Impérios decadentes como metáforas da Criação-Queda e o acosmismo gnóstico – Peter SLOTERDIJK

Apenas agora podemos perguntar pelas “origens” da gnose na história da religião e pelas condições psico-históricas de sua emergência. Qual, então, é o suposto anuviamento dos sentimentos de vida naquela “era do medo” da Antiguidade tardia? Por que surgiram aqueles boatos da alegre piedade cosmológica helênica que, de repente, teria se transformado em um desespero gnóstico e cristão primitivo? Como a afirmação pôde se transformar em negação, a maravilha em desprezo temeroso? Como as pessoas puderam ter a ideia de queimar o que tinham adorado? Onde devemos procurar o fulcro dessa “virada” negativista do espírito? A resposta a essas perguntas precisa ser mais de natureza ontológica do que psicológica. Apenas desde que a alma se compreende como uma entidade contraposta ao mundo – mais exatamente, como uma entidade cercada de mundo, mas que não pode ser remetida a ele – o “mundo” como superobjeto pode ser afastado como um todo. O anticosmismo gnóstico é primeiramente a consequência de uma conquista gramatical: na expressão “este mundo” do gnosticismo e do cristianismo primitivo, a novidade lógica se manifesta abertamente. “Mundo” se transforma em objeto de uma deixis universal – de repente, é possível apontar, pelo menos verbalmente, para ele com o dedo: olhe para ele, para “este” mundo. A partir de agora, o que ainda poderá surpreendê-lo? A gnose se desenvolve com o desdobramento sistemático desse efeito: ela articula uma mudança estrutural da maravilha – do filosofar para pavor, do pavor para a paródia. Ela vive de sua distância virtual do todo obscurecido, do qual não existe distância. Seu modo de ser é a autodestruição consciente diante da realidade, sua paixão é a queima dos navios terrenos, seu etos é a responsabilidade da ascensão. Seu lugar de reflexão é um estar dentro como se não estivesse dentro. O ut non paulino já pertence ao campo dessa epoché, desse distanciamento daquilo do qual ninguém pode se distanciar; possuir como se nada se possuísse; estar aqui como se estivesse longe; ter mulheres como se não tivesse nenhuma; estar neste mundo estranho como já se estivesse em casa. A gnose é uma filosofia do “como que não”.

Mas antes que o objeto total “mundo” pudesse ser distanciado e criticado, o todo precisava ser dividido em partes negáveis ou, em termos modernos, em objetos parciais ruins. O desenvolvimento da posição “hostilidade do mundo” ocorre realmente, tanto em termos da história dos afetos quanto em termos mitológicos, nestes passos; ele percorre todo o caminho desde o aspecto ruim do mundo até a ruindade do todo do mundo. Desde sempre, a vitrine em que as ruindades do mundo se expõem de forma espetacular é o poder político – na percepção da perspectiva daqueles que sofrem sua injustiça na forma de repressão e exploração. A meio caminho entre as cosmologias positivas dos gregos e romanos – nas quais as contemplações da natureza funcionavam sempre também como paradigmas de harmonia para o emprego da polis e da civitas – e a cosmologia negativa dos gnósticos transcorre um intermezzo violento de crítica ao poder. A negação do “mundo” resulta do pavor diante dos poderes do mundo. A princípio, estes podem ser identificados politicamente com exatidão – apenas depois eles são reformulados como ministros do ente, como arcontes, tiranos astrais. Mundo – este se refere primariamente aos senhores de Roma, aos imperadores antoninos, aos governadores das províncias, aos coletores de impostos, aos juristas – Pôncio Pilatos e colegas com suas prostitutas, seus oradores, seus astrólogos; mundo é a moda do consumismo antigo.

“Neste mundo”, uma imagem de Juno com Júpiter durante a fellatio decora o quarto do imperador; seus deuses são iguais a ele. Na verdade, “neste mundo”, tudo está interligado com tudo, mas o princípio do vínculo é o aspecto comum mais geral: a autocelebração dos predadores mais bem-sucedidos, a autopreservação do ruim – o poder do mal gerador de sistemas, a transformação do medo de extinção em sadismo dos senhores. A partir deste momento, “este mundo” se apresenta como um mundo totalmente invertido e privado de luz, no qual a equação de dominação e crime alcança sua mais alta evidência. Daí a importância do assassinato judicial para o reconhecimento da “essência verdadeira” deste tipo de poder. No assassinato judicial, os senhores mostram suas cartas ao mundo. É simplesmente impossível exagerar a importância dos dois grandes mitos de assassinato judicial – o socrático-platônico e o jesuânico-paulínico – para o desenvolvimento do afastamento espiritual do mundo. Assim como, no caso de Sócrates, a polis se viu no erro em relação à filosofia, a civitas romana como um todo se revelou no caso de Jesus como grandeza de injustiça. Mas em vista de um deicídio, o teor de justiça aumenta ao ponto do imperdoável. A crítica gnóstica ao mundo tem a coragem de tirar uma conclusão do crime extremo sobre a natureza do perpetrador: o perpetrador “mundo” – a coalização farisaica-romana – é totalmente de natureza demoníaca. Um mundo culpado de assassinar o Redentor se encontra, no sentido de uma “última” jurisprudência, já sob o signo da culpa máxima; de antemão, ele é considerado alienado no sentido ontológico, possuído em termos religiosos e incapaz de reconhecer sua culpa em termos cognitivos. Sua cegueira diante a oferta de luz parece demonstrada após o evento do Gólgota. Apenas por isso, o mundo se torna teologicamente dependente de charis, da graça. Quem nele reside, está tão entregue a ele que só pode ser agraciado para fora dele. Este é o sentido jurídico-salvador da redenção do mal. Redenção ocorre como reconhecimento da graça de “não mais ter que pertencer” à totalidade de injustiça irreversível do mundo.


SLOTERDIJK, Peter, Pós-Deus. Trad. de Markus A. Hediger. Petrópolis: Vozes, 2019.

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