O ‘caso Boaventura’ tem um carácter dúplice. Por um lado, coloca na agenda pública e política um tema que há muito tempo já deveria ter tido o seu espaço, pois o primeiro diagnóstico de assédio no ensino superior em Portugal faz dez anos precisamente este ano (Oliveira, 2013). No entanto, se não houver uma cuidada reflexão, o ‘caso Boaventura’ pode levar-nos a identificar o assédio no ensino superior com representações e comportamentos muito específicos e, mesmo, minoritários. É por essa razão que, em ciência, precisamos primeiro de um bom diagnóstico descritivo das situações, neste caso do ensino superior como um todo (ainda em falta em Portugal), depois é necessário tentar categorizar e chegar a modelos e, porventura, finalmente, encontrar algumas explicações para que possamos ter novas políticas públicas com base na evidência para enfrentar o problema. Políticas avulsas sem recorrer ao conhecimento e à evidência, revelam apenas incompetência.

No caso do assédio, é claramente às ciências sociais que incumbe tal trabalho. Neste texto, procuramos contribuir para uma categorização, partindo do pressuposto que o ‘caso Boaventura’ é um caso atípico na universidade portuguesa. Chamamos-lhe ‘modelo estrela’ e, ao analisar algumas das suas características, procuramos, grandemente a contrario, identificar um outro modelo, a que chamamos ‘modelo administrativista’ e que consideramos muito mais generalizado. Não se trata de uma opinião, mas antes de uma hipótese descritiva a explorar e confirmar, criando, porventura, outros modelos ou sub-modelos.

Para simplificar, neste artigo descrevemos apenas três características do ‘modelo estrela’, procurando caracterizar, a contrario, o outro modelo. Argumentamos, ainda, que estas três características são também perversidades do ‘caso Boaventura’, pois tentar ler e analisar o assédio nas universidades a partir delas, para além de ser uma falácia, poderá ainda servir os interesses dos principais assediadores. Vejamos então:

  1. Não há dois Boaventuras. Sobram os dedos das mãos para os ‘professores estrela’ nas universidades portuguesas. Podemos até dizer, porventura sem errar, que temos mais professores estrelas portugueses no estrangeiro do que em Portugal! De facto, o assédio organizacional criado pelo poder administrativista impede aqueles que têm como principal interesse o ensino e a investigação de progredirem: matamos as potenciais estrelas. A nossa Universidade detesta protagonistas porque fazem sombra aos medíocres no poder. Poderemos sempre, é verdade, explorar o ‘modelo estrela’ num nível paroquial e fazer uma caça às bruxas: essa é a primeira perversidade do ‘caso Boaventura’.
  2. A centralidade do assédio sexual pode levar a focarmo-nos nesta avenida porquanto, pelo menos em muitos casos, ela é resultante, antes de mais, de posições em lugares de poder e mesmo de estruturas consolidadas de poder destrutivo, tendo o assédio moral como ferramenta. Assim, o assédio sexual, ou outra qualquer forma de assédio (ou seja, com outras moedas de troca referidas em artigo anterior), não se perceberá se não se atentar à base do problema: a produção e reprodução de processos de poder destrutivo nas universidades com base no que aqui chamamos administrativismo. É fácil prever que a atenção ao assédio sexual de tipo pontual, dando autonomia às organizações ou criando um mecanismo nacional para o assédio sexual, possa aumentar ainda mais as possibilidades de um controlo organizacional por parte de um poder destrutivo, quando existe: essa é a segunda perversidade do ‘caso Boaventura’.
  3. A diabolização dos convívios informais ou não formatados entre professores e estudantes é outra característica do ‘caso Boaventura’. Não são, obviamente, os convívios que estão na base ou possibilitam uma explicação para o assédio. Se é verdade que a criação de sociogramas de ensino-aprendizagem autónomos do poder central das unidades orgânicas das universidades comporta riscos pela maior agência dos indivíduos, mais riscos tem o enclausuramento das universidades em modelos tipificados e obsoletos de ensino-aprendizagem, mais uma vez adequados ao administrativismo. Assim, uma atenção aos sociogramas não formatados de ensino-aprendizagem é uma terceira perversidade do ‘caso Boaventura’ que pode aumentar a autonomia e o controlo organizacional associado a um poder destrutivo.

Resumindo, o que colocamos aqui como hipótese é que o ‘caso Boaventura’ aponta-nos para um ‘modelo estrela’ relativamente minoritário em Portugal e que esconde a contrario um outro modelo muito mais generalizado: o ‘modelo administrativista’, que evoca Kafka, nas obras O Processo e O Castelo, em que a burocracia (nas suas várias formas) é o recurso para controlar o acesso de outros a instâncias de resolução de problemas e dessa forma exercer poder sobre essas pessoas.

O ‘modelo administrativista’ caracteriza-se pela tomada do poder nas universidades de lideranças narcísicas, tipicamente manipuladoras de tipo maquiavélico e, por vezes mesmo, com traços de psicopatia (a chamada ‘tríade negra da liderança’ na literatura da especialidade). Estes líderes criam cliques/gangues que chegam mesmo a dominar toda a organização tornando a estratégia da mesma coincidente com os seus interesses privatísticos. Trata-se de criar de facto um fascismo organizacional. A melhor maneira de encontrar a maior parte destes personagens é, curiosamente, a contrario do ‘modelo estrela’: procure-se nas direções das unidades orgânicas as pessoas que lá estão e que não têm perfil universitário: não têm nem dirigiram projetos, não fizeram investigação, não têm publicações de referência. O único escape deles/as foi a carreira administrativista, através da qual e pelo seu domínio abriram lugares para si próprios e chegaram ao topo da carreira e de órgãos de gestão. As listas eleitorais únicas; o esvaziamento dos órgãos colegiais; a colocação em cargos de carreiristas ou líderes narcísicos de segunda linha (marxistas críticos, feministas, etc.) que pelo narcisismo preferiram os cargos à ideologia e legitimam e são cúmplices do administrativismo assediador; a gestão distorcida da avaliação de desempenho; a parceria entre indivíduos de diferentes instituições com os mesmos interesses administrativistas em júris para lugares na carreira… É esse o caldo do assédio no ensino superior: é um sistema organizacional instalado e de forma alguma apenas o resultado de casos que se possam incluir no ‘modelo estrela’. Todos aqueles que contribuem para ocultar esta situação são cúmplices do Administrativismo e das suas consequências trágicas para as instituições e o país.

Referência: Oliveira, I. M. S. (2013) Bullying no local de trabalho: a perceção dos profissionais de uma Instituição de Ensino Superior Politécnico do norte do país. Mestrado em Gestão das Organizações, ISCAP, Instituto Politécnico do Porto.

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