Considerando o fim dos considerandos

Deixando para trás dois instrumentos e práticas ineficientes do Ministério Público e outras entidades de governo

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Duas práticas rotineiras do Ministério Público, de outras instituições de governo e do sistema de justiça podem ser aprimoradas: a motivação de atos decisórios ou normativos e as notificações para a solução extrajudicial de conflitos. Atualmente, os principais instrumentos para as finalidades em questão são os considerandos e as recomendações.

Este post argumenta que pode ser hora de se dizer adeus aos considerandos e rever profundamente a prática das recomendações. O post indica algumas alternativas, olhando para um exemplo prático e para o que há de mais avançado em outros países.

Na base do argumento está a crença nos valores da eficiência e da Parceria pelo Governo Aberto. Ou seja, na accountability pela motivação analítica e baseada em evidências dos atos de autoridade, na abertura de dados e na participação pública. Tudo favorecido com o uso de novas tecnologias.

O que são e de onde vieram

Os considerandos são frutos da tradição e não têm uma previsão normativa explícita que os defina ou imponha. (Por exemplo, não existem na Lei Complementar n. 95 de 1998, que trata dos elementos obrigatórios dos atos normativos).

Sua função é simples e não exclusiva ao MP: normalmente, correspondem a uma sequência de parágrafos contendo fundamentos de fato e legais que embasam a prática de um ato de autoridade.

No caso do MP, os considerandos acompanham geralmente uma resolução, portaria de instauração de inquérito civil — ou mesmo uma recomendação. Aparecem antes da parte dispositiva (conteúdo com o principal efeito) daqueles atos. Não é raro que os considerandos sejam a parte mais extensa do documento que comunica a norma ou o ato.

Fonte: Imprensa Nacional / Secretaria Geral da Presidência da República

Já as recomendações possuem previsão legal expressa e existem ao lado das notificações e requisições — dois outros instrumentos da atuação do MP. Para a defesa dos direitos fundamentais, o MP pode emitir “recomendações dirigidas aos órgãos e entidades mencionadas no caput deste artigo, requisitando ao destinatário sua divulgação adequada e imediata, assim como resposta por escrito” (art. 27, inciso IV, da Lei n. 8.625 de 1993).

Em 2017, seguindo os ideais de resolutividade e para fomentar a atuação extrajudicial do MP, o Conselho Nacional do Ministério Público editou Resolução exclusiva para regulamentar o uso das recomendações (Resolução n. 164).

Em realidade, a não ser pelo dever que impõe ao destinatário quanto a respondê-la — e ao MP de atuar, de acordo com a resposta –, a recomendação não é tão distinta do exercício do direito de petição, que qualquer pessoa possui. Ou, ainda, da notificação extrajudicial, também à disposição de quem queira levar um fato e uma pretensão ao conhecimento de alguém e documentar o seu recebimento, com vistas a possível providência legal em caso de silêncio ou recusa.

Para saber se são efetivos, é preciso saber quais são os objetivos

O objetivo direto dos considerandos é evidente: documentar a motivação do exercício de autoridade, enunciando os fatos e os fundamentos legais que embasam um ato ou norma. Já o das recomendações, como sua definição legal indica, é buscar uma mudança de comportamento por parte do recomendado (em regra, o Executivo), assim evitando a necessidade de se ajuizar uma ação.

Além dos objetivos diretos, há objetivos indiretos que tanto as recomendações, considerandos, quanto qualquer outro ato do MP devem alcançar. Eles decorrem de valores fundamentais da governança contemporânea — como os valores de um governo aberto e baseado em evidências. Todos os objetivos, diretos e indiretos, devem compor a medida do quanto os considerandos e recomendações são efetivos.

Um dos objetivos indiretos, transversal a todo tipo de comunicação, é o de continuamente tornar mensagens mais claras, diretas e simples. O rococó jurídico, que afasta o cidadão, precisa ser deixado no passado. Se a linguagem é obtusa, ela não se presta a tornar o governo responsivo nem a convidar/permitir a participação pública.

Outros objetivos relevantes (ainda que indiretamente) e de certa forma óbvios para os considerandos e recomendações são (a) evitar intromissões ilegítimas em escolhas de gestão e planejamento do Executivo; e (b) não provocar um resultado pior do que o problema que se busca solucionar com a recomendação.

Recomendações e considerandos precisam ser abandonados

Quando comparados com alternativas existentes, tanto a prática dos considerandos quanto das recomendações merecem reforma — ou total abandono.

Os considerandos não alcançam adequadamente o objetivo de fundamentar os atos que acompanham. Sua leitura é truncada, cansam o leitor. Além disso, não há separação orgânica e clara entre razões de fato e legais. Por vezes, os considerandos não aparecem em proporção adequada, muitas vezes retirando ênfase do principal, que é o conteúdo dispositivo do ato.

Embora sua estrutura e leitura deem ideia de algo longo (e cansativo), os considerandos podem incentivar uma excessiva simplicidade (e, portanto, levar a um papel meramente formal) quanto à tarefa de fundamentar o ato. Não trazem de forma funcional o detalhamento analítico que pode ser necessário para a fundamentação de uma decisão com impactos significativos.

Já a recomendação possui um vício de origem: seu nome dá ideia errada quanto ao real conceito e natureza jurídica do instrumento. De todos os significados da palavra “recomendar”, predominam aqueles que têm o sentido de conselho — no máximo, de solicitação. E a Resolução 164 contribui para essa confusão— ao indicar que a recomendação “não tem caráter coercitivo” (art. 1º, parágrafo único).

A confusão é ruim por mais de uma razão. Em primeiro lugar, a falsa sensação de conselho pode, assim como na prática dos considerandos, ser um estímulo para o embasamento insuficiente — de fato e legal — para exigir uma conduta do recomendado. Em segundo, pode também fazer crer e estimular a ausência de consequência em caso de inobservância da recomendação. (O recomendado pode se achar no direito de dizer, “obrigado pelo conselho, mas não”).

E se a recomendação também pode passar para o recomendante a ideia de um conselho, o efeito é pior. Quem dá conselho ou palpite pode não sentir o peso adequado do dever de embasar a recomendação. O resultado pode ser uma indevida invasão no livre e legítimo espaço do Executivo (se destinatário da recomendação) para fazer escolhas de gestão.

É que para embasar a cobrança de uma ação ou omissão do Executivo pode faltar a rigorosa e comprovada demonstração de violação do dever legal que a torne obrigatória. Em casos de políticas públicas, quando a violação é do dever de eficiência, a comprovação em regra não é trivial.

Como melhor atingir os objetivos

Há melhores formas de se alcançar os objetivos que devem orientar o uso dos considerandos e recomendações. Sempre preservando o papel adequado de cada Instituição e prestigiando os valores de um governo (e controle) aberto e baseado em evidências.

Com relação aos considerandos, um bom exemplo para emular é o do Governo do Reino Unido e das agências reguladoras dos Estados Unidos. (A propósito, a maior parte das agências reguladoras do governo federal brasileiro aboliram os considerandos de suas normas).

No Reino Unido, as normas editadas pelos Departamento dos Governo são embasadas por Memorandos Explanatórios. De modo semelhante, as regras editadas pelas agências federais norte-americanas são precedidas de relatórios técnicos e, quando significantes, de relatórios de avaliação de impacto regulatório. Além disso, os relatórios costumam ser publicados em versões preliminares, permitindo ampla participação pública antes da edição da norma.

Trecho de um Memorando Explanatório. Fonte: legislation.gov.uk

É possível fazer isso também aqui no Brasil. Normas e atos de autoridades sem maiores impactos podem ter a autoridade legal que as autoriza indicada na ementa — isto é, sem a necessidade de considerandos para isso.

Para os atos de maior impacto e importância, as autoridades poderiam se valer da mesma técnica dos EUA e Reino Unido: fazer referência a relatórios técnicos, publicados em versão preliminar e definitiva, com a chance de as partes afetadas apresentarem suas críticas, comentários e sugestões.

A proposta vai além de permitir participação pública (um dos valores da parceria pelo governo aberto) e maior eficiência na comunicação, livrando as normas e atos da repetição enfadonha de parágrafos de considerandos.

Adotar o uso de relatórios técnicos permite às autoridades embasarem suas conclusões, de forma estruturada e detalhada, indicando evidências, compartilhando dados que permitam a verificação da robustez das escolhas e permitindo o monitoramento de seus efeitos.

Não é ordem, mas também não é conselho

Quanto às recomendações: talvez não devesse ao Ministério Público, no contexto de um inquérito civil se ocupar de dar conselhos ou, ainda menos, de cobranças de providências sem demonstrar que sua adoção é obrigatória. (Como diz mesmo o ditado popular? “se conselho fosse bom…”).

Se há um dever que torna mandatória certa conduta do Executivo, é também obrigatória a atuação do MP, em juízo se necessário, para vê-la implementada pelo governo. Se é assim, tal medida não deveria ser objeto de um conselho, ou sugestão, mas de uma exigência.

Não é por outra razão, que a Resolução n. 164 do CNMP exige que “[n]a hipótese de desatendimento à recomendação, de falta de resposta ou de resposta considerada inconsistente, o órgão do Ministério Público adotará as medidas cabíveis à obtenção do resultado pretendido com a expedição da recomendação” (art. 11). Leia-se: irá ao Judiciário, com pretensão que exige fatos e fundamentos jurídicos que evidenciam a obrigatoriedade da conduta “recomendada”.

No lugar da recomendação, o MP pode por exemplo, tratá-la e chamá-la da boa e velha notificação. Melhor ainda seria seguir o mesmo espírito de abertura e embasamento em evidências que deve orientar alternativa aos considerandos. É possível fazer isso encaminhando ao “recomendado” a minuta de eventual ação judicial e do relatório técnico que a embasa — a qual será ajuizada em caso de descumprimento da recomendação, digo, notificação. (Veja esse exemplo).

Com isso, o recomendado e qualquer outro interessado têm a chance de refutar os argumentos de fato e legais que embasam a pretensão do recomendante. (Se não o faz, deixando apenas para fazê-lo em juízo, fica inequívoca não só a consciência e vontade de descumprir a recomendação, mas também a falta de boa fé em evitar a judicialização).

Conclusão

O MP, como toda Instituição de Controle, precisa liderar pelo exemplo. Para isso, é melhor abandonar as recomendações pouco embasadas, que parecem conselhos indesejados. Melhor também abolir a linguagem jurídica do século passado e os truncados e incompletos considerandos.

Em seu lugar, para regras e atos importantes, o MP pode elaborar relatórios técnicos, com evidências, e abri-los a comentários e críticas de todos os interessados, antes da norma ou ato. Quando claro o fundamento legal da cobrança que faz, é melhor anunciá-la como tal, evitando a ideia de conselhos ou palpites.

E você, conhece alguma outra alternativa interessante aos considerandos e recomendações? Compartilhe via comentário!

Com Bernardo Chrispim Baron, Beatriz Ferreira, Breno Gouvea, Gabriel Delman, Júlia Rosa, Leonardo Santanna, Letícia Albrecht, Manuella Caputo, Marcelo Coutinho e Matheus Donato.

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Daniel Lima Ribeiro
Inovação em governo e no controle

Ex-Coordenador e atual Fagulha do Laboratório de Inovação do MPRJ (Inova_MPRJ). Duke SJD. Curte correr e nadar. Curioso incurável.