicos, a aquicultura e a orizicultura podem compensar possíveis decréscimos da oferta de alimentos, mas os peritos em pescarias discordam com veemência, afirmando que as repercussões das barragens construídas no curso principal do rio sobre as pescarias do Mekong seriam cumulativas, inexoráveis e devastadoras.

Muitos indivíduos que dependem da pesca e da aquicultura de pequena dimensão serão provavelmente catapultados para a economia de mercado sem o capital nem os conhecimentos necessários para sobreviverem nela.

Noutros rios da região, as capturas de peixe diminuíram 30 a 90% depois da construção das barragens. E embora a prática da aquicultura já se encontre generalizada ao longo do rio Mekong, em muitos barcos-casa há um alçapão que dá directamente para uma gaiola aquática de piscicultura, cujos peixes são alimentados com peixes selvagens de menor dimensão, retirados do rio. A substituição desses peixes utilizados como alimento por ração de fábrica tornar-se-ia proibitivamente dispendiosa para a maioria dos produtores. Muitos indivíduos que dependem da pesca e da aquicultura de pequena dimensão serão provavelmente catapultados para a economia de mercado sem o capital nem os conhecimentos necessários para sobreviverem nela.

Laos - Em Ban Khok Yai, junto do Mekong, três gerações partilham o jantar à luz da candeia. Cerca de 30% da população do Laos não dispõe de electricidade. A aldeia será inundada com a conclusão da construção da vizinha barragem de Xayaburi. 

O Mekong não é a única fonte disponível na região para a produção de electricidade com baixas emissões de carbono. Prevê-se que as onze centrais hidroeléctricas propostas para o curso principal do baixo Mekong satisfaçam aproximadamente 6 a 8% da procura de electricidade do Sudeste Asiático em 2025. Alguns estudos certificam que as medidas de eficiência energética e os investimentos na energia solar e noutras tecnologias energéticas mais limpas poderiam proporcionar volumes idênticos (ou superiores) de electricidade a custo inferior. No entanto, no Sudeste Asiático essas alternativas ainda estão na sua infância. Para os governos do Camboja e do Laos, a energia hidroeléctrica é mais conhecida e mais acessível, além de mais valiosa como bem de exportação.
Será possível aproveitar a energia do Mekong, ao mesmo tempo que se protege a sua abundância? Em 2012, um estudo do ecologista Guy Ziv e de outros colegas defendeu a utilização dos afluentes do rio, comparando a electricidade prevista para cada uma com os danos provavelmente causados às pescarias. Identificaram diferenças enormes nos custos ecológicos dos projectos. O Baixo Sesan 2 era de longe o pior de todos: só por si, reduzirá a biomassa do peixe disponível no curso inferior do rio em mais de 9%. Pelo contrário, algumas barragens cuidadosamente posicionadas noutros lugares da bacia hidrográfica gerariam volumes importantes de electricidade com prejuízos mínimos para a oferta de alimentos.

 


 

Laos - Uma embarcação ornamentada encaminha-se para o local de construção da barragem de Xayaburi.

No entanto, esse planeamento exigiria que os países do Mekong e os seus investidores se coordenassem, e coordenação é precisamente aquilo que falta. “Para fazer o aproveitamento da água, é preciso trabalhar à escala da bacia hidrográfica”, diz Brian Richter, perito da Nature Conservancy. “Em certa medida, é preciso olhar para o Mekong como um tabuleiro de jogo, onde se pode decidir posicionar uma barragem aqui e não ali, e, ao fazê-lo, assegurar o bom funcionamento ecológico da totalidade da bacia fluvial. Tem sido extremamente difícil fazer isto no Mekong.”
Mais de mil e seiscentos quilómetros a jusante das barragens chinesas, a aparentemente interminável rede de pântanos, canais e lezírias do delta do Mekong prolonga-se até ao mar da China Meridional. Durante muito tempo, o delta foi um atoleiro em especial para as tropas vietnamitas, francesas e norte-americanas que passaram aqui décadas a fio em combate militar.

“Quantos deles sabem alguma coisa sobre as barragens?”, pergunta. “Poucos têm sequer ideia do que irá acontecer.”

Perto do centro do delta, na cidade comercial de Can Tho, o ecologista Nguyen Huu Thien acompanha-nos junto do cais e aponta para hordas de motociclos que passam, conduzidos sobretudo por jovens vietnamitas. “Quantos deles sabem alguma coisa sobre as barragens?”, pergunta. “Poucos têm sequer ideia do que irá acontecer.”
Nguyen cresceu no delta na década de 1970 e, à semelhança de muitas outras crianças, costumava nadar nos canais e nos campos inundados, capturando peixes à mão. Ao contrário dos irmãos, Nguyen conseguiu concluir estudos superiores, acabando por estudar biologia na Universidade de Wisconsin. “Aprendi a teoria em Wisconsin, mas o delta do Mekong é único”, diz. “Tive de aprender sobre ele aqui, mesmo no meio dele.”
A mistura de água salgada e doce característica do delta e os séculos de esforço para domesticá-la originaram uma complexa paisagem artificial. Em 2009, Nguyen trabalhava na recuperação de terras alagadiças quando lhe pediram que colaborasse na avaliação das barragens projectadas para o curso do rio no Laos e no Camboja. Rapidamente se apercebeu de que as barragens iriam sabotar todos os esforços desenvolvidos no delta.

No delta, Nguyen comprova os limites do engenho humano: embora os canais e lezírias tenham aumentado a produção de arroz, não têm capacidade para enfrentar o mar.

O equilíbrio entre rio e mar no delta já está a mudar. As recentes secas enfraqueceram o rio e permitiram que a água do mar se infiltrasse rio acima, causando problemas graves aos agricultores. As barragens a montante transformariam mais de metade do baixo Mekong em albufeiras, alterando o caudal do rio. Iriam reter grande parte dos sedimentos ricos em nutrientes que actualmente adubam os campos do delta e alimentam os peixes no sistema do Mekong, que se prolonga muito além do rio em si. As embarcações que pescam na produtiva pluma do rio que desagua no mar da China Meridional conseguem capturar mais de meio milhão de toneladas de peixe por ano.
No delta, Nguyen comprova os limites do engenho humano: embora os canais e lezírias tenham aumentado a produção de arroz, não têm capacidade para enfrentar o mar. “Com o clima em mutação, tudo aquilo que Deus fizer vai ser mais duradouro do que os nossos actos”, diz. “O sistema natural é sempre mais duradouro.”
Nguyen trabalha actualmente noutros estudos de impacte das barragens, mas não tem esperança de que estes produzam mais efeitos do que os anteriores. Por vezes, fala sobre as barragens com os seus irmãos mais velhos, que regressaram todos às terras da família para se dedicarem à lavoura. Eles limitam-se a encolher os ombros. “Não há nada que possamos fazer acerca disso”, afirmam. Neste momento, Nguyen tem quase o mesmo ponto de vista. “Só nos resta esperar para ver”, diz.

Camboja - Duas crianças brincam nas margens do Tonle Sap, onde as casas se erguem sobre estacas para resistir às flutuações sazonais. 

 Numa noite fria do fim de Janeiro de 2013, um grupo de várias dezenas de activistas reuniu-se perto da margem do Mekong em Ban Huay Luek, uma aldeia do Norte da Tailândia. Muitos estavam embrulhados em cobertores, mantendo-se perto de fogueiras improvisadas. Tinham concluído um percurso de 124 quilómetros ao longo do rio numa manifestação de protesto destinada a chamar a atenção da opinião pública para as barragens já projectadas a jusante. Chefiados por um grupo de monges budistas, aos quais se juntaram, revezando-se, agricultores, políticos locais e estrangeiros de mochila às costas, muitos destes manifestantes tinham passado quase duas semanas a caminhar, acampando nos pátios das escolas e nos adros dos templos. “Fizemos tudo o que é possível imaginar”, contou o organizador e professor do terceiro ciclo do ensino secundário Somkiat Khuenchiangsa. “Investigámos estas barragens, enviámos cartas, manifestámo-nos vezes sem conta.”

“Sem a vossa intervenção, eles teriam rebentado com tudo”, disse. “Por isso, agora é preciso que se ergam e usem essa força de novo.”

Nessa noite, os manifestantes escutaram os discursos dos deputados em visita. Fizeram silêncio quando Kraisak Choonhavan, o activista progressista, subiu ao palco para usar da palavra. Na Tailândia, ao contrário do que sucede nos países vizinhos, existe uma tradição de organização de nível das bases e manifestações populares. Kraisak recordou aos seus ouvintes que, anos antes, quando o governo chinês fazia explodir rápidos fluviais para abrir um troço do Mekong à navegação, manifestantes na região setentrional da Tailândia impediram a conclusão do trabalho. Alguns veteranos desse combate encontravam-se entre o público. “Sem a vossa intervenção, eles teriam rebentado com tudo”, disse. “Por isso, agora é preciso que se ergam e usem essa força de novo.”
As palavras não eram ocas: a Tailândia pode influenciar a construção das barragens no curso principal do rio. As empresas públicas de electricidade tailandesas são o mercado-alvo de grande parte da energia eléctrica que será gerada por essas barragens e o negócio exige a aprovação do governo. A oposição poderia convencer o governo a exigir reformulações de projectos. Depois da manifestação, um grupo de 37 aldeãos deu um passo em frente e interpôs uma acção judicial contra o governo. No Verão passado, um tribunal aceitou julgar o caso, mas será provavelmente demasiado tarde para travar a barragem de Xayaburi. Nos próximos meses, ela deverá estender-se de uma margem à outra, fechando pela primeira vez o curso principal do baixo Mekong.