crítica | o garoto que come alpiste, 2012

um retrato social sobre a fome

Valeska Bruno
4 min readMar 31, 2020

este é mais um dos filmes do movimento que é chamado de “novíssimo cinema grego” ou “estranho cinema grego”, com um conteúdo já muito explorado pelo cinema mundial, duma forma já familiar mas de uma sutileza e delicadeza de narrativa que me pegaram em cheio, me deixando com falta de ar e náuseas diversas vezes.

não é um filme fácil, não mesmo. comecei a ver o filme e já sabia o que viria pela frente a ‘estranheza’ grega que tanto me apetece e um dos temas que mais me dói: a fome. o filme é essencialmente sobre um rapaz, que não sabemos o nome, de onde é, quem ele é. ele só é. interpretado por Yiannis Papadopoulos mas senti que o verdadeiro protagonista era a câmera, ou o meu olhar, como espectador passivo e ao mesmo tempo ativo da narrativa. me senti passiva vendo a fome, a dor, a melancolia do rapaz de tão intimamente e sem a menor possibilidade de interferir em nada e num silencio absurdo na maior parte do filme. e ativa, por percorrer seu corpo, por estar grudada em seu cangote e por não fazer nada também ser um ato politico.

a alguns anos que Grécia vive uma forte crise socioeconômica, com um desemprego gigantesco, principalmente pelos mais jovens e desordem politica. e sabe-se que tais momentos sociais são um terreno fecundo para produções artísticas e o cinema grego tem sido reconhecido pela seus tons de denuncia e grito politico ao mundo sobre o que está acontecendo numa parte quase que esquecida da Europa. desde 2009 tem-se visto filmes do que chamam de novíssima onda grega, que é esse cinema indigesto, incomodo, intimista, silencioso, lento, jovem e politico com obras primas já um tanto conhecidas como Dente Canino, Attenberg , Miss Violence e Alpes. Mas esse é um tanto diferente. seus planos não são tão estáticos, são do que chamam de cinema de fluxo, com visíveis influencias do dogma 95 a obra dirigida por Ektoras Lygizos trata da fome na intimidade e na delicadeza.

O filme parece (e certamente) ter tido um orçamento de 3 balas de tamarindo e 1 mariola. o rapaz da fome parece (porque o filme não nos dá certeza de nada) ser um cantor com seus 20 e poucos anos que tem um passarinho. em apenas três momentos o rapaz canta, quando está ensaiando, logo no incio, quando está distraído em casa e quando está na igreja, onde ele parece estar angustiado, sem saber o que fazer, sem saber rezar mas fazendo a unica coisa que aparente sabe: cantar. mas, poeticamente, em momento nenhum do filme o pássaro canta e o menino cuida quase que religiosamente do bichinho. ele passa fome, ele come a comida do pássaro mas nunca o pássaro fica sem comer. quando ele vende suas caixinhas de som a primeira coisa que faz é comprar alpiste, que é barato e serve os dois.

a sutileza desse filme me encantou como a cena em que o rapaz olha a menina e entorta a cabeça, como ele a segue pela estação de metro em zigue-zagues elas pilastras, quando ele olha a conta de água vencida e a equilibra em sua nuca e orelhas e quando ajuda o velhinho seu vizinho a se levantar do chão. a intimidade que a câmera causou de tão de perto é chocante, como quando ele come (lambe, bebe) o próprio esperma, quando ele cai correndo e cuida do ferimento, quando limpa o próprio vaso sanitário e quando fala com a mãe ao telefone. mas ele nunca, nunca, pede a ajuda a ninguém. quando a menina vê os cabelos dele na sua mão e pergunta o que há com ele, pela primeira vez verbaliza o que se passa pela sua cabela mas não diz essencialmente sua dor, ele fala como se ele estivesse louco e não que o há de errado com ele é exatamente a fome. me deu um nó na garganta quando ele diz estar fazendo jejum. para muitos é isso: passar pela fome é como jejuar e ele canta/ora um canto de dor.

e mais uma vez o cinema grego me deu um banho de água fria.

sobre cinema de fluxo: https://www.youtube.com/watch?v=D0D7oX5KjZ4

sobre dogma 95: https://www.aicinema.com.br/dogma-95/

sobre o novíssimo cinema grego: https://voxeurop.eu/pt/content/article/908091-estranha-onda-do-cinema-grego

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